A CASA / UMA CASA EM JERUSALÉM
Amos Gitai, Bayit / Bayit be Yerushalayim
Israel, 1980 / Israel, 1998

O fato de ter sido censurado e nunca exibido em Israel certamente colabora para o status de A Casa. Amos Gitai concebera-o como metáfora, a partir da arquitetura, das relações entre palestinos e israelenses - isso no fim dos anos 70. A televisão na qual seria exibido ordenou um corte na fala de um árabe, talvez por ele não revelar espírito para negociação ou por possuir uma retórica poética não enquadrável no rótulo de inimigo ignorante e simplório, segundo a explicação do próprio Gitai. O diretor recusou-se a atender a ordem. Com receio de perder o material, destino de muitos documentários que não agradavam seus financiadores, fez uma cópia clandestina. Naquele momento, os árabes não eram valorizados nos documentários, por isso, ao formatar o projeto, Gitai tateava solo novo. E foi acusado de fazer propaganda para o adversário.

Em suas palavras, foi o filme pelo qual se politizou. Saia do específico e, por meio da historicização do presente, chegava à visão ampla - em uma relação nem sempre clara e simétrica de causa e efeito. Assim dito, é uma coisa; na tela, é outra. Na verdade, o diretor parte do amplo para chegar ao específico, mas, sobretudo, para o específico ilustrar o amplo. Embora compare o processo de realização ao da arqueologia, o fato é que Gitai escava já sabendo o que deseja encontrar, fazendo o percurso para chegar ao objetivo - com certezas muito explícitas em sua procura. Em suma: pergunta para provocar respostas adequadas a seu projeto audiovisual.

Seu ponto de partida é histórico. Ele busca nos indivíduos entrevistados os ecos de uma lei de 1948, pela qual uma casa cujos moradores árabes se ausentassem por alguns dias tornava-se posse do Estado de Israel. Até 1977, os imóveis foram alugados. Gitai filma a reforma de uma dessas casas, originalmente da família palestina Dajani, para revelar a biografia do espaço arquitetônico. Ao historicizá-lo, expõe as relações de poder entre israelenses e árabes, de forma sintética, sem buscar a complexidade - e, sim, um resumo da ópera.

O letreiro, no começo, estabelece a dialética em seu nível mais simples e direto: vemos operários árabes quebrando pedras, que, segundo a informação escrita na tela, serão usadas na construção de mansões – de judeus, evidentemente. Vemos ainda imagens de outros operários dirigindo-se ao trabalho de madrugada. É esse contexto que será exposto no filme: de um povo que trabalha para outro, de árabes reformando casas de israelenses, justamente para estes sedimentarem sua dominação política; efeito, se não causa, de um processo de arquitetura do esquecimento histórico, pois praticado em solo outrora pertencente aos operários.

Ouviremos trabalhadores e proprietários, um lado e outro, os que recebem e os que pagam, os antigos donos e os novos donos do pedaço. Uma constatação: os árabes trabalham para os israelenses por razões econômicas: ou é isso ou é cair fora. Um deles acha-se escravo de Israel, e diz estar com a alma ferida por construir para os judeus. Sente-se um mal estar nas respostas, uma impotência de quem, achando ser inútil reagir, apenas se acomoda no sofrimento: “Se nem todos os Estados árabes derrotaram Israel, de que adiantariam as minhas palavras?”, questiona um dos operários – questionando, aliás, a própria proposta do diretor de capturar o discurso do “oprimido” para lhe dar a chance de entrar no ringue retórico. Mas a impotência deste oprimido está estampada, paradoxalmente, na própria decisão de falar para Gitai. Vemos, por exemplo, a não-reação de um entrevistado quando, depois de se recusar a falar com o diretor, volta atrás - em parte por conta da coação para mantê-lo em quadro. É uma estratégia de provocação: Gitai não tem pudor em arrancar as palavras (não sem consentimento, não sem coação), para dar a essas palavras a função de resposta a uma situação. É como se a câmera, insistente, não tolerasse o silêncio e a invisibilidade do “outro” (o árabe), por acreditar na imagem como estratégia fundamental para se criar espaços de negociação. Haveria paternalismo nesse enfrentamento politizante? Que câmera é essa que se sente no direito, ou assim age pelo menos, de ignorar um pedido para não se aparecer em quadro? Uma câmera que, nessa atitude, acha-se pedagógica. E estimula reações como parte de sua cartilha instrutiva.

Há uma imagem recorrente nos documentários de Gitai: imagens de muros e paisagens urbanas ou rurais, que passam pela tela da esquerda para a direita, captadas por uma câmera em um carro em movimento, que segue da direita para a esquerda. Essa imagem tenta captar imagens de “coisas”, da natureza ou construídas, que têm depositadas em si os sinais do tempo. É o caso de um muro, de um detalhe de uma casa - protagonistas de uma história. Mas o plano-sequência pelas ruas e paisagens também expressam o processo da permanente busca do diretor – às vezes apenas simulação de busca, pois seu compromisso é com a linguagem, acima de tudo. Gitai assimila na estética um caráter de obra em andamento, pois sempre datada, sempre sobre uma realidade prestes a mudar de rumo ou aprofundar-se no rumo vigente, sempre tentando apreender o presente, encontrar uma narrativa enquanto ela ainda acontece.

Uma Casa em Jerusalém é a retomada de A Casa quase 20 anos depois. Gitai volta ao mesmo bairro, entrevista moradores das redondezas (o dono daquela casa inclusive), assim como os descendentes palestinos do proprietário pré-1948. Constrói-se, assim, um pequeno painel com fragmentos biográficos de imigrantes judeus, com suas opiniões sobre morar em Israel, sobre suas dificuldades de se adaptar ao país, sobre como se relacionam com a tensão. Na seleção de entrevistados, Gitai busca a polifonia de posturas. Em comum, a recusa dos selecionados à uma historicização do espaço, obtida na montagem dialética. Imagens de A Casa, dos anos 70, pontuam a narrativa. Busca-se um olhar geológico, com uma câmera respeitosa, sem cutucar os entrevistados, deixando-os falar sem muita modelagem.

Vemos nesse díptico, portanto, as duas facetas de Gitai (em seus ensaios ou registros não ficcionais). Uma é determinada por essa intervenção com o real, que propõe um confronto com ele para alterá-lo no momento filmado; outra interage com o real como se dele não quisesse muito, a não ser aquilo que as pessoas querem mostrar. Mesmo nesta segunda tendência, porém, há trechos de intervenção direta (como a passagem de Wadi – Grand Canyon, na qual o cineasta leva um árabe para o shopping center freqüentado pela elite israelense e capta os olhares de estranhamento a eles - a ele, árabe; a ela, câmera). A câmera de Gitai, nos filmes não ficcionais, sempre é o tema. Porque, acima de tudo, cada um dos trabalhos tem como principal objetivo reivindicar e praticar o direito de capturar o processo histórico e tentar extrair dele uma leitura qualquer (e até uma impossibilidade de leitura, como leitura). Sua câmera é um passaporte e uma arma de coação para transitar, nem sempre pedindo licença, por zonas tabus de Israel – zonas políticas e geográficas. Sua câmera é uma caneta com a qual o diretor emite seu ponto de vista sobre os acontecimentos de seu entorno. Nas ficções, como nos trabalhos não-ficcionais, Gitai sai-se melhor quando esse ponto de vista tem dificuldades para enxergar e organizar o que enxerga.

Cléber Eduardo