Em
1959, no plano final de Acossado, Jean Seberg
desvia os olhos do protagonista deitado e dirige seu
olhar para a câmera, e enfim diz sua última
fala: "Qu'est-ce que c'est dégueulasse?". Dois
anos antes, no entanto, a mesma Jean Seberg olhava,
também em preto e branco, para a câmera.
Não era no final do filme, antes no começo.
Não observando um homem morrer, mas dançando
com um homem que não lhe dá nenhuma vida.
Por motivos muito evidentes, o plano de "olhar para
a câmera" que se tornou revolucionário
foi o do primeiro longa-metragem de Jean-Luc Godard,
e não o de Bom Dia, Tristeza, de Otto
Preminger. Mas esses motivos são tão evidentes
quanto improcedentes: o primeiro apenas obedecia mais
claramente a um programa de contestação
da linguagem oficial, enquanto o segundo passeava sorrateiramente
por uma complexificação da linguagem mais
tradicional da ficção para dar conta em
seus filmes da imensa gama de complexidade e ambigüidade
moral que existe no mundo.
Nosso objetivo, naturalmente, não é jogar
dois dos maiores cineastas que o mundo já deu
um contra o outro, mas esboçar uma tentativa
de compreensão do porquê de um determinado
tipo de cinema, a saber, o de diretores como Otto Preminger
e John Ford, possa ser colocado com tanta imprudência
no saco de gatos de um "cinema narrativo clássico"
que, a princípio, fecharia sobre si mesmo um
universo de significados em que o espectador faria o
papel de intérprete passivo dos signos evocados
pela película, enquanto os filmes pós-Godard
e Antonioni seriam a antítese disso tudo, a transubstanciação
de Brecht no cinema. Bom Dia Tristeza, como diversos
dos grandes filmes de Preminger, nos dá grandes
motivos para duvidar dessa desajeitada clivagem teórica
– e, com o passar dos anos, cada vez mais contestável.
Ora, nos parece que há inúmeros meios
de inscrever o espectador como entidade participante
na ficção, e o distanciamento e o "cristal"
são só alguns possíveis dentro
de um extenso repertório, que de forma alguma
exclui necessariamente o cinema narrativo. Otto Preminger
é responsável por várias delas.
De todas, sua forma preferida de interferir na inocente
fruição do espectador é a ausência
de julgamento em relação a seus personagens.
Preminger está mais interessado em criar uma
relação entre valores distintos do que
em dizer que um presta e outro não. Diante disso,
cabe ao espectador sair de seu papel costumeiro e exercer
ativamente seu próprio julgamento, sem a mão
do diretor para direcionar para um ou outro lado, sob
risco de ver unicamente planícies estéreis
e plácidas ali onde há terrenos pra lá
de tortuosos (e mesmo assim floridos). Em Bom Dia,
Tristeza, nenhum dos personagens guarda para si
o ponto de vista do filme. O trabalho de ponto de vista
em Preminger consiste sempre em armar o teatro: dentro
dele, as ações transcorrem sem torcida
para qualquer parte.
Quando Jean Seberg olha para a câmera, logo no
começo do filme, é na verdade para o palco,
onde Juliette Gréco canta "Bonjour tristesse",
que ela está olhando. Daí, o filme deslancha
o passado recente da família de Jean Seberg,
aliás Cécile. A trama é por demais
simples: pai e filha, os bon vivants Raymond
(David Niven) e Cécile aproveitam a vida entre
Paris e o litoral francês. Sem preocupações
de dinheiro, a vida é sempre uma festa, o mundo
do trabalho e das obrigações encontra-se
em outro lugar, mas não entre eles. À
maravilhosa casa de veraneio deles na Côte d’Azur
se junta Elsa Mackenbourg (Mylène Demongeot),
namorada muito mais jovem de Raymond, tão frívola
quanto eles mas um tanto mais tola. A adversidade nasce
quando chega Anne Larsen (Deborah Kerr), antiga amiga
da mãe de Cécile, uma estilista famosa,
elegante, inteligente, linda e solteira. Convidada por
Raymond um tanto sem pensar, Anne inicialmente sente-se
humilhada pela presença de Elsa na casa, mas
vai aos poucos lutando a luta no terreno um tanto licensioso
da casa e acaba por conquistar Raymond. Com Anne como
nova namorada, a vida de Cécile, que repetiu
seu último ano na escola, vai ser reconduzida
à responsabilidade. Cécile então
arma com seu namorado Philippe e Elza um plano para
separar os dois, que não dá exatamente
os resultados que a moça esperava.
Há em toda essa maquinação gestos
muito suspeitos, ou dúbios, ou até imorais.
O fato de o filme ser constituído como um grande
flashback em que o presente é em preto
e branco e o passado é colorido acresce o tom
de uma vida morosa, muito mais do que arrependida. Preminger
abusa do underacting e evita uma estrutura de
roteiro cheia de momentos de clímax, estabelecendo
a situação de um presente contínuo
e achatado, em que os personagens parecem mais flutuar
do que agir propriamente. Ali, nesse ambiente cheio
de marasmo e nesse espaço de tempo quase entre
parênteses, qualquer gesto de personagem, da futilidade
mais grave à maior alegria de viver, encontra
sua plena expressão sob a câmera de Preminger
que, passiva, registra e aceita da mesma forma, sem
hierarquia moral, tudo que chega até ela.
Preminger, mais do que uma intriga, cria personagens.
É a partir deles que se constrói o filme,
das características de cada um e das relações
estabelecidas entre eles. A intriga parece bem secundária,
quiçá irrelevante. Podemos esquecer por
que Cécile monta um quadro comparativo entre
ela mesma e Anne, mas jamais nos esqueceremos da cena
do quadro (da mesma forma que, em Tempestade sobre
Washington, infelizmente jamais lançado em
vídeo ou dvd no Brasil, podemos nos esquecer
qual é o motivo inicial da celeuma no senado,
mas jamais nos esqueceremos de todos os momentos de
Charles Laughton, Henry Fonda e Walter Pidgeon). A partir
daí, podemos imaginar dois possíveis modos
de evocar a participação do espectador.
(1) O personagem é multifacetado, e é
difícil conciliar, por exemplo, a graça
de Cécile com seu comportamento fútil,
ou a estupidez de Elsa com seu eterno sorriso – coisa
que nem o papel deles na intriga nem os elementos expressivos
da direção fazem por nós. Assim,
é preciso sozinho medir suas próprias
distâncias em relação a cada personagem.
(2) O personagem tem uma vida que parece ultrapassar
seu lugar na intriga (o que é ligeiramente diferente
de ser multifacetado). Pouco importa por onde Cécile/Jean
Seberg passa ou o que ela faz, contanto que ela esteja
no plano, e que ela continue sendo um enigma para nós
do começo ao fim (Godard fez um uso bem semelhante
dela em seu primeiro longa). Fonte irradiadora, menos
pela beleza do que pela perene sensação
de confusão por jamais saber o que se pode esperar
dela na cena seguinte, Cécile nos remete a um
buraco negro instalado dentro da narrativa e que parece
sugá-la e criar momentos puros de cinema, emanando
da beleza do instante e não da concatenação
da narrativa.
Um dos momentos decisivos da nouvelle vague é
a publicação nos Cahiers du Cinéma,
por François Truffaut, do artigo "Uma certa
tendência do cinema francês". O título
provisório do texto era "O cinema do desprezo",
num questionamento, entre outras coisas, do fato de
que os personagens do cinema francês eram todos
desprezíveis, uma maneira de dizer que o julgamento
moral de cada personagem parecia se anteceder à
própria criação do personagem.
A nouvelle vague, como muitos parecem esquecer,
não foi um movimento de defesa de um cinema "de
vanguarda" contra um cinema clássico (Rohmer,
para citar só um exemplo, jamais deixou de ser
adepto do classicismo), mas um movimento em que os personagens
não estivessem mais submetidos a um crivo moral
terrível que os fechasse numa significação
limitadora e espúria. A nouvelle vague,
sem dúvida, está mais para Madame Bovary
e Flaubert do que para Ulisses e James Joyce.
Tanto que não há, por parte dela, negação
a filmes narrativos americanos de linguagem "convencional"
como os de Nicholas Ray, Joseph L. Mankiewicz e... Otto
Preminger. O que esses jovens cineastas franceses queriam
primeiramente, como Otto Preminger (e mais diversos)
antes deles, era estabelecer um espaço para os
personagens ganharem liberdade sem o entrave de uma
narrativa opressora demais. Em Bom Dia, Tristeza,
os nacos de realidade, os instantes partilhados em família
ou entre amantes têm uma vida própria,
uma pregnância que ultrapassa (ou briga contra)
a mera função narrativa e existe por si
só. Lembremos da cena de festa em praça
pública. Ela tem um motivo narrativo central,
mas mesmo assim esse motivo parece perder-se no meio
de tanta beleza criada pela relação entre
enquadramento e movimentação dos figurantes,
tornar-se apenas mais uma característica no meio
da dança e da música. Quase indiscerníveis,
Deborah Kerr e David Niven se beijam na multidão,
mas o olho chama a outros lugares. Otto Preminger abraça-os,
mas deixa que eles tenham uma existência própria,
longe da significação óbvia que
fecharia a cena num plano fechado que desprezaria todo
o resto da festa. Preminger deixa que eles vão
com o fluxo. E nós com eles.
Ruy Gardnier
(VHS LK-Tel/Columbia,
DVD Columbia)
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