Um primeiro problema que já
condiciona nossa relação com o filme: a tradução do
seu título para o Brasil. Isso porque o nome Meninos
de Deus dá um certo “peso religioso” ao filme, criando
uma expectativa ou de uma exploração do tema dos abusos
infantis por padres/freiras, ou de um filme catequizante.
O título original, que soma o “Dangerous Lives” aos
“Altar Boys” contém o tom que o filme realmente pede:
o de uma aventura adolescente com algo de quadrinístico
– o que está mais que incorporado pela narrativa na
participação de Todd McFarlane em inúmeros momentos,
com seqüências animadas que representam o imaginário
dos meninos-protagonistas do filme. O fato é que a questão
religiosa está bem longe do centro do filme, e aparece
mais como um clichê quase quadrinístico (“a freira sinistra”)
do que como assunto central.
Porque o tema de Meninos de Deus é (sim, mais
uma vez) a dor da adolescência, a estranheza desta fase,
a dificuldade de adaptar-se aos seus próprios sentimentos,
e ainda mais adaptar estes em relação a um grupo, a
uma organização social. E, neste sentido, o filme de
Peter Care revela-se surpreendentemente sensível e capaz
em inúmeros momentos, mas em especial em todos que se
relacionam com o caso de amor entre um dos protagonistas
e uma menina da escola – que inclui uma das mais frontais
e verdadeiras inserções do tema da descoberta da sexualidade
vistos, pelo menos, no cinema americano recente (mas
não só). Estas cenas, e em especial a jovem atriz Jena
Malone emprestam uma pungência ao filme, uma força um
tanto inesperadas. Força esta que, infelizmente, não
está resolvida de todo no storytelling, no desenvolvimento
narrativo do filme, que por vezes parece dar voltas
demais em torno do próprio rabo.
É verdade que tudo que se relaciona com o personagem
de Kieran Culkin (o “marginal” do grupo) tem um tom
eventualmente equivocado (apesar da inegável força do
ator, como já visto antes em A Estranha Família de
Igby) – como a mais que desnecessária cena em que
se vê o menino alijado do carinho num lar de pais que
brigam o tempo todo (isto num filme que surpreende por
quase sempre ignorar a figura dos pais na formação dos
jovens). E é verdade também que especialmente o final
possibilita uma leitura mais estreita do filme como
um conto moralista exacerbado. No entanto, há que se
ver como é na animação que o filme vem se fechar (é
ela que, de forma geral, e com uma violência um tanto
inesperada, costura e dá sentido ao filme), e aí este
final vai ser recontextualizado. Primeiro pelo uso da
idéia de “Episódio 1” (portanto, algo a continuar) e,
finalmente, com a ressurreição quadrinesca do jovem
Culkin. Ressurreição esta que indica que não havia nada
de errado, segundo o filme, com o espírito do que este
personagem representava, sua revolta e rebeldia (esta
sim seria uma leitura moral que poderia haver) - sua
morte trata-se tão somente do início de um processo
mais longo que escapa ao filme acompanhar. Reforça-se
o personagem, assim, como figura mítica, quase sobre-humana
(o que remete de novo aos quadrinhos) e que sua morte
é muito semelhante às perdas tão comuns nas histórias
de super-herói. Não dá para ignorar, portanto, que o
filme não termina numa morte, e sim numa ressurreição
– e assim Meninos de Deus revela-se muito mais
interessante e bem menos moralista do que uma leitura
ligeira possa supor.
Eduardo Valente
|