Além
dos inéditos – e obrigatórios – Alice
Não Mora Mais Aqui e Quem Bate à
Minha Porta?, a caixa que a Warner lançou
com quatro filmes de Martin Scorsese ainda traz Caminhos
Perigosos e Depois de Horas, dois dos melhores
filmes dele, que já existiam em VHS mas agora
ganham cópias em DVD com alguns extras interessantes.
Apesar do recorte parecer meio aleatório, há
alguma ligação possível entre os
filmes, a começar pelo fato de que são
obras menos vistas e menos comentadas de Scorsese e,
no entanto, estão entre as melhores coisas por
ele realizadas. Pode-se fazer associações
mais curiosas também, a exemplo daquela que descobrirmos
ao ver o making of que vem como extra no DVD
de Depois de Horas. Nesse making of, descobrimos
que Griffin Dunne, protagonista, produtor e co-roteirista
de Depois de Horas, havia feito teste para o
personagem do filho de Alice em Alice Não
Mora Mais Aqui. O problema é que ele já
tinha dezoito anos, e o personagem tem doze. Segundo
Dunne, Scorsese olhou para ele e disse algo como: "Você
é um pouco velho para o papel, mas vamos ver
o que acontece". Ainda que Scorsese não
se lembre daquilo, para Dunne foi um momento inesquecível,
o que tornou o projeto de Depois de Horas uma
espécie de sonho realizado.
Mas o ator que fez Tommy, o filho de Alice, naturalmente
não foi Griffin Dunne, e sim o menino Alfred
Lutter, que um ano depois apareceria em Love and
Death, de Woody Allen. A geração dele
no filme é vista como um berço de profunda
irreverência. Tommy e sua amiga (feita por Jodie
Foster ainda pré-adolescente – e muito cativante
na sua interpretação) são pessoas
tão mais espertas que os adultos quanto mais
desrespeitosas. Eles desdenham dos gostos e da conduta
emocional de seus pais, assim como das instituições
e da monotonia do cenário interiorano do filme,
reagindo a isso com tédio quase permanente. Um
dos grandes trunfos do filme está justamente
no detalhamento de gestos que não só Tommy
e Alice, mas todos os personagens apresentam. É
impressionante como, em toda a carreira de Scorsese,
seus personagens estão sempre no estágio
ideal em que a tipologia, a ambigüidade e a densidade
existencial não se fecham uma na outra, mas se
misturam para originar um concentrado protéico.
Foi justamente Gangues de Nova York a motivação
principal da pauta da edição 49 de Contracampo,
em que a construção do mito norte-americano
no cinema era revista levando em conta o que se desenvolveu
a partir do pós-Easy Rider. Estávamos
falando de um movimento de revisão crítica
que começa justamente com filmes como Alice
Não Mora Mais Aqui, cujo prólogo não
poderia ser mais emblemático: Alice, ainda criança,
caminha pelos arredores de sua pequena casa situada
em meio a um vale do oeste americano. O formato da tela
está reduzido a 1:1.33, formato clássico
por excelência. O cenário é nitidamente
de estúdio, e a fotografia cria um pôr
do sol que, de tão avermelhado, soa bastante
artificial. A trilha sonora, é claro, entoa uma
típica introdução de melodrama.
Alice vagueia pelo espaço e fala seus sonhos
em voz alta, até que sua mãe a chama para
entrar, pois está tarde. É então
que, convidado pela resposta mal-criada que Alice dirige
à sua mãe, o filme realmente começa:
a música é interrompida, a tela implode
e se refaz em 1:1.85, ao passo que começa um
estridente rock dos anos 70. A câmera percorre
uma rua de casas iguais, escolhe uma delas e a invade
(no plano em que Scorsese deixa já de entrada
sua assinatura virtuosística). Em suma, o filme
é direto com relação à sua
proposta. Mas o que faz dele uma obra realmente singular
é que esse recado inicial de "bem vinda
à realidade, Alice" não é
uma afirmação de fratura irreparável
entre o imaginário sedutor do sonho americano
e a vida amarga que ele pode encobrir. O que Scorsese
faz aqui é o que Wenders depois também
faria, ainda que na ótica do estrangeiro (Paris,
Texas, Alice na Cidade): a reaproximação
entre essa mitologia desacreditada (porém ainda
fascinante), que povoou o cinema durante muito tempo,
e o homem a ela não mais sensibilizado. O agente
desse processo, evidentemente, é o próprio
cinema. Após sofrer nas mãos de homens
abrutalhados e indiferentes aos seus sonhos (o que inclui
o marido, um motorista de caminhão da Coca-Cola
que falece em acidente no início), Alice termina
o filme achando um homem que pelo menos tenta compreendê-la.
Ela decide, então, desistir da jornada de redescoberta
e retorno às origens (Alice estava disposta a
retornar à sua cidade natal) e ficar por ali
mesmo, morando ao lado do personagem de Kris Kristofferson.
Ao contrário de um signo mor da cultura consumista
(o logo da Coca-Cola do uniforme que o marido de Alice
não tirava nem quando estava em casa), ele usa
um chapéu de caubói e tem como hobby tocar
canções country no violão. De um
lado e de outro, é de um estilo genuinamente
americano que se está falando, não importa
em que versão ele apareça ou vá
agradar mais.
Assim como Five Easy Pieces/Cada um Vive Como Quer
(1970), memorável obra-prima de Bob Rafelson,
Alice Não Mora Mais Aqui possui ares de
western moderno, ganha a estrada (como era palavra
de ordem naquele momento) e se concentra em interiores
para traçar um caloroso e pulsante retrato da
vida do americano médio. São dois filmes
que revelam cineastas ao mesmo tempo profundamente americanos
– interessados tanto na crônica do seu cotidiano
quanto na projeção do imaginário
mais típico que perpassa toda a nação
– e marcadamente tingidos pelo cinema moderno europeu.
A câmera na mão em Alice Não
Mora Mais Aqui em certos momentos atinge uma agressividade
de movimentos que sugere uma vontade de intervir fisicamente
na cena, tirando a decupagem do plano das composições
dramáticas e das motivações psicológicas
e colocando-a no plano da corporalidade que em Scorsese
é irredutível a qualquer perscrutação
de interioridade. Ele antecipa seus movimentos aos dos
personagens, mas se equaliza com eles da mesma forma.
Ellen Burstyn, que interpreta a protagonista e venceu
o Oscar por esta atuação, ganha um espaço
de criação que poucos diretores são
capazes de oferecer sem abdicar de tamanha preocupação
estilística. Indo na direção contrária
aos tradicionais seriados americanos de família,
Alice acabou gerando uma série televisiva
– o que diz bastante sobre o estado de coisas na América
dos anos 70.
Cléber Eduardo
(DVD Warner)
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