Um Homem fora do seu tempo
Se o cinema de Howard Hawks, mais do que qualquer
outro (antes ou depois), sugere uma unidade de visão
de mundo, é valido dizer também que, durante
toda a parte mais famosa de sua obra, os valores nela
representados se revelam estranhos, fora de moda. Howard
Hawks, seus gostos e sua visão de mundo pertenceram
aos EUA do pós-primeira guerra; um homem dos
anos 20. Cinema para ele surgiu quase por acidente,
menos uma necessidade financeira, menos uma inclinação
pela arte e sim uma exploração, da mesma
forma como antes foram a caça, os aviões
ou os carros de corrida. Não é à
toa que ele seja o mais pragmático dos cineastas,
e que nos seus filmes não haja qualquer sinal
de crença política ou religiosa. Em Hawks
só há lugar para acreditar nas coisas
que o mundo revela na sua superfície: as amizades,
a ocupação ao qual os homens se dedicam.
Mesmo em Uma Aventura na Martinica, Humprey Bogart
se engaja na guerra muito mais por forças das
circunstancias do que por qualquer senso de dever (Sargento
York, o único filme de Hawks com um ponto
de vista ideológico claro é unanimemente
tido entre seus fãs como um dos seus piores).
Na maior parte dos filmes do diretor, uma mulher virá
de fora e se intrometerá na vida dos demais personagens
que estarão se dedicando a alguma atividade específica
na qual são especialistas. Ela nunca os entenderá.
Como ela poderia, se tratam-se de homens que se movem
a partir de uma série de crenças pessoais
que só eles e seu diretor seguem? Paraíso
Infernal (1939), em que um grupo de pilotos de avião
leva a vida a desafiar a morte em vôos perigosos
numa obscura república sul-americana, funciona
como um sumário do seu cinema. A partir dali,
seguiram 20 anos num processo de afirmar e depurar esta
visão de mundo, mas entrando pela década
de 60 esta condição de homem com valores
fora do seu tempo vai operar em Hawks uma mudança
radical. Hatari!, seu maior filme, retoma a mesma
história do início do parágrafo,
e a coloca na África fora da civilização
ocidental, não por qualquer acidente. Hawks parte
para o filme – que originalmente trataria da amizade
de Ernest Hemingway e do fotógrafo Robert Kapa,
dois amigos do cineasta falecidos havia pouco tempo,
nos quais ele identificava uma visão de mundo
similar à sua – com a intenção
de fazer uma elegia para seu mundo. Hatari! é
o mais belo dos filmes de Hawks justamente por ser aquele
que tudo inclui; o diretor procura arranjar espaço
para inserir dentro dos seus longos 160 minutos cada
coisa que acha importante na vida. É um filme
leve e alegre, porque seu diretor, sempre o estóico
e pragmático, fazia questão que assim
fosse. É o mais alegre dos funerais e numa outra
direção vale também dizer que ele
faz serviço duplo sendo também, ao lado
de O Homem que Matou o Facínora, de Ford,
e A Cidade dos Desiludidos, de Minnelli, um funeral
para a velha Hollywood.
Tudo isto é importante para compreender os filmes
finais de Hawks. Porque em Hatari! uma operação
se realiza, colocando-o num caminho sem volta, o cinema
de Hawks já não poderá ser o mesmo.
O que há de se fazer depois de realizar o seu
próprio funeral? A resposta já está
no próprio Hatari!. Hawks já declarara
à época acreditar que a forma clássica
do cinema americano havia chegado num limite (e neste
contexto vale destacar que ele passou alguns anos em
viagem pela Europa na segunda metade dos anos 50), algo
precisava ser feito. Sinais disso são mais do
que claros por todo Rio Bravo (59), onde impera
um tom anarrativo e um clima descontraído de
improvisação em grupo. Mas Rio Bravo
é também a apoteose da forma clássica
em Hawks, seu filme mais elegante, aquele em que existe
uma unidade de forma conduzindo cada movimento. Nada
representa isto melhor do que a hoje famosa cena em
que John Wayne está sendo rendido por um grupo
de dos bandidos, Angie Dickenson joga um vazo pela janela
os desconcentrando e Ricky Nelson atira ao mesmo tempo
em que joga uma arma para Wayne. Talvez não haja,
em todo o cinema americano, cena tão precisa.
Não haverá mais espaço para tal
precisão nos seus filmes da década de
60. Robin Wood, para ficarmos num importante e inteligente
defensor de Hawks, costuma dizer que Rio Bravo
é o seu ponto alto e tudo o que veio depois aponta
para uma decadência com a tendência à
repetição do cineasta desencadeando uma
grande vulgarização dos temas antigos.
Wood, que é também um crítico com
gosto estético bastante conservador, nunca entendeu
o que se deu em Hatari!. À obra final
não restara outro caminho depois do funeral dos
seus ideais senão o da abstração.
Hatari! marca o início da fase modernista
de Howard Hawks, onde cada filme existe conscientemente
como "um filme de Howard Hawks". Rogério
Sganzerla escreveu que os heróis de Hatari!
são heróis vazios. Como não seriam?
Só lhes resta a superfície. Nos outros
filmes de Hawks a superfície sempre esteve em
primeiro plano, mas seus personagens ainda se moviam
como se pertencessem ao nosso mundo, eram figuras estranhas
que se guiavam pelo seu próprio código
de honra, mas o faziam em nosso meio, na melhor das
hipóteses se isolavam em uma republica sul-americana
qualquer. Não mais: Hatari! transforma
a África no paraíso do ideário
hawksiano e a partir dali não há mais
caminho de volta. Cada filme de Hawks se dará
num mundo de Hawks (ameaçado às vezes,
mas ainda assim dele). Nem a mulher será a mesma
outsider de antes (retomaremos isto mais tarde),
porque já não há um porquê
de existir outsiders, ao menos da mesma maneira
que antes. Além disso, as repetições
que antes vinham naturalmente, se integrando à
narrativa, agora se revelavam com toda sua arbitrariedade
(daí a vulgarização de Wood). Rio
Bravo podia retomar diversos elementos da trama
de Paraíso Infernal, mas o filme se resolve
dentro de si mesmo, e estes elementos prontos a serem
apontados pelos fãs do diretor se integravam
à trama de forma a se mascarar. Quando os dois
últimos westerns com Wayne retomam Rio
Bravo, estes mesmos elementos são tratados
como emblemas de um universo particular. Não
é à toa que Faixa Vermelha 7000
seja um filme amado pelos autoristas e só por
eles. É um filme feito apenas para aqueles que
adoram o cinema de Howard Hawks, estes se perderão
com prazer no universo proposto por ele, todos os demais
irão coçar a cabeça diante daquele
objeto de arte abstrata em forma de filme de corrida
burro.
Tocando cinema como uma canção de jazz
Colocando de forma bem simples: Howard Hawks faz
cinema como se tocasse jazz. Uma das melhores definições
que li sobre ele, foi a comparação que
Jonathan Rosenbaum fez certa vez entre Hawks e Duke
Ellington, no sentido de que para ambos ser um artista
era antes de mais nada juntar um grupo de amigos para
"tirar um som".O cinema de Hawks, portanto,
é paradoxalmente um dos que mais enfatiza a criação
coletiva, onde o que se dá no set dará
conseqüência direta ao que vemos na tela;
mas isto justamente enfatizado pelo desejo do autor
que controla a banda e transforma qualquer partitura
numa continuação do mesmo grande concerto.
Seguindo com a analogia do Jazz: os filmes iniciais
do cineasta nos dão o show regular, enquanto
nestes últimos trabalhos somos convidados para
a jam do fim da noite.
Um número de jazz jamais será o mesmo
e é partindo deste principio que a repetição
em Hawks se realiza. O cineasta, mais esperto do que
a maior parte dos seus críticos, deu a deixa
numa entrevista ao crítico Joseph McBride. El
Dorado não é igual a Rio Bravo,
mas seu oposto. Isto porque a razão pela qual
o diretor retoma uma idéia velha é que
cada vez que ele a usa é obrigado a fazer uma
escolha, o que o leva a trilhar um caminho e deixar
de seguir por outros que ainda podem ser explorados
num futuro retorno. Portanto, para Hawks retomar velhas
idéias é uma questão de renovação
e diferença, não mera continuação.
Ele pode ter um mundo próprio e fechado, mas
isto não significa que ele não seja rico
em alternativas a serem exploradas. É por isso
que, já que Rio Lobo está para
El Dorado como El Dorado está para
Rio Bravo, não existe quase nada em comum
entre Rio Lobo e Rio Bravo, o caminho
entre os dois equivalendo a todo o desenvolvimento de
uma idéia artística.
Rio Bravo/El Dorado/Rio Lobo
O que estes três filmes têm em comum?
A história de quatro homens que acabam se juntando
e enfrentando uma interminável parada de bandidos
numa cidade corrupta. O que eles têm de diferente?
Todo o resto da dinâmica das relações
ao tom em que ela nos é apresentada. Rio Bravo
é o mais romântico dos filmes, aquele em
que o homem que recusa ajuda para se livrar da enrascada
em que as circunstâncias o meteram acaba recebendo-a
de um grupo de amigos de qualquer jeito, e também
o filme onde uma grande utopia coletiva derrota um exército
(não é à toa que se trata do favorito
de quase todos os fãs do diretor). El Dorado
refaz este trajeto em tom de uma comédia,
onde se inserem estranhos sinais de mortalidade e crepúsculo
futuro. Rio Lobo, que é geralmente tido
como um dos mais fracos trabalhos do diretor, traduz
a trama como o crepúsculo de um homem – e do
próprio cinema do diretor que àquela altura
devia saber que faria no máximo mais alguns poucos
filmes e parece bem no início das filmagens ter
decidido que aquela seria a última variação
da partitura – onde o romantismo dá lugar à
melancolia (apesar do filme preservar um certo senso
de humor). Rio Lobo é tão bom quanto
Rio Bravo e El Dorado; sua impopularidade
se deve justamente a ser o perfeito oposto, ainda que
completamente hawksiano, do primeiro filme.
As diferenças já começam no ritmo
que estes filmes desenvolvem. Rio Bravo se passa
nuns poucos dias; El Dorado tem um prólogo
seguido de uma elipse longa e uma ação
principal num período curto; Rio Lobo
tem esta mesma estrutura (uma favorita do diretor),
mas adiciona uma seqüência entre o prólogo
e a ação principal (o que até onde
eu sei não ocorre em mais nenhum filme dele).
Pode não parecer nada, apenas uma necessidade
do roteiro, mas seria possível buscar nele uma
solução que eliminasse a tal cena, e ela
exerce uma função de balancear o ritmo
do filme. A forma como Hawks trabalha com o tempo da
cena é essencial para o seu cinema. Rio Lobo,
que com o passar do tempo desenvolveu mais motivações
e subtramas que Rio Bravo, age de forma menos
episódica, mas ao mesmo tempo mais acidentada,
com avanços e recuos, fluindo com agilidade em
alguns momentos, e propositalmente travando em outros.
Jorge Rivero e John Wayne se tornam parceiros, mas nunca
amigos. Entre eles haverá o respeito de reconhecerem
um no outro alguns dos mesmos valores, mas também
um abismo de gerações que eles jamais
eliminaram. Wayne pode ver em Rivero a continuação
de seus valores, mas remodelados por uma nova geração.
Algo que está representado no casting
de Wayne ao lado de uma série de caras novas
(Rivero, Chris Mitchum, Jennifer O’Neil). Em Faixa
Vermelha 7000, Hawks já havia usado um elenco
cheio de novatos, mas sem nenhum veterano no set, e
os valores hawksianos podiam ser acomodados (como imagino
seriam no nunca realizado Play It Cool, que deveria
ter sido estrelado por Clint Eastwood e Steve McQueen).
Nos filmes anteriores havia sempre um jovem que se tornava
parte do grupo, mas aqui é Wayne quem é
a figura que sobra, e a ele resta forjar uma aliança
e observar à distância esta nova geração.
É importante traçar isto tudo, porque
Howard Hawks é um diretor que reage diretamente
aos corpos que põe na tela, tendo sempre optado
por um estilo de austera e pragmática simplicidade;
é por seus atores que suas idéias mais
diretamente se expressam, e este desequilíbrio
deles leva Hawks a optar por uma fragmentação
formal para todo o filme. Os trabalhos finais de Hawks
têm uma tendência a uma certa fragmentação
que não víamos no classicismo de seus
filmes anteriores. A já mencionada unidade de
Rio Bravo não terá mais como existir,
já que a modernidade que Hawks pretende extrair
destes filmes passa por um certo desarranjo. Rivero
não tem como enfrentar Wayne como Robert Mitchum
fazia em El Dorado. Pelo contrario, Hawks sugeriu
ao ator que nem sequer o tenta-se, incentivando-o a
se esconder no fundo do quadro. Há apenas uma
lenda em Rio Lobo. Wayne é mesmo tão
maior que o resto do elenco que Hawks, seguindo uma
solução que havia usado após a
morte de Clark Gable para Hatari! (em que Gable
originalmente co-estrelaria), dividiu a personagem em
duas e a entregou a Rivero e Chris Mitchum. Não
surpreende que se tratem das únicas personagens
que conseguem agir em harmonia. Logo no princípio,
os vemos colaborando para derrubar Wayne, Hawks os mantém
no mesmo quadro enquanto mais tarde, quando Jennifer
O’Neil colabora com Wayne para derrotar dois pistoleiros,
ele optara por centrar em O’Neil e manter Wayne agindo
fora da tela.Temos ai algum senso de unidade, o que
se repetirá mais tarde no clímax quando
o diretor isolará os dois homens do resto da
ação. Wayne comanda um grande grupo de
um ponto, mas este age como uma série de armas
atirando para todas as direções, muito
distante do similar clímax de Rio Bravo
em que Dean Martin também se encontra isolado
dos demais, mas uma combinação de texto,
ator e direção fazem com que Martin seja
parte integral do time, enquanto Rivero e Mitchum se
vêem completamente alienados dos demais. É
curioso que dentro do esquema do filme – onde situações
e objetos conspiram constantemente para afastar os personagens
– que, passado o prólogo, Hawks mantenha Rivero
e Mitchum separados por todo o filme até o tiroteio
final.
Rio Bravo é o uno, a harmonia, a perfeição,
qualidades fáceis de admirar (o que não
tornam de jeito nenhum este filme menos do que notável).
Rio Lobo é o imperfeito, o improviso,
a ação individual sem medir conseqüências,
é o fragmento. Para realmente gostar de Hawks,
temos de estar em paz com ele.
Um filme anárquico de Hawks
Todo cinema de Hawks é construído
a partir de uma dialética entre o seu lado mais
conservador, que busca sempre ordenar os elementos,
e o seu lado renovador que acredita no desarranjo como
a forma ideal de buscar a ruptura, já que para
Hawks o homem tem que encarar a possibilidade de destruição
para se reformar. Só que ao contrário
de, por exemplo, um Raoul Ruiz, para quem estas tendências
correm ao mesmo tempo, às vezes dentro do mesmo
plano, os filmes de Hawks costumam tender para um lado
ou para o outro. Os filmes mais destrutivos, em geral
as comédias, são mais pesados e aparentemente
pessimistas. Por conseqüência, seus filmes
de ação que trilham este caminho são
menos populares, ao contrário das comédias
que misturam com naturalidade sua anarquia ao gênero,
disfarçando o teor mais pesado destes filmes
(Katherine Hepburn literalmente destrói toda
a vida de Cary Grant em Levada da Breca, mas
o lado mais sinistro disso mal registra junto ao público).
Nos filmes de aventura como Rio Lobo ou Rio
Vermelho as nuvens negras de Hawks ficam nuas. Não
se trata de defender uma coisa ou outra, mas de registrar
que Rio Lobo e Rio Bravo trabalham em
registros muito diferentes, e não é justo
julgar o primeiro pelos padrões do segundo. Rio
Bravo mostra os valores hawksianos funcionando na
mais perfeita sintonia, em Rio Lobo eles prevalecendo
sobre o caos e uma série de vilões em
tudo oposta a eles (o de Rio Bravo age por amor
fraternal, os de Rio Lobo além de corruptos
estão prontos a trair um ao outro se as vantagens
necessárias estiverem em jogo).
O que há de anarquia em Rio Bravo é
cortesia de Angie Dickenson, já que é
a mulher quem geralmente tira as coisas do eixo (o que
explica a ambivalência do diretor para com elas).
Rio Lobo, sendo o último filme da auto-consciente
fase final do diretor, joga com a sua anarquia de outra
formas: buscando a fragmentação, isolando
Wayne e colocando-o frente aos mais desagradáveis
vilões imagináveis do seu ponto de vista.
A maior parte dos filmes de Hawks trata seus vilões
com relativa dignidade, se é que os tem (muitos
deles são encarados mais como homens fazendo
o seu serviço), nada mais distante do que vemos
em Rio Lobo. A câmera de Hawks parece querer
expulsá-los do quadro (e numa opção
bastante curiosa faz o latifundiário aqui, assim
como o de El Dorado, sugerir o interpretado por
Wayne em Rio Vermelho, o que adiciona uma outra
complexidade ao material).
Enquanto isso, o filme vê O’Neil com uma tranqüilidade
inédita. As mulheres de Hawks sempre foram dominantes
nos relacionamentos amorosos, assim como sempre terminavam
por aceitar a idéia de que não podia se
meter no trabalho do homem (com exceção
de Rosalind Russell em Jejum de Amor). Jennifer
O’Neil é quase desde o primeiro instante um dos
rapazes. Ela até recebe a mesma introdução
de James Caan em El Dorado. Hawks a inclui dentro
da ação e não como um interesse
romântico que segue ao lado dela, como seria Dickenson
em Rio Bravo – o que fica claro quando ela visita
Wayne e os demais dentro da delegacia. Dickenson e Charlene
Holt também o fazem em Rio Bravo e El
Dorado, mas para trazer alimentos e verificar como
os homens estão; O´Neil faz isto por nenhuma
razão além de seu desejo de ficar junto
aos demais. Uma das falhas que o filme possui é
justamente as outras atrizes do elenco de apoio serem
muito fracas; Hawks as inclui com freqüência
dentro das cenas de ação, mas há
uma impostação, um quê de falso
dentro da atitude e gestos delas que entrega o seu desconforto
com o que tem de executar. Howard Hawks parece tão
decidido a integrar as mulheres à ação
quanto a fragmentar a ação dos homens.
De fato, o último tiro do filme (e por conseqüência
da filmografia do diretor) pertence a uma mulher.
Hawks inverte também a geografia do espaço.
Rio Bravo era rodado quase todo dentro de espaços
fechados com os homens passando a maior parte do filme
trancados na delegacia; El Dorado já passava
quase todo o prólogo em externas e demorava para
fechar os heróis; em Rio Lobo o espaço
é quase todo externo (a parte da delegacia se
torna rápida). A idéia de corrupção
que permeia as ruas, que torna cada espaço externo
um risco para os heróis transpassa todos os filmes.
Em Rio Lobo, ela se torna mais acentuada, por
todo o bom humor presente no filme temos consciência
de que cada instante que Wayne ou Rivero permanecem
nas ruas representa grande risco. Há um lado
opressivo nas locações externas de Rio
Lobo. A cidade sequer pode dizer contar com um oficial
fraco da lei como El Dorado. A cidade tem olhos
e estes olhos são comandados pelos vilões.
A noção de natureza que engole os homens
já é apresentada no prólogo: onde
Rivero e Mitchum usam marimbondos como uma arma, onde
o amigo de Wayne morre não vitima de uma bala,
mas do seu contato com a terra numa queda, e na extraordinária
seqüência onde o trem é parado enquanto
derruba uma série de árvores.
O Homem envelhece
Um dos grandes prazeres de acompanhar a evolução
dos três filmes até Rio Lobo é
justamente observar o envelhecimento de John Wayne.
El Dorado sugeria um John Wayne que já
se mostrava mais lento, já sofria de uma bala
nunca retirada, mas Rio Lobo nos dá um
outro Wayne. O próprio Hawks admitiu que se surpreendera
nos sets pela forma como Wayne havia envelhecido nos
3 anos entre El Dorado e o novo filme. John Wayne
em Rio Lobo é um homem velho e boa parte
da força do filme reside nisso. Wayne interpretara
homens velhos antes (mais notadamente em Legião
Invencível, de Ford), mas agora ele se tornara
um, e toda uma série de gestos e movimentos são
revelados pela câmera. Em Rio Bravo, Angie
Dickenson perseguia Wayne, aqui ele só observa
O’Neil perseguir Rivero. Wayne é lento, podemos
notar que já não guia um cavalo como antes,
sua sempre crescente autoridade (ampliada aqui pelos
atores com quem contracena não terem a sua estatura)
contrasta como toda uma nova fragilidade até
então inédita. Hawks se recusa a estereotipar
Wayne e aliviar sua aparente idade com piadas sobre
pistoleiros velhos (como em Bravura Indômita
de Hathaway, o imensamente popular faroeste que
Wayne fizera logo antes de Rio Lobo). A iminência
de mortalidade que ameaça dar as caras em El
Dorado é jogada para primeiro plano aqui.
Há toda uma nobreza na figura de Wayne, de certa
forma um herói hawksiano ainda maior, caído,
nos seus últimos dias, mas ainda insistente.
Ao mesmo tempo, ele tem as razões mais pessoais
e mesquinhas de toda a obra de Hawks. É vingança
o que traz Wayne a Rio Lobo. Nós até
vemos ele torturar o homem que veio caçar, algo
impossível em outro filme de Hawks. Portanto,
ele é tentado como nenhum outro herói
de Hawks. Ele precisa confrontar sua própria
mortalidade e seus demônios. A câmera de
Hawks o adora desde o primeiro plano ao mesmo tempo
em que o coloca diante de um terreno acidentado como
Wayne não via desde Rio Vermelho.
O Homem envelhece. Wayne e Hawks não parecem
saber disso durante o longo prólogo. Uma das
coisas mais bonitas de Rio Lobo é perceber
como seu diretor parece ter ao longo das filmagens desenvolvido
seus sentimentos em relação às
limitações físicas de seu astro.
Da ignorância à irritação
a finalmente aceitar as vantagens e limitações
que ele atribui. O filme segue paralelo ao personagem.
O homem envelhece. Wayne é confortável,
a idéia que o filme repete diversas vezes, até
o personagem passar a tratá-la com uma descontraída
ironia. Wayne nunca se mostrara num filme de Hawks com
tanto comando de cena, tanto desejo de se impor, ao
mesmo tempo em que seu corpo nunca se mostrara tão
frágil. Há um curta notável sobre
o gesto a se extrair dos movimentos de Wayne dentro
de Rio Lobo: o herói hawksiano cavalga
lentamente, galante, consciente de si próprio,
no seu último hurrah, rumo a desaparecer na eternidade
cinematográfica.
Filipe Furtado
(VHS Tocantins, DVD Paramount)
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