MENINOS DE DEUS
Peter Care, The dangerous lives of altar boys, EUA, 2002

Um primeiro problema que já condiciona nossa relação com o filme: a tradução do seu título para o Brasil. Isso porque o nome Meninos de Deus dá um certo “peso religioso” ao filme, criando uma expectativa ou de uma exploração do tema dos abusos infantis por padres/freiras, ou de um filme catequizante. O título original, que soma o “Dangerous Lives” aos “Altar Boys” contém o tom que o filme realmente pede: o de uma aventura adolescente com algo de quadrinístico – o que está mais que incorporado pela narrativa na participação de Todd McFarlane em inúmeros momentos, com seqüências animadas que representam o imaginário dos meninos-protagonistas do filme. O fato é que a questão religiosa está bem longe do centro do filme, e aparece mais como um clichê quase quadrinístico (“a freira sinistra”) do que como assunto central.

Porque o tema de Meninos de Deus é (sim, mais uma vez) a dor da adolescência, a estranheza desta fase, a dificuldade de adaptar-se aos seus próprios sentimentos, e ainda mais adaptar estes em relação a um grupo, a uma organização social. E, neste sentido, o filme de Peter Care revela-se surpreendentemente sensível e capaz em inúmeros momentos, mas em especial em todos que se relacionam com o caso de amor entre um dos protagonistas e uma menina da escola – que inclui uma das mais frontais e verdadeiras inserções do tema da descoberta da sexualidade vistos, pelo menos, no cinema americano recente (mas não só). Estas cenas, e em especial a jovem atriz Jena Malone emprestam uma pungência ao filme, uma força um tanto inesperadas. Força esta que, infelizmente, não está resolvida de todo no storytelling, no desenvolvimento narrativo do filme, que por vezes parece dar voltas demais em torno do próprio rabo.

É verdade que tudo que se relaciona com o personagem de Kieran Culkin (o “marginal” do grupo) tem um tom eventualmente equivocado (apesar da inegável força do ator, como já visto antes em A Estranha Família de Igby) – como a mais que desnecessária cena em que se vê o menino alijado do carinho num lar de pais que brigam o tempo todo (isto num filme que surpreende por quase sempre ignorar a figura dos pais na formação dos jovens). E é verdade também que especialmente o final possibilita uma leitura mais estreita do filme como um conto moralista exacerbado. No entanto, há que se ver como é na animação que o filme vem se fechar (é ela que, de forma geral, e com uma violência um tanto inesperada, costura e dá sentido ao filme), e aí este final vai ser recontextualizado. Primeiro pelo uso da idéia de “Episódio 1” (portanto, algo a continuar) e, finalmente, com a ressurreição quadrinesca do jovem Culkin. Ressurreição esta que indica que não havia nada de errado, segundo o filme, com o espírito do que este personagem representava, sua revolta e rebeldia (esta sim seria uma leitura moral que poderia haver) - sua morte trata-se tão somente do início de um processo mais longo que escapa ao filme acompanhar. Reforça-se o personagem, assim, como figura mítica, quase sobre-humana (o que remete de novo aos quadrinhos) e que sua morte é muito semelhante às perdas tão comuns nas histórias de super-herói. Não dá para ignorar, portanto, que o filme não termina numa morte, e sim numa ressurreição – e assim Meninos de Deus revela-se muito mais interessante e bem menos moralista do que uma leitura ligeira possa supor.

Eduardo Valente