Uma
estrada americana. Sob a música-tema do filme,
um carro avança em direção à
câmera. Pela janela, vê-se o rosto familiar
de Jimmy Stewart. Enquanto dirige, ele balança
a cabeça, ao ritmo da música. Logo se
reconhece: um jazz elegantíssimo. Do mais puro
Duke Ellington. E o que marca o espectador, a imagem
que não lhe sairá do espírito durante
os 160 minutos restantes - entre intrigas e complôs,
entre estupro e assassinato, entre Bem e Mal, justiça
e injustiça, verdade, mentira... - é
Jimmy balançando a cabeça, com um sorriso
malandro.
Talvez este plano inicial de Anatomia de um crime
nada queira dizer. Verdade que ele não parece
dos mais funcionais. É difícil dar-lhe
um sentido, além da piada; mas é certo,
entretanto, que ele anuncia o espírito do que
vem pela frente. Anuncia que o filme vai girar em torno
daquele personagem (o que balança a cabeça)
e que aquele personagem gosta de jazz. Esta última
afirmativa pode parecer supérflua, mas explico:
gostar de jazz, aqui, não é só
gostar de uma música, mas de um estilo de
vida - de enxergar a vida: como cineasta, como
músico, como advogado e homem da lei. Ou como
um simples ser de passagem por este planeta, tentando
fazer o melhor e se divertir (afinal, para emprestar
uma frase do próprio personagem, uma dessas frases
de almanaque que proferidas por Stewart soa de uma profundidade
abissal: "As pessoas não são sempre
boas ou sempre más: as pessoas são muitas
coisas").
O personagem em questão se chama Paul Biegler
e é advogado, de ótima reputação.
Quando o vimos de carro, no plano inicial, ouvindo Duke
Ellington, voltava ele de uma pescaria. O salário
de sua empregada está atrasado, assim como -
é provável - a maioria de suas contas.
Acima de tudo, faz muito tempo que ele não pega
um bom caso. Despreocupado com as dívidas e com
o desemprego, ele pesca. Ainda no carro, passando por
um bar, encontra Parmall (Arthur O’ Neill), gênio
da advocacia e inseparável amigo, extensão
de seu espírito vadio - mesmo que um pouco
mais descontrolado na bebida - e que o acompanha
em longas madrugadas filosóficas, onde a ciência
do direito é discutida entre dois acordes de
piano. Pois, como se sabe, Biegler gosta de jazz. Nesta
mesma noite, ele dedilha o piano, em companhia do amigo,
quando o telefone toca. Segue então uma seqüência
memorável, em que Biegler conversa no telefone
dedilhando o piano, e os acordes elegantes ditam o ritmo
do filme, mostrando que Anatomia de um Crime tem
um jeito, uma sonoridade, que passa intrinsecamente
pelo jazz.
Começa a se desenrolar a intriga, o processo
se anuncia. Mais um filme de tribunal. Sabemos que será
preciso obedecer algumas regras. Um gênero ordena
certos clichês, de que o filme não escapará
(até o final se parece muito com o de Testemunha
de Acusação). Assim, temos dois advogados,
gênios do direito, ambos fora do sistema.
Ou seja, puros, porque não sujaram a mão
com o arrivismo, e, portanto, renegados pelo próprio
sistema. Lembremos a regra máxima: o primeiro
conflito de um filme de tribunal não é
o caso (um conflito externo), e sim o advogado (com
seu conflito interno). Aos poucos, é claro, os
dois conflitos irão se misturar. Às vezes,
temos o advogado que perdeu a reputação;
outras, o que perdeu o amor da filha, ou da esposa;
há, ainda, o que perdeu a fé e quase tudo
que poderia perder. O caso é sempre sua redenção,
o único jeito de recuperar o que perdeu (quem
não se lembra de Paul Newman em O Veredicto:
"Não haverá outro caso... Este caso
é o caso! Este caso é o caso!").
Paul Biegler, por sua vez, está mais para um
solteirão (na linha de um Charles Laughton em
Testemunha de Acusação, se bem
que menos afetado) que parece querer recuperar seu amor
pelo direito.
Mandamentos respeitados, Anatomia de um Crime
vai além. Logo se vê que este não
é, tão somente, um filme de tribunal.
Apesar de carregar todos os clichês do gênero,
a obra de Preminger transita entre diversas categorias.
E com toda naturalidade, simplicidade, elegância:
o filme flui. Fluir quer dizer não forçar,
não se fazer sentir, perceber. Nenhum esforço
- aparente - de direção. De musical
a filme noir, de filme noir a drama, de
drama a tribunal... Aí está a sonoridade.
Neste sentido, a música de Duke Ellington não
cumpre uma função meramente decorativa.
Preminger, que é talvez o cineasta que melhor
utilizou a música no cinema, faz do jazz uma
voz interior de seus personagens. (Esta, inclusive,
não foi a primeira vez que Preminger usou o jazz.
A trilha de O Homem do Braço de Ouro,
composta por Elmer Bernstein, é a primeira integralmente
inspirada pelo jazz em Hollywood. Além disso,
enquanto os outros filmes sempre usaram o gênero
para criar atmosferas e ambientes – normalmente de forma
negativa, evocando o mundo das drogas –, a música
de Bernstein tira todo um potencial dramático
do jazz, até então inédito no cinema.)
A seqüência do bar, em que Duke toca com
seus parceiros de sempre (Johnny Hodges, Clark Terry,
Harry Carney e Paul Gonsalves) testemunha entre os músicos
a mesma cumplicidade entre Biegler e Parmall - algo
de um companheirismo tocante.
Esta mesma cumplicidade se dá entre todos os
elementos do filme - música, imagem, atores,
fotografia, montagem - se completando e formando
um só. A impressão que se tem, principalmente,
é de que estão todos em seu melhor momento,
de que Preminger tirou o máximo de cada um, compartilhando
sua elegância, emoção e sutileza,
numa unidade perfeita, entrosada, que vai do contra-regra
ao porteiro do estúdio. Poderia haver realização
maior para um diretor de cinema? Formada a simbiose,
fica impossível não funcionar. O filme
corre, tranqüilo, como numa longa reta, sem acidente
nenhum.
Bolívar Torres Corrêa
(VHS/DVD Columbia)
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