29 Palms, terceiro filme
de Bruno Dumont, traz duas figuras das mais conhecidas
do cinema contemporâneo: o deserto e a estrada. Não
é, contudo, de um espaço cuja vastidão é inundada por
um estado afetivo (The Brown Bunny, Gerry)
que ele fala. O filme segue, antes, uma composição em
abismo; sua paisagem é desligada, esvaziada, desmagnetizada.
O deserto em 29 Palms é tanto um meio físico
a ser pisado e sentido em sua concretude quanto o deserto
abstrato do próprio cinema, um deserto onde cada porção
de chão só pode se ligar à porção seguinte graças a
um arcabouço imagético construído pelos filmes anteriores
a ele. Lá se encontram repetições, clichês, monotonia...
interrupção. De todos os ícones que perpassam 29
Palms, nada ressai além da indiferença. Mil representantes
do imaginário cinematográfico se misturam e se perdem
na poeira do deserto. Ouro e Maldição (Stroheim),
A Aventura (Antonioni), Sem Destino (Denis
Hopper), Encurralado (Spielberg), Mad Max
(George Miller), Paris Texas (Wim Wenders), A
Estrada Perdida (Lynch): todos esses filmes parecem
liquidificados e transformados numa massa homogênea
que se espalha pelas imagens de 29 Palms. Bruno
Dumont não faz citações, pois parte da premissa de que
os signos a que está se referindo já foram dinamitados
por uma cultura radicalmente indiferente. O sol de Ouro
e Maldição está aqui tão distanciado da sua origem
que, ainda que alguns o possam ler como signo de jornada
fracassada, já não faz alusão ao filme de que foi decalcado
– remete tão-somente a si mesmo.
O título, que vem de uma cidade californiana que se
gaba pela qualidade de vida oferecida, contrasta com
a imponência dos títulos de seus filmes anteriores (A
Vida de Jesus e A Humanidade). Mas Dumont
não está abandonando suas releituras do cristianismo:
o oeste americano, palco por excelência da construção
de mitos cinematográficos, abriga em 29 Palms
a odisséia pecaminosa de Katia (Golubeva) e David (Wissak),
espécies de Adão e Eva contemporâneos. O filme já começa
com eles expulsos do paraíso, após a perda da inocência,
donde a representação infernal que é feita do deserto
californiano: Katia e David comentam a aridez da paisagem,
temem as queimaduras provocadas pelo sol, sentem o pé
doer quando em contato com o chão acidentado e seco.
Em 29 Palms, o cinema se vê incapaz de figurar
o espaço para além de uma certa frieza de procedimento
técnico. Não há afeição possível nas imagens áridas
do filme. A perspectiva acentuada, a inscrição profunda
dos pontos de fuga: o que isso destaca, no fundo, é
um espaço desmembrado, inóspito. E o homem que nele
transita é desmemoriado, desapegado, carece de conteúdo
histórico. Praticamente tudo que Katia e David fazem
para matar o tempo é dar vazão aos instintos e às necessidades
fisiológicas. Somente os corpos têm direito à fala,
as tentativas de comunicação verbal são quase sempre
fracassadas – o que o filme expõe de maneira bastante
rasa, com cenas em que os clichês de incomunicabilidade
chegam a ser pré-Wenders, talvez até pré-Antonioni (o
diálogo deles na sorveteria é um exemplo). As tomadas
de vista apontam para o infinito, mas as trajetórias
de David e Katia são sempre circulares, acabam no mesmo
lugar de onde partiram (como os giros repetitivos que
a câmera faz num suposto vídeo artístico a que eles
assistem na tv do hotel).
O vazio de 29 Palms é um lugar em que Dumont
ceticamente se aloja. Se pararmos para pensar na obsessão
com que 29 Palms sublinha a idéia de que o mundo
não faz sentido, ou deixou de fazer sentido, encontraremos
aí um modelo extremamente paralítico. O filme se acha
engolfado pelo vacúolo que condensa os limites tanto
do cinema moderno (desenvolver uma estética de representação
da tal ausência de sentido) quanto do que muito cedo
se tomou por cinema pós-moderno (o maneirismo, a brincadeira
com as formas e os conceitos delimitados no passado).
Dumont não só estagna nesse ponto como ainda mergulha
miseravelmente na estratégia de choque fácil, redundando
em abjeções dignas de um Gaspar Noé (Só Contra Todos,
Irreversível). Mas por quê? Por nada: tudo é
necessária e grosseiramente gratuito em 29 Palms
– do que a lamentável cena do estupro obviamente
é o pivô. Não se trata de degradação, mas sim de um
abrupto cataclismo da civilização. O grande problema
de 29 Palms está na maneira torta com que ele
decide enxergar o mundo.
A sexualidade, que começa o filme em estado bruto e
selvagem, primeiro passa por um estágio de negação das
diferenças (ele oferecendo a ela a condução do carro;
ela tapando com a mão o pênis dele na cena em que seus
corpos nus se retorcem na formação de uma imagem única,
figura geométrica pontiaguda que contrasta com as rochas
arredondadas), mas depois culmina na pulverização total
de qualquer ingerência do corpo. No ápice dessa implosão
da sexualidade, uma caminhonete surge do nada, bate
na traseira de David e ele depois é espancado e – como
já foi dito – estuprado sem piedade. A violência latente
nas cenas de sexo entre David e Katia sofre uma inversão
de sinais, volta-se contra eles (negativização por si
só estúpida da vida sexual do casal). David, a quem
a mise en scène concedia um lugar de masculinidade
“pura”, é humilhado perante os olhos desesperados de
Katia. Ela não é estuprada, mas é forçada a ver. Depois
que eles retornam ao hotel, ele se tranca no banheiro
e de lá só sai após algum tempo, para matar a namorada
a facadas, gritando alucinadamente e com a cabeça raspada
tendo um ou outro tufo de cabelo, exatamente como o
Jason da série Sexta-feira 13. Do David transfigurado
– sem máscara de hóquei a atribuir-lhe o carimbo da
psicopatia –, vemos o edema gigantesco que toma conta
de seu rosto (mas não na hora do surto, quando a câmera
apenas o enquadra brevemente, e de costas).
No plano final, ele estará morto no solo do deserto,
filmado de longe. O policial que o encontrou fala pelo
rádio: “Feche a estrada! Não quero que isso vire sensacionalismo”.
Desnecessária tirada de corpo fora, pois se a loucura
brotou do chão como um cacto, tudo que Dumont conseguiu
fazer foi filmá-la do ângulo mais grotesco. Sua propensão
à agressão estética no sentido limitado que o conceito
pode ter, já temida nos filmes anteriores (mas integrada
ao que parece se tratar de outro projeto de cinema),
extravasa agora da pior forma possível. Ainda que
A Vida de Jesus e A Humanidade sejam belos
filmes, torna-se preocupante – para dizer o mínimo –
a carreira do diretor. Nessa de ir ao deserto para encenar
o sadismo cinematográfico mais torpe, quem vai acabar
se queimando – mais do que os personagens expostos ao
sol – é ele mesmo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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