O letreiro que dá início
ao filme informa que este se baseia em fatos reais,
de um caso jamais solucionado. Também acrescenta
que, por se tratar de ficção, personagens,
falas e peripécias foram alteradas ou incluídas.
Ironia, claro, do diretor: desde quando há peripécias,
ou acontecimentos que fujam do banal, na obra de Eric
Rohmer? Em Agente Triplo, irmão gêmeo
(não univitelino) de A Inglesa e o Duque,
o cineasta investiga novamente as relações
entre a História e a vida cotidiana, com o rigor
característico – e inacreditável – na
construção do espaço cênico
e do tempo da narrativa. Devido à recepção
problemática de A Inglesa e o Duque na
França (recusado pelo Festival de Cannes, e exibido
na retrospectiva que homenageou o diretor em Veneza),
Eric Rohmer ameaçou desistir do cinema. Ao, felizmente,
reconsiderar a decisão, ele retorna com Agente
Triplo que, embora não faça parte
dos grandes ciclos que marcam sua carreira (Seis Contos
Morais, Comédias e Provérbios, Contos
das Quatro Estações), forma com o filme
anterior dístico que impressiona tanto pela coerência
conceitual, quanto pelas diferenças estéticas.
Como em A Inglesa e o Duque, Agente Triplo
fala sobre a História (com H maiúsculo
mesmo) da França, acerca do desenrolar de fatos
decisivos e fundamentais que conduzem a momento histórico
específico, quando o corpo social entra em convulsão
e se transforma. Se A Inglesa e o Duque enfoca
a Revolução Francesa, sobretudo a Era
das Antecipações (o "terror",
a república jacobina de Robespierre), Agente
Triplo se detém sobre a vitória da
Frente Popular – aliança de esquerda, capitaneada
pelo Partido Comunista - que alcançou o poder
nas eleições gerais de 1936, imprensada
entre o fantasma da Revolução Russa de
1917 e o stalinismo então vigente na URSS e a
ascensão do nazi-fascismo na Alemanha de Hitler.
Ambos os filmes, no entanto, filtram a História
por intermédio dos relacionamentos afetivos,
trabalhando com o impacto dos acontecimentos coletivos
no foro pessoal – a amizade e a admiração
mútua entre Grace Elliot (Lucy Russell) e o Duque
de Orleans (Jean-Claude Dreyfus) no filme anterior,
e agora a paixão e a desconfiança entre
o casal protagonista de Agente Triplo.
Após os letreiros, Agente Triplo abre
com imagens de arquivo – do cine-jornal Pathé
– a respeito das eleições francesas de
1932. Em seguida, a câmera de Rohmer (que volta
à película, depois do experimento digital
de A Inglesa e o Duque) esquadrinha o apartamento
de Fiodor (Serge Renko) e Arsinoé (Katerina Didaskalu),
enquanto o marido acompanha, pelo rádio, a comparação
entre os resultados eleitorais de 1932 e de 1936. Homenageando
a seqüência inicial de Janela Indiscreta,
Eric Rohmer revela a identidade do personagem principal:
através do ícone religioso ortodoxo, dos
livros em russo e de retratos do czar e de sua corte,
descobre-se que Fiodor integra a aristocracia exilada
na França depois da revolução socialista,
e que é parte do exército branco que,
ameaçado pela guinada do país que o acolhe
para a esquerda, combate o governo soviético.
"Revelar a identidade", no entanto, é
força de expressão, uma vez que a proposta
de Rohmer consiste justamente em confundir o espectador,
apostando na radical opacidade de Fiodor: afinal, quem
é ele? Marido dedicado e apaixonado que deseja
reformar a organização em que trabalha?
Espião a serviço dos soviéticos,
dada a amizade suspeita que mantém com os vizinhos
comunistas? Fascista de conchavo com o regime hitlerista,
o qual bombardeia sem piedade a Espanha republicana
para colocar Franco no poder? Mais do que somente o
drama individual do protagonista, que não pode
dizer a verdade sequer à esposa, Fiodor encarna
a fragilidade da política européia do
entre-guerras, cindida entre o comunismo e o nazismo
(que não se diferenciam para o cineasta, que
faz questão de mostrar o pacto germano-soviético
que dividiu a Polônia), e que convive com resquícios
da belle époque que teimam em continuar.
Para gerar e alimentar a dúvida sobre as reais
intenções de Fiodor, Eric Rohmer não
utiliza truques, ganchos ou reviravoltas de roteiro,
tão presentes no cinema atual, de um Christopher
Nolan ou Jorge Furtado. Agente Triplo só
existe devido à inigualável mise en
scéne que o estrutura. Assim, se em A
Inglesa e o Duque o cineasta aplica imagens digitais
para compor o espaço cênico que seria impossível
com a película, com a técnica tradicional
(pois não há registro fílmico da
França do século XVIII), em Agente
Triplo ele retorna à película, na
medida em que pretende aproveitar o código imagético
já criado pelo cinema para o período de
tempo em questão, com o qual contribuem as seqüências
de documentário extraídas dos cine-jornais
que pontuam a narrativa.
Está em jogo, tanto em A Inglesa e o Duque,
quanto em Agente Triplo, a relação
entre interior e exterior, ou seja, entre o dia-dia
pessoal e emotivo dos personagens e o ambiente sócio-político
que os cerca. Enquanto em A Inglesa e o Duque
esta relação acontece mediada pelas imagens
digitais que representam os exteriores, em planos praticamente
contemplativos, em Agente Triplo ela se dá
pelas imagens de arquivo que, se situam os protagonistas
nos fatos históricos mostrados, ao mesmo tempo
os excluem, pois negam a participação
direta deles para além dos limites internos (seja
do apartamento, seja da casa de amigos em que se hospedam
no decorrer do filme). De fato, a omissão de
seqüências exteriores em Agente Triplo
é quase total: salvo a caminhada de Fiodor pela
rua para buscar o carro e o passeio da Arsinoé
pelo jardim, o casal permanece confinado, dialogando
entre si, participando de festas com outros exilados
russos, ou jantando e discutindo arte com os vizinhos
comunistas (as vanguardas revolucionários de
esquerda em oposição ao academicismo dos
quadros de Arsinoé). Atitudes corriqueiras, as
quais Rohmer privilegia através de elipses temporais
que se concentram nesta banalidade diária que
lhe é permitido assistir.
Conversas, diálogos, discussões: todas
as ações externas à cena que se
presencia são narradas pelos personagens, que
apresentam pontos de vista diversos sobre as "peripécias"
que se descortinam ao espectador. Rohmer, através
dos discursos conflitantes – conflitantes porque não
são verdadeiros nem falsos, mas construídos
e aplicáveis a determinadas situações
–, evita os fatos em prol da dúvida, já
que todas as informações acerca das misteriosas
atividades de Fiodor provêm de narrações
indiretas – personagens que ouviram dizer e que espalham
boatos – ou da boca do próprio protagonista,
o qual não esconde (ou esconde?) considerar a
mentira como dever profissional.
Dessa feita, mesmo o final aparentemente estapafúrdio,
completamente arbitrário, serve aos propósitos
de Eric Rohmer, visto que preserva o mistério
sobre o destino de Fiodor. Para onde ele foi, como escapou?
Está vivo, morreu? Nesta farsa brilhantemente
encenada, a única certeza que se tem é
quanto ao desfecho trágico de Arsinoé:
como em A Inglesa e o Duque, o sentimento, em
Agente Triplo, também não resiste
à politicagem de sua época.
Paulo Ricardo de Almeida
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