O primeiro filme de Mania Akbari,
protagonista-condutora do Dez de Abbas Kiarostami,
tem seu projeto nascido diretamente do filme em que
ela foi atriz: câmera digital, longos takes de discussões
acerca dos papéis femininos e masculinos na sociedade
iraniana, trajetos em carro (mas também no trem, num
teleférico e num barco), a potência da palavra como
condutora da obra. É um filme que deriva um pouco mimeticamente
da revolução digital de Kiarostami, mas atribuir a 20
Dedos o simples papel de adendo de luxo a Dez
parece ser um julgamento um pouco injusto. Ao contrário
de O Desaparecido de Lee Kang-sheng (em relação
ao cinema de Tsai Ming-liang), aqui copia-se menos a
forma e os tiques do que o propósito: montar esquetes
para pôr em questão as posições masculina e feminina
dentro da sociedade iraniana. Se Dez se constituía
todo a partir da ausência do homem adulto (na tela,
no discurso) para melhor mostrar sua presença (como
categoria fantasmática a partir da qual as mulheres
precisam moldar sus vidas), 20 Dedos se constrói
a partir da confrontação direta com ele. Se o filme
de Abbas Kiarostami era a criação de um foco de resistência,
o de Mania Akbari é a entrada no campo de batalha.
E é realmente como um filme de guerra que 20 Dedos
se estabelece. Um homem e uma mulher, os mesmos
atores, mas em diferentes fases do relacionamento (namorados,
recém-casados, casados com filhos, etc.), lutam pela
primazia de seu discurso. O nascimento da dissensão
é simples e recorrente: alguma atitude da mulher faz
com que o homem exerça sua possessividade e tente coagir
a mulher pela autoridade: um amiguinho que brincava
de médico com ela quando ela tinha oito anos de idade,
um amigo com o qual ela dançou na frente dele numa festa
de apartamento, o direito de aborto, lesbianismo...
Essa estrutura encanta já de partida – mesmo que não
a conheçamos de partida, e que só vamos entendê-la com
algumas seqüências de filme – porque o que se estabelece
desde então não é um filme-discussão de relacionamento
(o que implicaria uma conversa entre iguais), mas verdadeiramente
uma guerra entre país ocupante e país ocupado: o homem
imbui-se da autoridade que a tradição do Irã dá a ele
de fechar a guerra com sua palavra, enquanto a mulher
precisa usar do contínuo uso do discurso – não o da
autoridade, mas do argumento, da concatenação lógica
– para tentar fazer o homem entender sua posição. Não
é uma batalha entre pessoas, mas entre dois registros
de discurso: o da força e o da razão. E, como em Kiarostami,
Mania Akbari não quer a todo custo provar seu ponto
(nenhuma da seqüências do filme acaba com o convencimento),
mas acima de tudo levantar a questão.
A lição do mestre foi bem compreendida: 20 Dedos
constitui-se como um exercício anti-fetichista da
imagem, aqui restrita à sua função mais básica – mas
nem por isso “pobre”, muito pelo contrário – de simples
propulsor, diria-se catalizador dos conflitos. A câmera
está sempre no rosto de cada um dos personagens, e tudo
o que é desnecessário (ou seja, todo o resto) é mantido
fora do plano, apenas evocado pela banda sonora. Um
cinema anti-ilusionista, de dispositivo, que hoje cada
vez mais mostra sua força em questionar os princípios
básicos de um cinema narrativo que progressivamente
mostra sinais de desgaste (na falta de histórias a contar,
na falta de confiança na câmera como elemento diferenciador
dos pontos de vista, no uso “oficial” tornado clichê
dos elementos do dito cinema moderno). Se em 20 Dedos
o dispositivo é mimético, a vontade de cinema não
o é: ela deriva de uma relação entre imagem e mundo,
entre registro e ficção que está longe de esgotar seu
interesse.
Como bem disse Emanuele Crialese em entrevista à Contracampo,
algo incrivelmente interessante na sociedade iraniana
é como ela metaforiza de forma muito direta as relações
entre homens e mulheres que existe na sociedade ocidental.
Por ter códigos mais estritos de comportamento de gênero,
o Irã não é uma exceção, mas uma matriz mais “primitiva”
dos jogos de poder entre sexo que se realizam ainda
através do mundo. Assim, todas as cenas que 20 Dedos
evoca nascem no seio da sociedade iraniana, mas se refletem
em espelho para todo um ambiente mundial. Mais uma vez,
é o recorte dramático operado por Mania Akbari que vai
fazer essa relação: a possessividade masculina, mais
do que o simples machismo (dizer que o homem é superior
à mulher ou deve conduzir seus passos) ou que a voz
masculina da autoridade (que, tomados os devidos cuidados,
é relativamente menor em algumas localidades do que
em outras), é algo disseminado ao redor do mundo. É
ela que faz, na devastadora seqüência inicial do filme,
com que o homem sinta-se no direito de penetrar com
o dedo a vagina da mulher para confirmar sua virgindade
– numa tela preta que só intensifica o gesto –, ou julgue
como sujo o comportamento de uma mulher só porque ele
faz cambalear os valores masculinos de honra e tradição.
É aí que Mania Akbari se revela mais do que uma simples
continuadora ou parasita do cinema de Kiarostami: na
maneira como ela termina uma seqüência (o marido perguntando
se a mulher quer o divórcio depois que ela fala que
sua amiga tem medo de divorciar-se) ou na forma como
a sexualidade e o sexo são tratados de forma clara e
despojada. “20 dedos”, no filme, são os dedos da mão
e do pé que definem se uma mulher tem honra ou se é
vagabunda: eles dão a conta de quantos homens uma mulher
já teve em sua cama. 20 Dedos, o filme, nos diz
que a contagem é mais complexa, e em todo caso menos
quantitativa do que qualitativa, e que se mede não nos
dedos, mas na cabeça (principalmente a do homem). Entre
os arquétipos clássicos de virgem, mãe e puta, existe
toda uma gama de matizes que inclui gestos, desejos
e disposições que a Mania Akbari interessam a cima de
tudo discutir.
Ruy Gardnier
|