Um olhar a partir de O
Jogador de Cartas (Il Cartaio, Itália, 2004)
O genial realizador italiano Lucio Fulci ("The Godfather
of Gore" - o padrinho das vísceras) disse certa
vez a respeito de Dario Argento: "Alfred Hitchcock era
um artista que se considerava um artesão; Dario
Argento é um artesão que se considera
artista". Não chega a ser o caso desta afirmação
não ter sua verdade (e ela a tem), nem o de Fulci
tê-la dito sob o peso de uma possível cólera,
de uma certa inveja que mantinha pela posição
privilegiada que Argento ocupava na indústria
cinematográfica italiana: o fato é que
Argento sempre pôde realizar seus filmes com um
grau de liberdade criativa que, salvo raras exceções
(especificamente uma: Sergio Leone), nenhum outro realizador
italiano de filmes de gênero conheceu.
Em 1987 ocorre o colapso que afetará tanto o
mercado quanto a demanda para filmes de gênero
na Itália apenas relativamente, mas que deixará
na carreira de Argento uma marca definitiva: o fracasso
nacional e internacional de Terror na Ópera.
Este filme, talvez mais que qualquer outro, separa a
obra de Argento num "antes" e "depois" nem tanto pelo
fracasso comercial que conheceu (foi o filme mais caro
realizado na Itália à época, com
um custo de U$ 10.000.000,00) mas principalmente por
ser o ponto de crise, por abrir a porta de alguma coisa
que não interessava a Argento até então:
o obsceno existente em todo o terror.
Antes: o terror podia existir sob o prisma da inocência
(Phenomena, O Gato de Nove Caudas), da
aprendizagem (Prelúdio Para Matar, A
Mansão do Inferno, Suspiria), das
relações de poder (Quatro Moscas no
Veludo Cinza, Tenebrae), da criação
(Tenebrae, O Pássaro das Plumas de
Cristal). Depois: o terror surge a partir da corrupção
e da injustiça (Trauma), do egoísmo
e da abjeção (Síndrome Mortal,
Dois Olhos Satânicos), da loucura e do
gênio simplesmente estúpido (Sleepless,
Um Vulto na Escuridão). Apenas Terror
na Ópera parece transitar com sucesso por
estes mundos opostos: de um lado ainda existe uma vontade
de descobrir o sombrio nas coisas mais simples (exatamente
como em todos os filmes de Argento até Phenomena),
de outro há uma necessidade de negação
e purgação de todas as mazelas do mundo
que surgirá de maneira definitiva em Trauma
e chegará a uma espécie de paradoxo (estético,
temático, ensaístico) em Síndrome
Mortal. Será ainda sob as possibilidades
da inocência e da aprendizagem que em Opera
a aprendiz de diva Betty inicia sua viagem pelo mais
absoluto terror, o terror que é verdadeira e
simplesmente resumível em uma só palavra:
fascismo.
Neste momento em que Argento identifica sua profissão-de-fé
como um exercício não apenas questionável
como também perigoso é que surge essa
espécie de dúvida, de auto-crítica
inacabável e insuperável (tanto que é
virtualmente o aspecto mais presente em todos os seus
filmes pós-Opera): encarar o terror (olhar,
filmar, apresentar e representar), é também
identificar-se com ele. Identificar-se com o terror:
que imagem mais perfeita, mais límpida que a
do psicopata que cola agulhas às partes inferiores
dos olhos de Betty para que ela não pisque nem
desvie os olhos enquanto são cometidos os assassinatos;
não é isto que de certa forma faz ao seu
público um diretor de filmes de terror? Esta
será a grande idéia, o conceito mesmo
de tudo o que Opera é: uma incapacidade
de ver menos do que é necessário, essa
tomada de consciência do espetáculo que
é o tudo ver/nada ver do terror. A enorme tristeza
do Argento pós-Opera é a de um
homem que apostou que no cinema o terror podia ter/ser
uma grande imagem (e que belas imagens Argento nos deu
e nos dá), mas que essa imagem a partir de um
momento afeta aquilo mesmo que a motiva (e mesmo que
motiva Argento a interessar-se por ela): uma visão,
uma relação de economia entre imagens.
Ao final de Opera, a imagem primeira de tudo
o que Argento tentará em seus filmes posteriores:
é um novo mundo, com o qual será possível
travar novas relações e criar novas imagens,
que Betty decide adotar após conhecer todos os
terrores.
Esse "novo mundo" sempre foi na realidade algo buscado
por Argento - desde seu primeiro filme -, mas o que
talvez o diretor não sabia à época
de Quatro Moscas no Veludo Cinza ou A Mansão
do Inferno é que este mundo não mais
seria o do terror puro e duro. Pois num mundo onde todas
as relações entre imagens já foram
deformadas por completo, onde todas as imagens não
mais respondem a quaisquer hierarquias, que imagens
"de terror" um diretor de filmes de terror ainda pode
filmar? Quais as imagens que não são a
priori "de terror"? Em Sleepless alguma coisa
nova parecia possível na espécie de inflação/carnavalização
de alguns signos bastante importantes (mulheres gritando,
perseguições noturnas, câmeras subjetivas),
mas algo mancava e talvez seja mesmo a presença
de Max Von Sydow como alter-ego de Argento. Pois será
este "novo mundo" um mundo de outrora, o de O Gato
de Nove Caudas e O Pássaro das Plumas
de Cristal, como Argento parece desejar em Sleepless?
Agora estamos em 2004 e Argento nos propõe O
Jogador de Cartas, mas ainda faz-se necessário
retomar a questão Von Sydow-Sleepless:
na década de 90 é mais do que certo que
Argento declara guerra a todo o tipo de parafernália
informatizada, a todas as experiências que nosso
mundo (o do cinema, portanto o da vida) trava com um
mundo virtual. Pois para alguém que acreditou
que a realidade de uma imagem seria justamente o seu
terror (é neste terror que precisa se acreditar
para tornar uma imagem virtual e unidimensional em um
universo real e palatável) não há
mais nem terror nem realidade numa série de bonecos,
de animações CGI às quais
se recorre filme após filme, de investigadores
que realizam seus trabalhos através de laptops
e conexão via web e não através
de recitos, de perseguições, de buscas
a personagens estranhos, de enrascadas rocambolescas,
enfim de toda a sorte de absurdos recorrentes em giallos.
O que o personagem de Von Sydow tornava muito claro
em Sleepless - claro demais para um cineasta
que se articula através de enigmas e incertezas
- era justamente a crítica e o mea-culpa
que Argento faz como alguém muito destacado e
distante deste mundo muito falso e de poucas imagens
(ao menos de imagens que valham a pena). Porém
talvez seja de interesse questionar tal tomada de consciência
quando esta vem do homem que em 71 realizava Quatro
Moscas no Veludo Cinza e em 82 Tenebrae,
de um cineasta que durante muito tempo apostou na tecnologia
de ponta e mesmo na criação de um mundo
sintético, maneirista, crível apenas naquilo
que apresenta de essencial à existência
do terror... Um mundo depurado a algumas poucas formas,
sombras e estruturas.
A novidade de O Jogador de Cartas, a revitalização
que este filme traz à obra de Argento, é
a de uma busca por novas pistas - não outras
mas novas - em meio ao repertório de pós-imagens-estilos-estéticas
pertencentes a este mundo com o qual Argento se debateu
tanto (talvez até por certa dívida) em
todos os filmes posteriores a Opera. Ou, em outros
termos, as diferenças e semelhanças deste
Il Cartaio com Opera serão as mesmas
de um artesão que se considera artista (Opera
- um pomposo diretor de filmes de terror que é
contratado para dirigir a peça Lady MacBeth
de Verdi) com as de um artista que se põe
na posição de um artesão (O
Jogador de Cartas - o policial britânico bom
em seu trabalho que por conta de um acidente durante
o serviço é posto como guarda de turistas
em Roma). É num escritório que o filme
começa (o lugar do trabalho burocrático,
necessário), e dele não sairemos
durante um bom tempo. Retorno nem tanto ao essencial,
aos princípios, mas sim aos rudimentos: enquanto
estamos no escritório não se trata de
um espetáculo que está sendo posto em
cena (daí talvez a enorme dificuldade dos fãs
em aceitarem estas cenas) mas sim de um roteiro que
está sendo redigido, da preparação
para o verdadeiro terror.
O terror ainda no seu estágio embrionário:
alguns gritos abafados, um rosto que sua muito, uma
multitude de expressões, o durex que mantém
aberta a boca da vítima... e o simples close
de uma webcam cobrindo tudo isso. A confusão
que surge em Opera entre apresentação
e representação (e que exacerba e desespera
Argento nos seus filmes posteriores) morre de imediato
aqui: enquanto se escreve um roteiro, enquanto se tenta
empregar tanto um conceito quanto uma função
ao terror é possível pensar em
até que ponto realmente vale a pena ir e onde
se deve abandonar e deixar estar tudo isso. Ainda no
primeiro jogo entre o psicopata jogador de pôquer
e a policial Anna Mari nada mais ideal que a decisão
do oficial superior a Mari em não permiti-la
jogar, em não aceitar o pedido de jogo do psicopata:
num curto intervalo de tempo esse vacilo resulta em
uma vítima estraçalhada pelo "jogador
de cartas". É desta forma que Argento, após
16 anos de procura, descobre uma nova forma de fascismo
no campo do terror, falsamente oposto mas na realidade
corrente com o do assassino de Opera: ausentar-se,
não engajar-se perante o espetáculo proposto.
É a partir desta descoberta que O Jogador
de Cartas será a história de todas
as histórias que jamais puderam existir plenamente
em outros Argento: a de um assassinato que resulta na
formação de um casal (ênfase em
"formação de casal": o pianista e a repórter
em Prelúdio Para Matar, o jornalista e
a paranormal anoréxica em Trauma), a de
uma adoção (Jennifer Connelly e Donald
Pleasence em Phenomena, Christina Marsillach
e Ian Charleson em Opera), da negação
de um passado de sombras (Carlo em Prelúdio
Para Matar, Peter Neal em Tenebrae), de uma
súplica ao abandono das máquinas pelo
retorno da percepção, das tecnologias
de outrora, das arquiteturas, mesmo da figura do investigador
enquanto geólogo (esta idéia, tão
presente em Síndrome Mortal, Sleepless
e Phenomena, é curiosamente bastante oposta
às apostas de Argento em primeiros trabalhos
como Quatro Moscas no Veludo Cinza e O Pássaro
das Plumas de Cristal)... Há, enfim, muita
coisa de Argento aqui (o que sempre é bom), mas
há também uma luz refrescante que confere
novos contornos a velhos objetos (a ver que a principal
referência de O Jogador de Cartas não
vem da alquimia como em Inferno e Suspiria
nem da grande literatura de mistério como em
Tenebrae e Phenomena, mas sim do pulp
mais antiquado, do completo folhetim que é um
livro de regras e estratégias do jogo de pôquer).
Mas ainda é o caso de um artista se fazendo passar
por artesão. Parece mesmo que Argento se recolheu
às condições mínimas para
justamente poder refletir melhor acerca do mínimo,
dos rudimentos que compõem seu cinema. O Jogador
de Cartas tem o mesmo tipo de beleza tardia que
vemos em certos filmes como Rio Lobo ou Cão
Branco: a realização é um pouco
desleixada; as idéias são muitas e nem
sempre o espectador tem o tempo necessário para
organizá-las num todo coerente; a dramaturgia
é mais expansiva que os recursos materiais/cênicos
do filme permitem a ela ser; os problemas de realização
acabam sendo incorporados de tal maneira que parecem
parte fundamental do filme. Um elogio à simplicidade,
ou ao menos de uma certa idéia de simplicidade,
vindo de um cineasta como Argento: como não se
comover com esta tentativa de equilíbrio ou com
o envolvimento de Argento por - finalmente! - uma personagem
feminina que consegue sair do marasmo e da anemia, do
desencantamento e do niilismo sobre os quais o diretor
fez repousar as protagonistas de Trauma, Síndrome
Mortal e Um Vulto na Escuridão (as
três não coincidentemente interpretadas
por Asia Argento, filha do diretor)? Pois O Jogador
de Cartas será também a descoberta
de um primeiro corpo pós-Asia ao qual se referir,
um corpo atraente e contagiante que atende pelo nome
de Stefania Rocca. Contida, discreta e cautelosa ao
início do filme, lembrando muito a protagonista
policial de Síndrome Mortal, Rocca realiza
a passagem de uma esquizofrênica recatada a uma
atlética, hiper-ativa e sensual agente policial.
Com novos corpos e campos para explorar e descobrir
Argento pode finalmente pôr suas velhas cartas
à mesa. O Jogador de Cartas: o embate
final entre o mundo novo onde se vive e o velho mundo
pelo qual se anseia, entre uma policial italiana e um
detetive inglês, entre as pessoas próximas
que nos importam tanto e alguém distante que
precisamos defender a qualquer custo (e que custos...),
entre o digital e o analógico. Argento se junta
a John Carpenter (Fantasmas de Marte), Brian
De Palma (Femme Fatale) e Claude Chabrol (A
Teia de Chocolate) no front de um cinema-fantasma,
de uma operação canibal de destruição
e renovação de cânones, de um holocausto
criativo que pondo tudo a perder recupera justamente
tudo: medos, terrores, assombrações,
sustos, climas, a capacidade do absurdo, a noite, a
poesia, a morte e a vida. E depois de 16 anos, pela
primeira vez desde Opera, será novamente
a vida que faz surgir o maior de todos os sustos: na
cena final a policial Anna, andando numa viela escura
à noite, recebe uma ligação no
seu celular. Uma voz feminina lhe informa que está
grávida. Nos instantes posteriores o mundo em
toda a sua confusão transfigura-se em seu rosto:
confusão, estupor, surpresa, dúvida, alegria,
angústia, a vida e nada mais. Não
seria este o contraplano perfeito das últimas
cenas de Dois Olhos Satânicos, Síndrome
Mortal e Um Vulto na Escuridão, esta
fagulha de luz em meio à escuridão, esta
esperança de que o mundo permanece o mesmo apesar
de suas mais insanas e dolorosas mudanças?
Obrigado, maestro.
Bruno Andrade
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