O fato de ter sido censurado
e nunca exibido em Israel certamente colabora para o
status de A Casa. Amos Gitai concebera-o como metáfora, a partir da arquitetura,
das relações entre palestinos e israelenses - isso no
fim dos anos 70. A televisão na qual seria exibido ordenou
um corte na fala de um árabe, talvez por ele não revelar
espírito para negociação ou por possuir uma retórica
poética não enquadrável no rótulo de inimigo ignorante
e simplório, segundo a explicação do próprio Gitai.
O diretor recusou-se a atender a ordem. Com receio de
perder o material, destino de muitos documentários que
não agradavam seus financiadores, fez uma cópia clandestina.
Naquele momento, os árabes não eram valorizados nos
documentários, por isso, ao formatar o projeto, Gitai
tateava solo novo. E foi acusado de fazer propaganda
para o adversário.
Em suas palavras, foi o filme pelo qual se politizou.
Saia do específico e, por meio da historicização do
presente, chegava à visão ampla - em uma relação nem
sempre clara e simétrica de causa e efeito. Assim dito,
é uma coisa; na tela, é outra. Na verdade, o diretor
parte do amplo para chegar ao específico, mas, sobretudo,
para o específico ilustrar o amplo. Embora compare o
processo de realização ao da arqueologia, o fato é que
Gitai escava já sabendo o que deseja encontrar, fazendo
o percurso para chegar ao objetivo - com certezas muito
explícitas em sua procura. Em suma: pergunta para provocar
respostas adequadas a seu projeto audiovisual.
Seu ponto de partida é histórico. Ele busca nos indivíduos
entrevistados os ecos de uma lei de 1948, pela qual
uma casa cujos moradores árabes se ausentassem por alguns
dias tornava-se posse do Estado de Israel. Até 1977,
os imóveis foram alugados. Gitai filma a reforma de
uma dessas casas, originalmente da família palestina
Dajani, para revelar a biografia do espaço arquitetônico.
Ao historicizá-lo, expõe as relações de poder entre
israelenses e árabes, de forma sintética, sem buscar
a complexidade - e, sim, um resumo da ópera.
O letreiro, no começo, estabelece a dialética em seu
nível mais simples e direto: vemos operários árabes
quebrando pedras, que, segundo a informação escrita
na tela, serão usadas na construção de mansões – de
judeus, evidentemente. Vemos ainda imagens de outros
operários dirigindo-se ao trabalho de madrugada. É esse
contexto que será exposto no filme: de um povo que trabalha
para outro, de árabes reformando casas de israelenses,
justamente para estes sedimentarem sua dominação política;
efeito, se não causa, de um processo de arquitetura
do esquecimento histórico, pois praticado em solo outrora
pertencente aos operários.
Ouviremos trabalhadores e proprietários, um lado e outro,
os que recebem e os que pagam, os antigos donos e os
novos donos do pedaço. Uma constatação: os árabes trabalham
para os israelenses por razões econômicas: ou é isso
ou é cair fora. Um deles acha-se escravo de Israel,
e diz estar com a alma ferida por construir para os
judeus. Sente-se um mal estar nas respostas, uma impotência
de quem, achando ser inútil reagir, apenas se acomoda
no sofrimento: “Se nem todos os Estados árabes derrotaram
Israel, de que adiantariam as minhas palavras?”, questiona
um dos operários – questionando, aliás, a própria proposta
do diretor de capturar o discurso do “oprimido” para
lhe dar a chance de entrar no ringue retórico. Mas a
impotência deste oprimido está estampada, paradoxalmente,
na própria decisão de falar para Gitai. Vemos, por exemplo,
a não-reação de um entrevistado quando, depois de se
recusar a falar com o diretor, volta atrás - em parte
por conta da coação para mantê-lo em quadro. É uma estratégia
de provocação: Gitai não tem pudor em arrancar as palavras
(não sem consentimento, não sem coação), para dar a
essas palavras a função de resposta a uma situação.
É como se a câmera, insistente, não tolerasse o silêncio
e a invisibilidade do “outro” (o árabe), por acreditar
na imagem como estratégia fundamental para se criar
espaços de negociação. Haveria paternalismo nesse enfrentamento
politizante? Que câmera é essa que se sente no direito,
ou assim age pelo menos, de ignorar um pedido para não
se aparecer em quadro? Uma câmera que, nessa atitude,
acha-se pedagógica. E estimula reações como parte de
sua cartilha instrutiva.
Há uma imagem recorrente nos documentários de Gitai:
imagens de muros e paisagens urbanas ou rurais, que
passam pela tela da esquerda para a direita, captadas
por uma câmera em um carro em movimento, que segue da
direita para a esquerda. Essa imagem tenta captar imagens
de “coisas”, da natureza ou construídas, que têm depositadas
em si os sinais do tempo. É o caso de um muro, de um
detalhe de uma casa - protagonistas de uma história.
Mas o plano-sequência pelas ruas e paisagens também
expressam o processo da permanente busca do diretor
– às vezes apenas simulação de busca, pois seu compromisso
é com a linguagem, acima de tudo. Gitai assimila na
estética um caráter de obra em andamento, pois sempre
datada, sempre sobre uma realidade prestes a mudar de
rumo ou aprofundar-se no rumo vigente, sempre tentando
apreender o presente, encontrar uma narrativa enquanto
ela ainda acontece.
Uma Casa em Jerusalém é a retomada de A Casa
quase 20 anos depois. Gitai volta ao mesmo bairro, entrevista
moradores das redondezas (o dono daquela casa inclusive),
assim como os descendentes palestinos do proprietário
pré-1948. Constrói-se, assim, um pequeno painel com
fragmentos biográficos de imigrantes judeus, com suas
opiniões sobre morar em Israel, sobre suas dificuldades
de se adaptar ao país, sobre como se relacionam com
a tensão. Na seleção de entrevistados, Gitai busca a
polifonia de posturas. Em comum, a recusa dos selecionados
à uma historicização do espaço, obtida na montagem dialética.
Imagens de A Casa, dos anos 70, pontuam a narrativa.
Busca-se um olhar geológico, com uma câmera respeitosa,
sem cutucar os entrevistados, deixando-os falar sem
muita modelagem.
Vemos nesse díptico, portanto, as duas facetas de Gitai
(em seus ensaios ou registros não ficcionais). Uma é
determinada por essa intervenção com o real, que propõe
um confronto com ele para alterá-lo no momento filmado;
outra interage com o real como se dele não quisesse
muito, a não ser aquilo que as pessoas querem mostrar.
Mesmo nesta segunda tendência, porém, há trechos de
intervenção direta (como a passagem de Wadi – Grand
Canyon, na qual o cineasta leva um árabe para o
shopping center freqüentado pela elite israelense e
capta os olhares de estranhamento a eles - a ele, árabe;
a ela, câmera). A câmera de Gitai, nos filmes não ficcionais,
sempre é o tema. Porque, acima de tudo, cada um dos
trabalhos tem como principal objetivo reivindicar e
praticar o direito de capturar o processo histórico
e tentar extrair dele uma leitura qualquer (e até uma
impossibilidade de leitura, como leitura). Sua câmera
é um passaporte e uma arma de coação para transitar,
nem sempre pedindo licença, por zonas tabus de Israel
– zonas políticas e geográficas. Sua câmera é uma caneta
com a qual o diretor emite seu ponto de vista sobre
os acontecimentos de seu entorno. Nas ficções, como
nos trabalhos não-ficcionais, Gitai sai-se melhor quando
esse ponto de vista tem dificuldades para enxergar e
organizar o que enxerga.
Cléber Eduardo
|