Emir
Kusturica revisita a guerra da Bósnia. Essa frase
sobre A Vida É um Milagre tem seu quê
de verdade, mas o certo é que Kusturica, em seu
mais novo filme, nos instala na guerra para depois tratá-la
da única maneira que ele sabe: restringindo seu
escopo a uma comunidade, àquela eterna cidadezinha
rural kusturiciana em que todos os personagens são
pitorescos, adoráveis em suas esquisitices, compondo
um cenário social orgânico de doçura
e lirismo. A mesma canção de sempre: um
burro parado nos trilhos do trem, o herói ingênuo
e adorável, os homens do poder com suas taras
esquisitas, muita música, muitos animais. Uma
comunidade de seres um pouco maluquinhos vivendo seu
cotidiano como se fosse um delicioso carnaval. Nada
de condenável, não fosse o claro sentimento
de que Kusturica mais uma vez instala sua ficção
em terreno por demais revisitado, e deixa o filme funcionar
em piloto automático simplesmente porque a rota
já é tão conhecida que nem é
preciso fazer os ajustes de percurso.
Kusturica é um caso curioso. Um caso sui generis
de recepção calorosa em todos os festivais
que passa (e sempre é Cannes, Berlim ou Veneza),
recolhendo em cada um deles ao menos um grande prêmio
– só A Vida É um Milagre saiu de
mãos abanando do festival em que entrou (Cannes
2004). Seu cinema é povoado por um universo muito
particular, tanto no ritmo de seus filmes quanto nas
características de seus personagens. Assim como
Almodóvar, Lars Von Trier, David Lynch ou Woody
Allen, ele é um superstar do cinema de
autor. Um "universo" facilmente identificável,
cacoetes estilísticos e narrativos que atingem
em cheio os circuitos de festivais e os circuitos de
arte através do mundo. Mais uma vez, nada de
errado a princípio. Resta então, a cada
artista dos mais reconhecidos e festejados, renovar
aquilo que se entende pelo adjetivo criado a partir
do nome do autor. É certo que "lynchiano"
ou "almodovariano" são palavras que
ganham novos significados a partir de cada novo filme,
até agora ao menos, de seus realizadores. O destino
mais triste para um desses cineastas-superstars
do cinema de autor jaz numa expressão popular:
criar fama e deitar na cama. Assim como Woody Allen,
o cinema recente de Emir Kusturica é um cinema
que, na incapacidade de se recriar, fica revolvendo
em círculos – de raio cada vez menor – um mesmo
número de procedimentos protocolares que todos
já conhecem e que são esperados. O cineasta
se torna uma instituição, e assistir aos
filmes transforma-se em operação burocrática.
A Vida É um Milagre, mais até do
que Gato Branco, Gato Preto, seu filme precedente,
é previsível em cada aspecto. Vemos a
vida do maquinista Luka mudar completamente quando a
guerra chama seu filho Milos para se alistar. Logo depois,
sua mulher foge da cidade com um músico e Milos
é capturado e transformado em prisioneiro de
guerra. Com o intuito de reaver seu filho, um amigo
de Luka surge com a idéia de capturar por si
mesmo uma linda enfermeira da linha inimiga para trocar
por Milos. Como já saberíamos a partir
da entrada da moça em cena (a linda Natasa Solak,
com um certo quê de Luana Piovani), nasce uma
história amorosa entre a enfermeira e o maquinista,
enquanto no vilarejo acontece toda espécie de
loucura, até soldados cheirando carreiras enormes
de cocaína ao longo dos trilhos da ferrovia.
História repetitiva, humor reiterativo – basta
fazer alguém cair no chão para que uma
"cena engraçada" surja – e planos filmados
com uma preguiça incrível – a cena do
jogo de futebol no começo do filme é provavelmente
a pior cena já filmada por Kusturica – fazem
de A Vida É um Milagre uma experiência
que não é desagradável no todo,
mas que é francamente irrelevante. Sobre Underground,
já se mencionou uma certa facilidade na aproximação
da guerra com o carnaval, sobre como uma visão
histórica aparentemente profunda sobre a relação
entre guerra e humanidade acaba virando uma desculpa
rasa e fácil para um pacifismo que lava as mãos
em seu lirismo e no elogio da vida ingênua de
comunidade orgânica em sua própria loucura.
Esse questionamento volta agora com força toda,
só que dessa vez sem a mestria relativa que fazia
de Underground um filme forte. Dessa vez, seja
pela distância cronológica da guerra, seja
pela insuficiência da trama em realizar um questionamento
mais denso da guerra, a História mal chega a
ser arranhada. Em modo tautológico, o autor Kusturica
só fala aquilo que já esperamos dele,
o mesmo coquetel agradável de teatro do absurdo,
música, humanismo e humor bálcã.
Pode até ser, como o diretor gosta de mostrar,
que a História só faça se repetir,
mas o problema é que, com A Vida É
um Milagre, Kusturica é ainda muito mais
repetitivo.
Ruy Gardnier
|