"Eu
sou um ator. E meu palco é o mundo!", responde
Napoleão Bonaparte (Pierre Mondy), com sarcasmo,
ao Papa Pio VII (Vittorio De Sica), para quem o futuro
imperador não passa de mero comediante. Justificando
a expressão "teatro de operações",
Abel Gance, em A Batalha de Austerlitz, encena
tanto as intrigas e artimanhas políticas que
levam Napoleão ao trono quanto a maior vitória
militar de sua carreira, ao derrotar as tropas austríacas
e russas no embate que dá nome ao filme.
Expoente, com Jean Epstein e Marcel LHerbier, do cinema
de vanguarda francês, Abel Gance, durante a década
de 20, escreve seis roteiros sobre a vida de Napoleão
Bonaparte, personagem que representa a obsessão
maior do cineasta, que o toma por ídolo pessoal.
O fracasso financeiro, quando levado às telas
em 1927, do espetacular Napoléon início
da cinebiografia napoleônica, que narra da infância
até a invasão da Itália em 1795,
e cujo centro nervoso é a participação
do então general nos acontecimentos que precipitaram
a Revolução Francesa, bem como sua identificação
com os ideais de Robespierre, Danton e Saint Just
força Abel Gance a vender a conclusão
a Lupu Pick, que filma, em 1929, Napoleão
em Santa Helena. Mais de trinta anos são
necessários a fim de que Gance, após reescrever
(com Roger Richebé e com a futura cineasta Nelly
Kaplan) o que seria o terceiro episódio do projeto
original, possa finalmente realizar a obra-prima A
Batalha de Austerlitz.
Já que a nova versão restaurada de Napoléon
(que recupera os 330 minutos integrais do filme)
não chega ao Brasil, comemore-se o lançamento,
pela Classic Line, do DVD de A Batalha de Austerlitz,
que preserva a janela de 1:2.35 processo Dialyscope
tão cara a Gance, cuja tela triplicada de Napoléon
significa uma das primeiras tentativas para a obtenção
do formato. No entanto, em aparelhos de DVD que não
desanamorfisam a imagem, A Batalha de Austerlitz
é apresentado em 16:9 Anamórfico, o que
esmaga o quadro e, em conseqüência, coloca
os elementos de cena fora de proporção.
A Batalha de Austerlitz se compõe de duas
partes: na primeira, a narrativa acompanha a ascensão
de Bonaparte, de um dos três cônsules da
República a imperador auto-coroado, enquanto
a segunda mostra com impressionante detalhismo todas
as táticas de guerra empregadas, pelos franceses
e pelos austro-russos, em Austerlitz. Partes distintas,
acarretando tratamentos diferenciados, pois, se a politicagem
que fomenta o Império ocorre nos interiores palacianos,
o combate que o assegura dá-se ao ar livre, junto
aos soldados provenientes das classes baixas.
Politicagem que Gance aproxima explicitamente à
sacanagem. As tramóias que se estabelecem, de
início para deter os planos ingleses de derrubar
Napoleão, e depois para conduzi-lo ao trono
paradoxo de retornar ao Império com o intuito
de preservar os ideais revolucionários , em
nada devem às aventuras sexuais de Bonaparte
com suas amantes (sobretudo Mlle. de Vaudey, interpretada
por Leslie Caron), ou às escapadas de Joséphine
(Martine Carol) com o cabeleireiro. É Pauline
Bonaparte (Claudia Cardinale) quem melhor define as
intenções do cineasta, ao afirmar que
faz na cama com os homens o que seu irmão realiza
nos gabinetes com a Europa. Quando segredos de Estado
se comparam aos mistérios da alcova, quando,
para Napoleão, favorecer parentes e aliados com
cargos e pensões equivale a sustentar, com dinheiro
público, os gastos excessivos das mulheres com
que dorme.
Já na batalha, Abel Gance contrapõe o
gênio militar de Napoleão à empáfia
do general austríaco Weirother (Jack Palance),
cuja tática apenas copia como faz questão
de dizer outra já utilizada por Bonaparte.
Mais do que oponente que serve para valorizar a vitória
francesa, Weirother é a imagem em espelho do
imperador, seu duplo. Se a História se repete
somente como farsa, conforme Marx, Weirother encarna
o aspecto cômico e patético reforçado
pela atuação circense de Palance de
todos os imitadores de Napoleão, bem como aponta
para a originalidade deste em relação
ao mundo que o cerca.
História, farsa: representação.
Para Gance, trata-se de entender o próprio cinema
enquanto repetição, enquanto potência
para re-encenar eventos que já aconteceram no
espaço e no tempo. Em A Batalha de Austerlitz,
o cineasta se une a Jean Renoir ao teatralizar o real,
ao ver tanto a política quanto a guerra como
prolongamentos dos papéis sociais interpretados
por cada personagem dentro da História, autora
suprema que subordina os homens à sua vontade,
manipula-os, transforma-os em atores reparar como
cada seqüência do filme se passa em cenário
único, como no teatro, do mesmo modo que os demorados
fades out que determinam a mudança de cena se
equiparam ao descer da cortina que indica o final dos
atos. Assim, é irrelevante procurar, no filme,
qualquer aprofundamento psicológico ou humano
em Napoleão, Talleyrand, Joséphine ou
nas demais figuras que participam da construção
histórica do Império francês: como
demonstra a seqüência da coroação,
filmada a partir de maquete feita a mando do futuro
imperador, todos não passam de marionetes, simples
bonecos cujas atuações no teatro europeu
já se encontram previamente marcadas e determinadas.
Porém, Robert Fulton (Orson Welles) e Alboise
de Portoise (Michel Simon) não se enquadram neste
jogo criado e mantido pela História. Fulton,
americano que inventa o barco a vapor, ao ser rejeitado
por Napoleão, prevê o destino trágico
do protagonista e o imperador, de fato, será
derrotado pela marinha inglesa, através do Bloqueio
Marítimo. Por sua vez, Alboise, soldado idoso
que de tudo reclama, jamais se deixa impressionar por
Bonaparte, pois nele enxerga apenas outro condenado,
pela sucessão temporal dos acontecimentos que
lhe fogem ao controle, à morte inevitável.
Se em Renoir o teatro possibilita aos atores se libertarem
de seus papéis para inventarem novos, em gance,
ao contrário, constata-se que não há
escapatória. A Batalha de Austerlitz,
como Badaladas à Meia-Noite (Chimes
at Midnight, 1965, de Orson Welles), segue a máxima
de que o rei não detém a coroa, mas é
antes a coroa que faz do rei o instrumento para se efetivar:
no olhar perdido de Alboise após a vitória
das tropas francesas, o qual parece expressar o ditado
romano de que "toda glória é efêmera",
a certeza de que Napoleão e seu Império
estão com os dias contados, visto que a História,
mesmo com os heróis, é implacável.
Paulo Ricardo de Almeida
(DVD Classic Line)
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