Alexandria...Nova
York não contém apenas o deslocamento geográfico
do idoso cineasta Yehia (Mahmoud Hemida) para a retrospectiva
de sua obra na capital do mundo. Há, também, a jornada
afetiva para encontrar o filho Alexander (Ahmed Yehia),
bailarino de sucesso, bem como as lembranças do envolvimento
amoroso que gerou este filho e da formação acadêmica
do diretor em sua passagem anterior pelos EUA. A estas
viagens, Youssef Chahine soma uma terceira: a procura
pela afirmação do Outro – dos árabes, dos imigrantes,
dos povos do terceiro mundo, do artista – através do
confronto com a supremacia homogeneizante da cultura
e da economia norte-americana. É na linha tênue entre
a admiração e a negação, entre o pertencer e o não pertencer,
entre excluir-se e ser excluído, que Chahine posiciona
seu filme, a um só tempo esfuziante e melancólico.
Alexandria...Nova
York, título que executa comparação histórica entre
a mítica cidade de Alexandria, centro cultural da Antigüidade
durante o apogeu do Império Egípcio, e Nova York, símbolo
do poderio americano, que deseja se impor como referência
da arte contemporânea, substituindo e tomando o lugar
de sua longínqua antecessora. Como veículo desta dominação,
teríamos o cinema hegemônico da indústria hollywoodiana,
contestado por Yehia na coletiva de imprensa na mostra
em sua homenagem, quando diz, categoricamente, que os
filmes os quais realiza sempre tratam da questão do
Outro, da alteridade, da diferença.
Alexandria...Nova
York, no qual o mesmo ator (Ahmed Yehia) interpreta
Alexander, no presente, e o jovem Yehia, no passado,
ambos cindidos entre as duas realidades conflitantes
das quais fazem parte sem, no entanto, integrarem-se:
seres à margem, o primeiro convive com o fantasma do
pai árabe, da origem egípcia, que o transforma forçosamente
em estrangeiro dentro do próprio país em que nasceu
– os EUA –, enquanto o segundo encampa a batalha a favor
das vozes minoritárias, embora deva a construção de
sua identidade artística e nacional à potência a que
agora se opõe e que, paradoxalmente, presta-lhe homenagem.
Yehia, que viveu antes da revolução e que conhece a
alegria de viver, e Alexander, que habita a sociedade
pós-utópica onde o sucesso a qualquer preço substitui
os destroços das velhas ideologias: imagens em espelho
um do outro, que apresentam a transição do sonho ao
pesadelo americano, conforme expresso na belíssima fala
em que o pai diferencia o romantismo do cinema clássico
à brutalidade dos blockbusters atuais com Sylvester
Stallone.
Alexandria...Nova
York, quando duas estratégias de cinema se chocam:
os filmes exportados pela indústria de Hollywood e aqueles
produzidos localmente em resistência a ela. Para expô-las
na tela, Chahine se vale de todos os clichês e dos gêneros
cinematográficos consagrados, misturando trama folhetinesca,
melodrama e musical, mas com energia e vitalidade feéricas
de quem é apaixonado pelo cinema. Filme abusivo e excessivo,
que explode as raias do kitsch
rumo à cafonice pura, que conjuga ousados movimentos
de câmera com visual e atuações anti-naturalistas para
recuperar a magia primordial do meio, a inocência da
época em que Méliès divertia as massas, nas feiras,
com suas trucagens delirantes. Exemplo eloqüente da
proposta do cineasta está na seqüência em que encena
musical a partir de Carmem, de Bizet - unindo sonho,
beleza, espetáculo, sem que tudo não passe de enorme
pastiche bem humorado.
Alexandria...Nova
York, que mostra a maior cidade do planeta inicialmente
sempre com panorâmicas em vídeo, imagem feia, pobre,
dessacralizante, para depois retornar à película quando
desce às ruas, junto à população. Amor e ódio, fascínio
e temor, exibidos na antológica seqüência na qual o
grupo de formandos, do qual participa Yehia, canta a
plenos pulmões “God Bless America”, única vez em que
a língua inglesa é utilizada (mesmo nos EUA, a obra
é falada em árabe, clara opção política de Chahine),
cena completada com insuspeita coreografia de diplomas.
Deixar-se seduzir pelo centro de poder, ou não, é a
escolha que Yehia e Alexander devem realizar, e a qual
os afasta em definitivo, cada um caminhando para lados
opostos, pois, na guerra, as vítimas são sempre as relações
afetivas que unem os homens.
Alexandria...Nova
York, filme apaixonante, tanto em sua alegria, quanto
em sua tristeza.
Paulo Ricardo de Almeida
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