Mulheres Perfeitas
Frank Oz, The Stepford wives, EUA, 2004

É desnecessário colocar fronteiras entre forma e conteúdo na análise de um filme. Não existe conteúdo algum, nenhuma soma de significações das imagens, sem uma forma para criá-lo. A escolha do lugar onde se coloca a câmera, do tipo de luz empregado e das interpretações dos atores, o tempo dado a cada cena e o encadeamento entre os planos, a rigor, produzem o sentido para as ações e diálogos, que não comunicam nada se não organizados. No entanto, o emprego de determinadas opções às vezes esvazia o sentido crítico de uma narrativa e atenua a sua proposta política por conta da anemia estética. É o caso de Mulheres Perfeitas.

Apreende-se do conjunto de situações exibidas a luta das forças liberais, associadas a signos de modernidade (emancipação feminina), contra uma conspiração reacionária arquitetada em comunidade suburbana, que tem como meta um retorno à pré-modernidade (espírito solidário, pertencimento a um terriotório). Estabelece-se assim um confronto entre cosmopolitismo e regionalismo, entre a mobilidade e o arraigamento, entre a abertura para novidades e o enclausuramento nas tradições. Do ponto de vista partidário, entre democratas e republicanos.

Nessa resistência à operação retrô, que visa o retorno da mulher ao lar e seu turbinamento físico, para cumprir tarefas de cama e mesa (não nessa ordem), as forças liberais são cooptadas. As ex-profissionais bem sucedidas, de vida urbana pregressa, são substituídas por donas de casas peruas, fogosas e siliconadas. Saberemos ao final que essa transformação, embora atenda aos homens, é planejada por uma ex-executiva, que, cansada da vida moderna, viabiliza a volta a um estágio anterior. Ou seja: a ideóloga também é uma liberal cooptada pelo contra-ataque reacionário.

Temos assim uma visão ambígua da modernidade exacerbada e sua justa-oposição. Em um primeiro momento, o filme é crítico com as  transformações físicas, no contrafluxo do boom das plásticas. Vê com olhos de desaprovação o uso da tecnologia para a substituição do homem natural pelo homem-máquina (segundo La Metrie), do Ser e de suas experiências por mecanismo implantados, processo iniciado desde pelo menos a Renascença, quando começou o desvelamento dos corpos pela ciência. Michel Focault colocou em A Vontade de Saber que o homem ocidental aprende aos poucos, não de uma vez, a testar as possibilidades do corpo e de sua modificação. Mulheres Perfeitas arrega os olhos para essa “evolução”.

Temos assim uma primeira contradição. Embora desaprove essa vertente da contemporaneidade (a reivenção do corpo pela tecnologia), vinculando as mutações de superfície a um retrocesso da condição feminina (reduzida à imagem, à sua função social), o filme apara as garras de sua contestação. Não importa se essa mesma vida contemporânea transforme a mulher em uma máquina de produção em um sistema às vezes aético (apenas outra função social). A ameaça a esse modelo, com a saída do sistema produtivo (não da cadeia de consumo), é um pesadelo pior. Afirma-se, assim, a contemporaneidade. E toda a ideologia a mantê-la intacta.

Se é contra a redução à uma imagem que lutam as duas libertárias do filme, uma mulher de tevê e outra autora de auto-ajuda cult, a vitória dessa luta reafirma essas figuras como imagem (midiática e virtual, para consumo coletivo). E assim se tornam uma nova imagem por questionar a imagem anterior. Se lutam contra a maquinização da mulher, pleiteiam no lugar a maquinização em outros moldes. A mulher deixa de atender o marido e passa a atender o patrão.

A crítica assim fica manca e limitada, sintoma do desconforto com seu tempo, sem conseguir apreendê-lo de forma mais ampla. Esse limite é em parte induzido pelo sistema de produção, mas não apenas por ele ou não por ele isoladamente. Em um filme sobre a cooptação, Franz Oz faz a linha rebelde cooptado, pondo-se contrário a uma ordem de coisas, à um estagnação da evolução social provocada por forças conservadoras, mas sem se dar conta de que a conservação da ordem, hoje, está se dando em uma outra ordem, mais complexa e menos maniqueísta.

Sustenta essa crítica apenas parcial uma série de escolhas capazes de tornar impotente essa mesma crítica. Oz opta por uma encenação assumidamente artificial, que visa se referir à uma realidade fora da tela a partir de sua representação nas dimensões do quadro, sempre com uma intenção paródica dessa realidade exterior, mas sem elaborar uma realidade com autonomia como ficção. Sua operação de comentário debochado a algo anterior ao filme, a algo de fora, aproxima o filme de uma certa convenção de programas humorísticos americanos, aqui retrabalhados e adaptados à cultura local pelo Casseta e Planeta. Mulheres Perfeitas é CPC em Hollywood, um manifesto em crise, patrocinado pelos próprios alvos atacados. Não se pode esperar ausência de limites nessa operação.

O percurso cômico escolhido para o filme também implode o efeito político na apreensão das imagens. Tratando as situações formadoras de seu tema como piada, do qual se deve rir com a segurança de quem encara a ameaça esboçada como brincadeira de um mundo fake (o do audiovisual), a postura política aparente acaba sendo impotente. Porque se a ameaça é inofensiva qual o sentido de colocá-la como ameaça? Pode-se alegar que o riso é, como tanto se diz, uma tremenda arma política. Relativizemos esse fundamentalismo. É arma quando produz efeito político. Apenas atacar alvos pelo humor, olhando os alvos com superioridade, esboçando seu patético, só produz conformismo e legitimação do ataque.

Passemos ligeiramente a Esposas em Conflito, do inglês Brian Forbes, a primeira adaptação do livro de Ira Levin (base de Mulheres Perfeitas), que está disponível no formato DVD (1). Lançado em 1975, durante a efervescência feminista na sociedade americana, produz outro efeito, pois articula-se com opções estéticas muito distintas. Vemos uma narrativa mais próxima do realismo, sem humor, com uma teoria conspiratória a mover tudo. Cria-se uma atmosfera de tensão, ainda que sutil, quase minimalista, e essa tensão amplia o poder da ameaça. Busca-se o cultivo do medo a essa reação ao avanço histórico (hoje com todo ruído de quem o vê com distância no tempo, pois as questões ali são coladas ao tempo). O alerta é sensacionalista: forças reacionárias estariam programando uma resposta à conquista de um novo papel para a mulher. As feministas não aprovaram. Acharam um olhar catastrófico demais para uma sociedade em busca de sua bússula progressista.

De qualquer forma, se não carrega nas imagens e diálogos a explicitação de um comentário político sobre um mundo fora da imagem, como faz Mulheres Perfeitas, Esposas em Conflito revela a engrenagem política na construção quase autonôma da diegese. Por ser mais sólido como ficção, portanto, sua crítica é mais notável. Essa é a lição dada pelo cinema americano na produção de ideologias, valores e pontos de vistas ao longo de mais de 100 anos. Política no estatuto do espetáculo se produz tratando a ficção como sendo o próprio mundo e não referência a ele. E isso não significa que, para chegar a tal, comprometa-se o cinema, como podem pensar, apressadamente, os cultores do moderno e das vanguardas. Até porque Esposas em Conflito, por exemplo, é uma proposta híbrida do cinema. Valoriza o tempo, não só a ação. Também percebe-se os traços ali já naturalizados de John Cassavetes e de momentos do free cinema (Karel Reisz, John Schlesinger). Ao contrário de Mulheres Perfeitas, que, ao trazer em si certos heranças de representações políticas auto-referenciais (assumindo-se como referência para algo fora dali), rompe com certo classicismo - mas soa muito mais conservador.

Idéias e sentidos circulam na soma das imagens, revelam uma visão sobre o estar no mundo e amplificam ou formatam idéias sobre esse mundo. Por estar dentro de uma lógica econômica-cultural de irradiação de valores em massa, as idéias de Mulheres Perfeitas produzem política. No entanto, menos por suas ações e diálogos, e mais pela contextualização desses elementos em outras opções de realização, essa política é do cooptado, não do contrabandista de idéias que age de dentro do sistema.


Cléber Eduardo

(1) A cópia em DVD de Esposas em Conflito tem como principal extra um documentário sobre a produção. O filme foi adaptado de um romance de Ira Levin pelo roteirisra-estrela William Goldman. Brian de Palma foi contactado para dirigir, mas Goldman vetou. Quem faria o papel de Katharine Ross era Diane Keaton. Ela desistiu quando seu psicanalista a aconselhou a se manter longe daquele trabalho porque a energia da história era negativa