Uma
das problemáticas mais fortes a serem levantadas diante
dos documentários contemporâneos é a da construção de
objeto. Super Size Me traz um ingrediente a mais
(piiiiii) para este debate ao se tornar um problema
para essa construção. Isso porque, ao optar por filmar
a si mesmo, o diretor Morgan Spurlock fechou um círculo
mais complexo que o da mera metalinguagem (se é que
alguma metalinguagem pode ser mera): Spurlock se dá
como objeto físico e, mais que isso, científico, em
um procedimento que não é exatamente de uma ciência
social. A observação participante dele é um complicador,
mais do que uma mecânica para a confissão.
Vem um bocado a reboque de uma tendência à glamourização
– ou pelo menos valorização – da sinceridade fílmica
que um certo cinema contemporâneo resolveu importar
do neo-realismo e do cinéma vérité. Mas o que
nas mãos de Abbas Kiarostami vira Close up, nas
mãos do americano perde os limites de até onde se pode
ir para construir o objeto filmado. A idéia dele de
fazer das tripas expressão esbarra no fato mesmo que
institui seu filme. É que Spurlock resolveu centrar
seu trabalho nos sentidos, em vez de na informação -
por mais que o filme seja recheado delas.
Para além desses dados, o que está em jogo ao se observar
a estratégia do diretor é o sabor, e são sobretudo as
sensações que o corpo do rapaz manifesta. Mas, ora,
ele filma e ele sofre e ele descreve o sofrimento. Essa
promiscuidade cria de imediato um problema: não é a
vaidade de Spurlock o que atrapalha (como a de Michael
Moore, sem dúvida, é um problema em seus filmes), é
sua inocência. Sua crítica soa tola, porque ele acaba
por esvaziar os argumentos de referência externa.
Opõem-se duas mecânicas no filme, embora ambas contem
a mesma história. A primeira é a do diretor-personagem,
com suas manifestações físicas. A outra é a dos médicos,
com suas constatações clínicas. Sem assepsia, Superlock
contamina uma com a outra e, com essa salada (piiiiii),
o olhar do filme (e o do espectador).
O sociólogo Loïc Wacquant – o discípulo mais próximo
de Pierre Bourdieu – tem um livro impressionante que
contribui para a problemática da construção de objeto
quando a questão é física: Corpo e Alma: Notas Etnográficas
de um Aprendiz de Boxe narra a experiência antropológica
do pesquisador ao fazer exatamente o que o subtítulo
diz, em visitas a uma academia de boxe em Chicago, ele
faz observação participante e se torna aprendiz de luta.
Ora, sua descrição, claro, nasce de sua interação com
os procedimentos cotidianos nos ringues. O livro lança
uma luz fortíssima sobre a idéia de ser capaz de descrever
o outro quando o outro é o próprio a descrever. Claro,
Wacquant se torna lutador apenas para ter contato com
a luta. É uma quase-simulação.
Mas o experimento de alimentação kamikaze de Spurlock
parte de um problema inicial: ele se presta a apagar
a objetivação. Quando o corpo dado como cordeiro ao
sacrifício é seu próprio, Spurlock não elimina de seu
sistema de leitura qualquer possibilidade de objetividade,
já que ela é, confessamente, carta fora do baralho.
Pior que isso, ele sobrepõe essa perda ao procedimento
objetivo. O sensível se sobrepõe ao inteligível de uma
forma melindrosa neste filme.
Claro, o filme é abertamente uma obra de propaganda,
uma peça de combate, dialoga com uma certa tradição
de jornalismo-espetáculo de TV etc. A maior prova disso
é a maior prova do quão reduzida fica a cientificidade:
é a eventização da consulta médica. Delas, os
ícones mais fortes são o clínico-geral e a nutricionista.
Ele, embasbacado diante dos efeitos sobre o fígado de
uma dieta tão pródiga em gordura quanto a do McDonald’s;
ela, tentando converter em processo o conjunto de efeitos
caóticos causados pelos alimentos.
Pois nenhum dos dois e nem os outros dois médicos, representantes
de um discurso de verdade, são capazes de suplantar
o que Spurlock faz mais central no filme, as sensações.
E como é infoteinment, tome espetáculo: hambúrgueres,
alface, queijo, molho especial escorrendo pelo canto
da boca. Acaba por não ficar a serviço nem de seu tema
e nem de seu processo. De fato, choca que o filme despreze
tanto a medicina a ponto de desvalorizar a “descoberta”
do que a dieta em questão pode fazer a um corpo. No
final das contas, Spurlock apenas parece querer lembrar
da etimologia: o pathos, a alma do negócio, está
no fígado. E é, então, mais de pathos que de
ethos que se trata.
* * *
Se há um ponto positivo no filme, este é o de esboçar
uma problematização da alimentação olímpica. Mas isso
fica tão menos valorizado quanto mais fica a tendência
olímpica da própria experiência. Ainda se pode escrever
muito sobre este filme e sobre o problema do fetiche
que se tem com o veneno que nos mata e sobre nossa capacidade
de rir. Mas o filme não acrescentaria tantos dados importantes
que outros não possam acrescentar.
Alexandre Werneck
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