É
desnecessário colocar fronteiras entre forma e conteúdo
na análise de um filme. Não existe conteúdo algum, nenhuma
soma de significações das imagens, sem uma forma para
criá-lo. A escolha do lugar onde se coloca a câmera,
do tipo de luz empregado e das interpretações dos atores,
o tempo dado a cada cena e o encadeamento entre os planos,
a rigor, produzem o sentido para as ações e diálogos,
que não comunicam nada se não organizados. No entanto,
o emprego de determinadas opções às vezes esvazia o
sentido crítico de uma narrativa e atenua a sua proposta
política por conta da anemia estética. É o caso de Mulheres
Perfeitas.
Apreende-se do conjunto de situações exibidas a luta
das forças liberais, associadas a signos de modernidade
(emancipação feminina), contra uma conspiração reacionária
arquitetada em comunidade suburbana, que tem como meta
um retorno à pré-modernidade (espírito solidário, pertencimento
a um terriotório). Estabelece-se assim um confronto
entre cosmopolitismo e regionalismo, entre a mobilidade
e o arraigamento, entre a abertura para novidades e
o enclausuramento nas tradições. Do ponto de vista partidário,
entre democratas e republicanos.
Nessa resistência à operação retrô, que visa o retorno
da mulher ao lar e seu turbinamento físico, para cumprir
tarefas de cama e mesa (não nessa ordem), as forças
liberais são cooptadas. As ex-profissionais bem sucedidas,
de vida urbana pregressa, são substituídas por donas
de casas peruas, fogosas e siliconadas. Saberemos ao
final que essa transformação, embora atenda aos homens,
é planejada por uma ex-executiva, que, cansada da vida
moderna, viabiliza a volta a um estágio anterior. Ou
seja: a ideóloga também é uma liberal cooptada pelo
contra-ataque reacionário.
Temos assim uma visão ambígua da modernidade exacerbada
e sua justa-oposição. Em um primeiro momento, o filme
é crítico com as transformações físicas, no contrafluxo
do boom das plásticas. Vê com olhos de desaprovação
o uso da tecnologia para a substituição do homem natural
pelo homem-máquina (segundo La Metrie), do Ser e de
suas experiências por mecanismo implantados, processo
iniciado desde pelo menos a Renascença, quando começou
o desvelamento dos corpos pela ciência. Michel Focault
colocou em A Vontade
de Saber que o homem ocidental aprende aos poucos,
não de uma vez, a testar as possibilidades do corpo
e de sua modificação.
Mulheres Perfeitas arrega os olhos para essa “evolução”.
Temos assim uma primeira contradição. Embora desaprove
essa vertente da contemporaneidade (a reivenção do corpo
pela tecnologia), vinculando as mutações de superfície
a um retrocesso da condição feminina (reduzida à imagem,
à sua função social), o filme apara as garras de sua
contestação. Não importa se essa mesma vida contemporânea
transforme a mulher em uma máquina de produção em um
sistema às vezes aético (apenas outra função social).
A ameaça a esse modelo, com a saída do sistema produtivo
(não da cadeia de consumo), é um pesadelo pior. Afirma-se,
assim, a contemporaneidade. E toda a ideologia a mantê-la
intacta.
Se é contra a redução à uma imagem que lutam as duas
libertárias do filme, uma mulher de tevê e outra autora
de auto-ajuda cult, a vitória dessa luta reafirma essas
figuras como imagem (midiática e virtual, para consumo
coletivo). E assim se tornam uma nova imagem por questionar
a imagem anterior. Se lutam contra a maquinização da
mulher, pleiteiam no lugar a maquinização em outros
moldes. A mulher deixa de atender o marido e passa a
atender o patrão.
A crítica assim fica manca e limitada, sintoma do desconforto
com seu tempo, sem conseguir apreendê-lo de forma mais
ampla. Esse limite é em parte induzido pelo sistema
de produção, mas não apenas por ele ou não por ele isoladamente.
Em um filme sobre a cooptação, Franz Oz faz a linha
rebelde cooptado, pondo-se contrário a uma ordem de
coisas, à um estagnação da evolução social provocada
por forças conservadoras, mas sem se dar conta de que
a conservação da ordem, hoje, está se dando em uma outra
ordem, mais complexa e menos maniqueísta.
Sustenta essa crítica apenas parcial uma série de escolhas
capazes de tornar impotente essa mesma crítica. Oz opta
por uma encenação assumidamente artificial, que visa
se referir à uma realidade fora da tela a partir de
sua representação nas dimensões do quadro, sempre com
uma intenção paródica dessa realidade exterior, mas
sem elaborar uma realidade com autonomia como ficção.
Sua operação de comentário debochado a algo anterior
ao filme, a algo de fora, aproxima o filme de uma certa
convenção de programas humorísticos americanos, aqui
retrabalhados e adaptados à cultura local pelo Casseta
e Planeta. Mulheres Perfeitas é CPC em Hollywood,
um manifesto em crise, patrocinado pelos próprios alvos
atacados. Não se pode esperar ausência de limites nessa
operação.
O percurso cômico escolhido para o filme também implode
o efeito político na apreensão das imagens. Tratando
as situações formadoras de seu tema como piada, do qual
se deve rir com a segurança de quem encara a ameaça
esboçada como brincadeira de um mundo fake (o do audiovisual),
a postura política aparente acaba sendo impotente. Porque
se a ameaça é inofensiva qual o sentido de colocá-la
como ameaça? Pode-se alegar que o riso é, como tanto
se diz, uma tremenda arma política. Relativizemos esse
fundamentalismo. É arma quando produz efeito político.
Apenas atacar alvos pelo humor, olhando os alvos com
superioridade, esboçando seu patético, só produz conformismo
e legitimação do ataque.
Passemos ligeiramente a Esposas
em Conflito, do inglês Brian Forbes, a primeira
adaptação do livro de Ira Levin (base de Mulheres
Perfeitas), que está disponível no formato DVD (1).
Lançado em 1975, durante a efervescência feminista na
sociedade americana, produz outro efeito, pois articula-se
com opções estéticas muito distintas. Vemos uma narrativa
mais próxima do realismo, sem humor, com uma teoria
conspiratória a mover tudo. Cria-se uma atmosfera de
tensão, ainda que sutil, quase minimalista, e essa tensão
amplia o poder da ameaça. Busca-se o cultivo do medo
a essa reação ao avanço histórico (hoje com todo ruído
de quem o vê com distância no tempo, pois as questões
ali são coladas ao tempo). O alerta é sensacionalista:
forças reacionárias estariam programando uma resposta
à conquista de um novo papel para a mulher. As feministas
não aprovaram. Acharam um olhar catastrófico demais
para uma sociedade em busca de sua bússula progressista.
De qualquer forma, se não carrega nas imagens e diálogos
a explicitação de um comentário político sobre um mundo
fora da imagem, como faz Mulheres Perfeitas, Esposas em Conflito revela a engrenagem política na construção quase
autonôma da diegese. Por ser mais sólido como ficção,
portanto, sua crítica é mais notável. Essa é a lição
dada pelo cinema americano na produção de ideologias,
valores e pontos de vistas ao longo de mais de 100 anos.
Política no estatuto do espetáculo se produz tratando
a ficção como sendo o próprio mundo e não referência
a ele. E isso não significa que, para chegar a tal,
comprometa-se o cinema, como podem pensar, apressadamente,
os cultores do moderno e das vanguardas. Até porque
Esposas em Conflito, por exemplo, é uma proposta
híbrida do cinema. Valoriza o tempo, não só a ação.
Também percebe-se os traços ali já naturalizados de
John Cassavetes e de momentos do free cinema (Karel
Reisz, John Schlesinger). Ao contrário de Mulheres
Perfeitas, que, ao trazer em si certos heranças
de representações políticas auto-referenciais (assumindo-se
como referência para algo fora dali), rompe com certo
classicismo - mas soa muito mais conservador.
Idéias e sentidos circulam na soma das imagens, revelam
uma visão sobre o estar no mundo e amplificam ou formatam
idéias sobre esse mundo. Por estar dentro de uma lógica
econômica-cultural de irradiação de valores em massa,
as idéias de Mulheres
Perfeitas produzem política. No entanto, menos por
suas ações e diálogos, e mais pela contextualização
desses elementos em outras opções de realização, essa
política é do cooptado, não do contrabandista de idéias
que age de dentro do sistema.
Cléber Eduardo
(1) A cópia em DVD de Esposas em Conflito tem
como principal extra um documentário sobre a produção.
O filme foi adaptado de um romance de Ira Levin pelo
roteirisra-estrela William Goldman. Brian de Palma foi
contactado para dirigir, mas Goldman vetou. Quem faria
o papel de Katharine Ross era Diane Keaton. Ela desistiu
quando seu psicanalista a aconselhou a se manter longe
daquele trabalho porque a energia da história era negativa
|