29 PALMS
Bruno Dumont, Twentynine Palms, França/Alemanha, 2003

29 Palms, terceiro filme de Bruno Dumont, traz duas figuras das mais conhecidas do cinema contemporâneo: o deserto e a estrada. Não é, contudo, de um espaço cuja vastidão é inundada por um estado afetivo (The Brown Bunny, Gerry) que ele fala. O filme segue, antes, uma composição em abismo; sua paisagem é desligada, esvaziada, desmagnetizada. O deserto em 29 Palms é tanto um meio físico a ser pisado e sentido em sua concretude quanto o deserto abstrato do próprio cinema, um deserto onde cada porção de chão só pode se ligar à porção seguinte graças a um arcabouço imagético construído pelos filmes anteriores a ele. Lá se encontram repetições, clichês, monotonia... interrupção. De todos os ícones que perpassam 29 Palms, nada ressai além da indiferença. Mil representantes do imaginário cinematográfico se misturam e se perdem na poeira do deserto. Ouro e Maldição (Stroheim), A Aventura (Antonioni), Sem Destino (Denis Hopper), Encurralado (Spielberg), Mad Max (George Miller), Paris Texas (Wim Wenders), A Estrada Perdida (Lynch): todos esses filmes parecem liquidificados e transformados numa massa homogênea que se espalha pelas imagens de 29 Palms. Bruno Dumont não faz citações, pois parte da premissa de que os signos a que está se referindo já foram dinamitados por uma cultura radicalmente indiferente. O sol de Ouro e Maldição está aqui tão distanciado da sua origem que, ainda que alguns o possam ler como signo de jornada fracassada, já não faz alusão ao filme de que foi decalcado – remete tão-somente a si mesmo.

O título, que vem de uma cidade californiana que se gaba pela qualidade de vida oferecida, contrasta com a imponência dos títulos de seus filmes anteriores (A Vida de Jesus e A Humanidade). Mas Dumont não está abandonando suas releituras do cristianismo: o oeste americano, palco por excelência da construção de mitos cinematográficos, abriga em 29 Palms a odisséia pecaminosa de Katia (Golubeva) e David (Wissak), espécies de Adão e Eva contemporâneos. O filme já começa com eles expulsos do paraíso, após a perda da inocência, donde a representação infernal que é feita do deserto californiano: Katia e David comentam a aridez da paisagem, temem as queimaduras provocadas pelo sol, sentem o pé doer quando em contato com o chão acidentado e seco. Em 29 Palms, o cinema se vê incapaz de figurar o espaço para além de uma certa frieza de procedimento técnico. Não há afeição possível nas imagens áridas do filme. A perspectiva acentuada, a inscrição profunda dos pontos de fuga: o que isso destaca, no fundo, é um espaço desmembrado, inóspito. E o homem que nele transita é desmemoriado, desapegado, carece de conteúdo histórico. Praticamente tudo que Katia e David fazem para matar o tempo é dar vazão aos instintos e às necessidades fisiológicas. Somente os corpos têm direito à fala, as tentativas de comunicação verbal são quase sempre fracassadas – o que o filme expõe de maneira bastante rasa, com cenas em que os clichês de incomunicabilidade chegam a ser pré-Wenders, talvez até pré-Antonioni (o diálogo deles na sorveteria é um exemplo). As tomadas de vista apontam para o infinito, mas as trajetórias de David e Katia são sempre circulares, acabam no mesmo lugar de onde partiram (como os giros repetitivos que a câmera faz num suposto vídeo artístico a que eles assistem na tv do hotel).

O vazio de 29 Palms é um lugar em que Dumont ceticamente se aloja. Se pararmos para pensar na obsessão com que 29 Palms sublinha a idéia de que o mundo não faz sentido, ou deixou de fazer sentido, encontraremos aí um modelo extremamente paralítico. O filme se acha engolfado pelo vacúolo que condensa os limites tanto do cinema moderno (desenvolver uma estética de representação da tal ausência de sentido) quanto do que muito cedo se tomou por cinema pós-moderno (o maneirismo, a brincadeira com as formas e os conceitos delimitados no passado). Dumont não só estagna nesse ponto como ainda mergulha miseravelmente na estratégia de choque fácil, redundando em abjeções dignas de um Gaspar Noé (Só Contra Todos, Irreversível). Mas por quê? Por nada: tudo é necessária e grosseiramente gratuito em 29 Palms – do que a lamentável cena do estupro obviamente é o pivô. Não se trata de degradação, mas sim de um abrupto cataclismo da civilização. O grande problema de 29 Palms está na maneira torta com que ele decide enxergar o mundo.

A sexualidade, que começa o filme em estado bruto e selvagem, primeiro passa por um estágio de negação das diferenças (ele oferecendo a ela a condução do carro; ela tapando com a mão o pênis dele na cena em que seus corpos nus se retorcem na formação de uma imagem única, figura geométrica pontiaguda que contrasta com as rochas arredondadas), mas depois culmina na pulverização total de qualquer ingerência do corpo. No ápice dessa implosão da sexualidade, uma caminhonete surge do nada, bate na traseira de David e ele depois é espancado e – como já foi dito – estuprado sem piedade. A violência latente nas cenas de sexo entre David e Katia sofre uma inversão de sinais, volta-se contra eles (negativização por si só estúpida da vida sexual do casal). David, a quem a mise en scène concedia um lugar de masculinidade “pura”, é humilhado perante os olhos desesperados de Katia. Ela não é estuprada, mas é forçada a ver. Depois que eles retornam ao hotel, ele se tranca no banheiro e de lá só sai após algum tempo, para matar a namorada a facadas, gritando alucinadamente e com a cabeça raspada tendo um ou outro tufo de cabelo, exatamente como o Jason da série Sexta-feira 13. Do David transfigurado – sem máscara de hóquei a atribuir-lhe o carimbo da psicopatia –, vemos o edema gigantesco que toma conta de seu rosto (mas não na hora do surto, quando a câmera apenas o enquadra brevemente, e de costas).

No plano final, ele estará morto no solo do deserto, filmado de longe. O policial que o encontrou fala pelo rádio: “Feche a estrada! Não quero que isso vire sensacionalismo”. Desnecessária tirada de corpo fora, pois se a loucura brotou do chão como um cacto, tudo que Dumont conseguiu fazer foi filmá-la do ângulo mais grotesco. Sua propensão à agressão estética no sentido limitado que o conceito pode ter, já temida nos filmes anteriores (mas integrada ao que parece se tratar de outro projeto de cinema), extravasa agora da pior forma possível. Ainda que A Vida de Jesus e A Humanidade sejam belos filmes, torna-se preocupante – para dizer o mínimo – a carreira do diretor. Nessa de ir ao deserto para encenar o sadismo cinematográfico mais torpe, quem vai acabar se queimando – mais do que os personagens expostos ao sol – é ele mesmo.

Luiz Carlos Oliveira Jr.