20 DEDOS
Mania Akbari, 20 angoosht, Irã, 2004

O primeiro filme de Mania Akbari, protagonista-condutora do Dez de Abbas Kiarostami, tem seu projeto nascido diretamente do filme em que ela foi atriz: câmera digital, longos takes de discussões acerca dos papéis femininos e masculinos na sociedade iraniana, trajetos em carro (mas também no trem, num teleférico e num barco), a potência da palavra como condutora da obra. É um filme que deriva um pouco mimeticamente da revolução digital de Kiarostami, mas atribuir a 20 Dedos o simples papel de adendo de luxo a Dez parece ser um julgamento um pouco injusto. Ao contrário de O Desaparecido de Lee Kang-sheng (em relação ao cinema de Tsai Ming-liang), aqui copia-se menos a forma e os tiques do que o propósito: montar esquetes para pôr em questão as posições masculina e feminina dentro da sociedade iraniana. Se Dez se constituía todo a partir da ausência do homem adulto (na tela, no discurso) para melhor mostrar sua presença (como categoria fantasmática a partir da qual as mulheres precisam moldar sus vidas), 20 Dedos se constrói a partir da confrontação direta com ele. Se o filme de Abbas Kiarostami era a criação de um foco de resistência, o de Mania Akbari é a entrada no campo de batalha.

E é realmente como um filme de guerra que 20 Dedos se estabelece. Um homem e uma mulher, os mesmos atores, mas em diferentes fases do relacionamento (namorados, recém-casados, casados com filhos, etc.), lutam pela primazia de seu discurso. O nascimento da dissensão é simples e recorrente: alguma atitude da mulher faz com que o homem exerça sua possessividade e tente coagir a mulher pela autoridade: um amiguinho que brincava de médico com ela quando ela tinha oito anos de idade, um amigo com o qual ela dançou na frente dele numa festa de apartamento, o direito de aborto, lesbianismo... Essa estrutura encanta já de partida – mesmo que não a conheçamos de partida, e que só vamos entendê-la com algumas seqüências de filme – porque o que se estabelece desde então não é um filme-discussão de relacionamento (o que implicaria uma conversa entre iguais), mas verdadeiramente uma guerra entre país ocupante e país ocupado: o homem imbui-se da autoridade que a tradição do Irã dá a ele de fechar a guerra com sua palavra, enquanto a mulher precisa usar do contínuo uso do discurso – não o da autoridade, mas do argumento, da concatenação lógica – para tentar fazer o homem entender sua posição. Não é uma batalha entre pessoas, mas entre dois registros de discurso: o da força e o da razão. E, como em Kiarostami, Mania Akbari não quer a todo custo provar seu ponto (nenhuma da seqüências do filme acaba com o convencimento), mas acima de tudo levantar a questão.

A lição do mestre foi bem compreendida: 20 Dedos constitui-se como um exercício anti-fetichista da imagem, aqui restrita à sua função mais básica – mas nem por isso “pobre”, muito pelo contrário – de simples propulsor, diria-se catalizador dos conflitos. A câmera está sempre no rosto de cada um dos personagens, e tudo o que é desnecessário (ou seja, todo o resto) é mantido fora do plano, apenas evocado pela banda sonora. Um cinema anti-ilusionista, de dispositivo, que hoje cada vez mais mostra sua força em questionar os princípios básicos de um cinema narrativo que progressivamente mostra sinais de desgaste (na falta de histórias a contar, na falta de confiança na câmera como elemento diferenciador dos pontos de vista, no uso “oficial” tornado clichê dos elementos do dito cinema moderno). Se em 20 Dedos o dispositivo é mimético, a vontade de cinema não o é: ela deriva de uma relação entre imagem e mundo, entre registro e ficção que está longe de esgotar seu interesse.

Como bem disse Emanuele Crialese em entrevista à Contracampo, algo incrivelmente interessante na sociedade iraniana é como ela metaforiza de forma muito direta as relações entre homens e mulheres que existe na sociedade ocidental. Por ter códigos mais estritos de comportamento de gênero, o Irã não é uma exceção, mas uma matriz mais “primitiva” dos jogos de poder entre sexo que se realizam ainda através do mundo. Assim, todas as cenas que 20 Dedos evoca nascem no seio da sociedade iraniana, mas se refletem em espelho para todo um ambiente mundial. Mais uma vez, é o recorte dramático operado por Mania Akbari que vai fazer essa relação: a possessividade masculina, mais do que o simples machismo (dizer que o homem é superior à mulher ou deve conduzir seus passos) ou que a voz masculina da autoridade (que, tomados os devidos cuidados, é relativamente menor em algumas localidades do que em outras), é algo disseminado ao redor do mundo. É ela que faz, na devastadora seqüência inicial do filme, com que o homem sinta-se no direito de penetrar com o dedo a vagina da mulher para confirmar sua virgindade – numa tela preta que só intensifica o gesto –, ou julgue como sujo o comportamento de uma mulher só porque ele faz cambalear os valores masculinos de honra e tradição.

É aí que Mania Akbari se revela mais do que uma simples continuadora ou parasita do cinema de Kiarostami: na maneira como ela termina uma seqüência (o marido perguntando se a mulher quer o divórcio depois que ela fala que sua amiga tem medo de divorciar-se) ou na forma como a sexualidade e o sexo são tratados de forma clara e despojada. “20 dedos”, no filme, são os dedos da mão e do pé que definem se uma mulher tem honra ou se é vagabunda: eles dão a conta de quantos homens uma mulher já teve em sua cama. 20 Dedos, o filme, nos diz que a contagem é mais complexa, e em todo caso menos quantitativa do que qualitativa, e que se mede não nos dedos, mas na cabeça (principalmente a do homem). Entre os arquétipos clássicos de virgem, mãe e puta, existe toda uma gama de matizes que inclui gestos, desejos e disposições que a Mania Akbari interessam a cima de tudo discutir.

Ruy Gardnier