A
vida nos grandes centros urbanos é fria, desapegada
de seus valores mais simples e básicos, substitui
o convívio com a natureza através da construção
de uma outra "natureza" de ordem cultural
onde habita a impessoalidade e a correria? Então
viajemos para outros recantos do mundo em que ainda
se encontram resguardados os sentimentos comunitários
de pureza e os princípios mais básicos
de sobrevivência: a luta contra as intempéries
naturais. Assim se molda todo um tipo de registro ficcional
que tem nos documentários de Flaherty, principalmente
Nanook, o Esquimó, sua figura mais notável.
Camelos Também Choram é uma espécie
de reavivamento contemporâneo dessa ideologia,
figurando uma comunidade muito pequena que vive no deserto
de Gobi criando camelos e cabras. O ponto de partida
que instala a ficção no filme não
é a luta contra um inimigo nem dissensões
internas no seio do grupo, mas algo muito mais prosaico
porém não menos conflitante: o nascimento
de um raro camelo branco que, talvez por ser o primeiro
parto de sua mãe, tem constantemente recusado
o acesso ao leite materno por sua progenitora, que vive
empurrando o corpo de seu filho para longe de seu corpo.
Isso, é verdade, pode dar vazão a uma
enxurrada de possíveis interpretações
sociais-existenciais sobre a sociedade moderna que são
incrivelmente passadistas e chorosas. Mas pior para
essas interpretações: Camelos Também
Choram é interessante apesar de todo esse
chororô psico-sociológico, e tem grandes
momentos de verdadeiro cinema. E, aliás, seu
interesse é muito outro (em relação
a fazer o espelho transverso das sociedades tecnológicas
urbanas).
O começo do filme revela a natureza do projeto.
O ancião da comunidade conta a história
de uma lenda: como os camelos originalmente tinham chifres,
como eles emprestaram seus chifres aos veados e, os
veados tendo desaparecido no infinito com seus chifres,
os camelos até hoje guardariam impassíveis
esse olhar para o horizonte, esperando o dia em que
teriam de volta seus ornamentos. O camelo se instituiria,
assim, a partir do mito, como animal melancólico,
contemplativo, animal das lentidões e das poucas
e escolhidas afecções. Davaa e Falorni,
em seu primeiro filme, constróem uma espécie
de National Geographic afetivo, um estudo etológico
que, claro, guarda um poder forte de afetar a nós,
homens. A câmera de Falorni, que também
assina a fotografia e a câmera, aposta na poética
do animal: instala-se longamente e em enquadramentos
precisos e muito próximos a perscrutar o animal,
a tentar desvendar o mistério desse bicho tão
aparentemente anticinematográfico que parece
não nos revelar nada de sua existência
puramente pelo visual.
Mas Camelos Também Choram é menos
um estudo exótico de uma comunidade totalmente
orgânica do que uma aposta nas maneiras simples
e coviviais de ser feliz. O paralelo humano que o filme
traça é com as crianças da aldeia,
e principalmente com Ugda, o menorzinho, que ainda não
foi à cidade grande. Enquanto o camelo recém-nascido
experimenta pela primeira vez a luz do mundo e o gosto
do leite, Ugda vive os prazeres de ver pela primeira
vez um desenho animado ou de ir numa feira cheia de
gentes e de barulhos que ele desconhece completamente.
O propósito da viagem dos dois meninos é
encontrar um tocador de violino. Segundo a lenda, quando
a mãe recusa o leite ao pequeno camelo que nasce,
é só com um ritual de canto e violino
que a mãe se emociona com a música, chora,
e deixa finalmente que seu filho beba diretamente o
leite de seu corpo. Os diretores sabem que o forte de
seu filme se encontra no mito e na alegoria: é
uma espécie de registro mágico, xamânico,
onde o encantamento não se encontra naquilo que
a câmera pode criar (efeitos espertinhos de fotografia,
som ou montagem), mas a própria mágica
da vida que à câmera cabe somente registrar.
Nesse sentido, Camelos Também Choram constrói-se
como uma narrativa muito seca, respeitando e tentando
refletir o modo de vida dos habitantes da aldeia e o
comportamento dos camelos, sem tentar jogar um olhar
externo e espetaculoso em cima daquilo que cria. Tanto
melhor para nós: o verdadeiro espetáculo
é a própria vida, um parto complicado
de camelo ou a comovente seqüência-clímax
em que a mãe finalmente aceita dar de mamar a
seu filho. O filme passa ao fim para as duas crianças,
Dude e Ugda, instalando uma câmera parabólica
para enfim ver desenhos animados. Com a televisão,
a comunidade perderá sua pureza? Nos parece que,
antes de tudo, Camelos Também Choram diz
que a pureza reside no olhar, dos camelos olhando para
o horizonte ou da criança de frente para a televisão.
Se isso demandará outro tipo de problemas, é
outra questão. O que importa ao filme não
é tanto mitologizar uma natureza que os ocidentais
urbanos teriam perdido, mas antes fazer delirar o mágico
do mundo em todos nós.
Ruy Gardnier
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