Cláudio Torres é
um diretor que, em suas duas experiências audiovisuais
realizadas para exibição em cinema (o
média-metragem Diabólicas, um dos
três episódios de Traição,
e o longa-metragem Redentor), escalou-se no time
do excesso. No Brasil, a partir dos anos 60, essa formação
é variada. Vai de Glauber Rocha a Luiz Fernando
Carvalho, de Arnaldo Jabor a Fernando Meirelles, de
Ruy Guerra a Guel Arraes, de Rogério Sganzerla
a Neville de Almeida. Entenda-se por excesso o acúmulo
e a intensidade de elementos narrativos, sejam estes
a luz, o som, a música, os cortes ou a cenografia,
que vão além do necessário para
se desenvolver a narratividade - seja esta de uma cena,
de uma seqüência ou de uma encadeamento de
fragmentos.
Torres é um diretor que, nestas duas experiências
realizadas para exibição em cinema, joga
no time dos não-realistas. No Brasil, pelo menos
desde Limite, de Mario Peixoto, a escalação
é diversa. Vai de Paulo César Saraceni,
Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Rogério
Sganzerla, Julio Bressani, Andréa Tonacci e Carlos
Reichenbach a Walter Lima Junior, Sergio Bianchi, Guilherme
de Almeida Prado, Luiz Fernando Carvalho e Guel Arraes.
Por não realista, entenda-se, sobretudo, não
mimético. Independentemente de o real vazar menos
ou mais nos filmes destes cineastas, a despeito de ser
algum aspecto do real tratado de forma menos ou mais
direta por eles, vemos nas obras destes autores um escancaramento
da representação, embora em graus variados
e com propostas diferentes. Vemos o símbolo mais
que as experiências.
Em Redentor, o excesso "não-realista",
ou a hiper-artificialidade, é um dogma. Vemos
uma alegoria delirante, infelizmente muito controlada
nesse delírio, sobre a realidade brasileira.
Por não estar interessado na singularidade dos
personagens, Torres trata essa realidade como superfície
simbólica, a qual irá totalizar dentro
dos limites, assumidamente redutores, dos estereótipos
de classe. Em uma historiografia das representações
locais, sua gênese vem lá do teatro de
revista, que se referia ao real sem representá-lo,
e passa pelo TV Pirata e pelo Casseta e Planeta, sem
se filiar a nada disso. O pacto com o espectador é
o da crença na imagem postiça. Assume-se
um jogo, uma brincadeira, que exige entrega, mas entrega
distanciada. É preciso ter em mente que, embora
tudo esteja na tela, o ponto de partida e de chegada
está fora dela. Exacerba-se aqui e ri-se da exacerbação
ali.
Temos à vista uma tensão entre o roteiro
todo arrumadinho, de esqueleto cheio de firulas, com
imagens filmadas e montadas de tal forma que, na projeção,
tiram o peso asfixiante dos processos resolvidos antes
e depois do set, sem espaço para a filmagem.
Pedro Cardoso e Miguel Fallabela, certamente, colaboram
para essa vitalidade: atores avessos à marcações
excessivas, que exigem do diretor um jogo de cintura
para acompanhá-los quando decidem assumir a condução
das cenas, os dois impedem que o filme só respire
pelos tubos. Estão lá por suas imagens,
pela significação de seus signos, não
para interpretar papéis.
Embora não se busque a aproximação
com os personagens pelo afeto ou pela emoção,
pode-se sentir uma energia a mover as situações
quando elas acontecem, em parte também por conta
de uma feliz e nada óbvia seleção
de músicas. Se há peso, e há, ele
está no olhar. Torres é o cineasta do
mal estar, do mundo em desequilíbrio, do riso
cruel de cantinho de boca - sem soar sádico,
mas sim consciente de seu lugar dentro dessa (des)ordem.
Que lugar é esse? O do artista que, no entendimento
do mundo, ri do absurdo, embora, para retrá-lo,
recorra à configuração simplista,
pois a complexização exigiria fôlego
indisponível. Daí a opção
por criar uma realidade do artifício, para não
haver risco de nada do real fora da tela. Há
algo de modesto nessa pretensão. E muito de pretensioso
nessa modéstia. Operação de risco,
de qualquer forma, nunca de jogada certa.
A representação assumida como tal inicia-se
com os sons de uma orquestra em aquecimento, seguido
de aplausos e dos primeiros movimentos da ópera
O Guarani, de Carlos Gomes - que já tinha
lugar garantido no cânone do cinema brasileiro
desde o final de Ilha das Flores, de Jorge Furtado.
Essa introdução musical, como se estivéssemos
para ver uma ópera, dá a senha do estatuto
do espetáculo: a auto-referencialidade, a negação
do mimetismo, da imitação do real, que
será apenas aludido, não encenado como
cópia, como aproximação ou recriado.
Não há cenas em ruas: o Rio entra na tela
só em aéreas. Ao contrário de cineastas
que saem de casa para o mundo, Torres traz o mundo para
dentro de sua casa (o estúdio), mas fazendo dele
apenas ponto de partida para outro mundo (o de sua representação).
É como se o realismo, a essa altura, não
desse conta do real. Melhor então assumir a mentira
da linguagem e buscar a verdade nessa mentira.
Os letreiros luminosos-aquosos e a câmera percorrendo
uma superfície indefinida, de uma virtualidade
com a impressão de aspereza, azulada-metálica,
que somente após alguns segundos encontra o rosto
inanimado de um Cristo, antes do título explodir
em um clarão, inseminam a hiperartificialidade
na qual a narrativa se sustentará. Tudo na tela
escancara a opção pelo fake antes da câmera
reafirmar esse caminho ao sobrevoar uma lagoa, com vegetação
nas margens, prédios à vista e morros
ao fundo, apenas para dar a essas imagens de coisas
reais uma natureza virtual. A realidade, quando surge,
parece maquete.
Também a narração em off de Pedro
Cardoso, Célio Rocha na ficção,
reafirmará a ruptura com qualquer transparência.
Ele já está morto, seu corpo extendido
no chão, quando começa a narrar. Contará
para nós como viveu e como foi levado à
morte. Veremos cenas de sua infância e do início
de sua amizade com um menino rico, Otávio Sabóia,
em imagens em preto e branco de uma plasticidade publicitária
autoparódica de tão veemente. Também
ouviremos sobre o pai empreiteiro desse garoto, que
vê futuro só na Barra da Tijuca, exatamente
o templo do artificial em meio à natureza.
Em poucos minutos, a luz mudará várias
vezes. A imagem será congelada, o flashback no
qual a narrativa é arquitetada ganhará
outras voltas ao passado, estamos sempre sendo colocados
diante de rupturas (no tempo, no espaço, nos
climas), sempre sendo deixados de fora, sempre sendo
lembrados de que aquele mundo não é nosso
(não diretamente), embora se refira a ele em
tom de paródia sombria e alegórica. Redentor
propõe assim o encontro da chanchada com o Cinema
Novo, mas com a falta de crença (em sua falsa
crença) dos marginais, Sganzerla sempre à
frente de todos pela capacidade de rir da própria
desgraça.
No entanto, ao contrário da esculhambação
sganzerliana, aqui o coração bate culpado,
mais que agressivo, ainda que uma culpa, no final das
contas, de sentimentos duros e nada amanteigados (como
em Walter Salles). Cláudio Torres explode Brasília,
filma os moradores de favela como habitantes de um inferno
arcaico e dantesco, coloca-os para berrar seu mantro
religioso: DINHEIRO, DINHEIRO, DINHEIRO. Não
há espaço para a idealização
e para as mensagens dos anos 60, nem para a identificação
dos pobres por freqüentadores de cinema, que exigiria
tratá-los como coitadinhos-vítimas-do-mundo.
Eles são vítimas sim, mas querem o mesmo
que os ricos e a classe média, sem nenhum sacralização
social. Redentor alia-se, assim, a O Invasor,
de Beto Brant, e a O Homem Que Copiava, de Jorge
Furtado, com o qual se aproxima em vários aspectos
(a ser tratado em texto futuro).
Também não deixa de "esbarrar à
distância" com experiências do artifício
como meta, mas adotando como referencial sobretudo o
humor da Rede Globo nos anos 80-90, em especial o do
núcleo Guel Arraes - que deu o norte para Carla
Camuratti em Carlota Joaquina. Um neto bastardo,
do casamento de Arnaldo Jabor com Glauber Rocha, mas
criado entra as paredes do Projac (simbolicamente, por
favor), próximo a um primo de segundo grau, Jorge
Furtado, e tendo como evangelho as invenções
de mundo em estúdio, sejam as de Tim Burton ou
as Terry Gilliam.
Balé de cortes de um rosto para outro, de um
olhar para outro. Alguém fala, a câmera
vai para quem ouve, para alguém ao fundo do plano.
Na primeira entrada de Célio Rocha no apartamenro
808 do condomínio Paraíso, essa dinâmica
é muito bem aproveitada, em especial ao captar
os olhares de Camila Pitanga. A câmera está
predominantemente baixa, filmando um mundo grandiloquente,
ameaçador, diante do qual parecemos pequenos,
impotentes, incapazes de agir ou sem vontade para tal.
Está ai, nessa forma de filmar, o peso do filme.
Não é um deslize, mas um olhar para o
mundo, o olhar assustado, que ri de nervoso por estar
rindo desse mundo, não porque é superior
a ele, não porque está fora dele.
Célio Rocha é um classe média decadente,
que mora com pai, mãe e tia, sem apartamento
próprio, ressentido por ter levado pernada da
elite corrupta. A relação com os de cima
da pirâmide vai jogar nosso protagonista e sua
família para baixo. Otávio Sabóia,
o herdeiro dessa elite, justifica-se: "Não
há dinheiro para todo mundo". Portanto,
concentra a riqueza. Sendo assim, o jeito é tomá-la,
na força que seja. Força essa legitimada
por Deus, por uma idéia moral mais que por uma
entidade divina, pelo receio de entrar pelo cano, caso
não se faça o justo, caso se insista em
atender a si próprio. Vemos assim a encruzilhada
da classe média, indecisa entre adotar os métodos
da elite, também sua opressora, e aliar-se aos
marginalizados do sistema econômico, com os quais
começa a fazer vizinhança.
Será necessário uma intervenção
divina, cínica até a medula do Cristo
Redentor, para essa classe média abrir os olhos.
Só com milagre, portanto, segundo a visão
distópica - porém nada conservadora, se
bem entendida for. Não entremos na questão
religiosa porque a religião não é
questão; Deus, tampouco. Estamos em um filme
ateu, nem por isso despido de moral. A mãe de
Célio afirma com autoridade: DEUS NÃO
EXISTE. Ou seja, sem Deus, não há pecado,
não há regulação, não
há limite, impera o individualismo, o cada um
por si e todos contra todos. É contra essa falência
de um projeto civilizatório da idade moderna
que o filme imporá a necessidade de resgate da
moralidade (da qual a religião é apenas
um símbolo, não o único ou principal
caminho).
Mas essa moralidade não passa necessariamente
pela legalidade, conjunto de normas que, a rigor, tende
a atender quem está por cima e o que a classe
dominante permite. A lei é subvertida sim e substituída
pela ética, uma transgressão civil também
pregada, por outras razões, em Irmãos
de Fé, de Moacyr Góes, no qual Paulo
segue seu próprio caminho, não os dos
legisladores, embora em nome de Deus. Em Redentor,
a ética supera a lei em um papo marxista (não
assumido como tal na cena), quando um operário
não pago para construir um prédio toma
um dos apartamentos para morar. Beneficia-se, assim,
do fruto do trabalho.
A jornada moral de Célio Rocha é de acerto
de contas com o passado. Ele age para redimir o pai
injustiçado e vingar-se do filho do milionário
injusto. Ao jogar a pendenga de classes para os filhos,
herdeiros de uma situação do passado,
o roteiro amplia o conflito ao expor o presente, acima
de tudo, como resultado de processo histórico.
Nesse aspecto, não estamos diante de questões
de nosso tempo, mas de nossa História. Em sua
representação, opta-se pelo postiço
para se chegar a uma aproximação com distanciamento.
O herói manchado de classe média só
se redime dentro de um estatuto visual no qual nada
é verdadeiro. Falsa redenção, portanto.
Até porque ele não tem convicção
na distribuição, é apenas tocado
por forças paranormais - já que, por seu
livre arbítrio (nunca tão livre assim
e quase sempre arbitrário), rosnaria para conseguir
seu pedaço do osso.
Cléber Eduardo
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