RASHOMON
Akira Kurosawa, Rashomon, Japão, 1950

Embora três décadas separem os projetos, o outro filme de Kurosawa com que Rashomon mais dialoga é Ran. Em Rashomon não há ainda a aura monumental que os posteriores épicos de Kurosawa adquiririam, mas o magma essencial lá se encontra: o caos e a discórdia instalados entre os homens, abandonados que estão por qualquer divindade. Ran pode ser visto, na verdade, como a triste confirmação, por parte do diretor, de que a esperança anunciada ao final de Rashomon não se confirmaria nas décadas seguintes. O sentimento de insegurança culminaria na tensão nuclear de alguma forma condensada no filme de 1985, cujo último plano é um cego que, à beira de um abismo, deixa cair uma imagem de Buda, com o céu crepuscular como pano de fundo. O céu é em muitas vezes uma figura poética opressora nos filmes de Kurosawa, e é exatamente ele quem aparece no plano mais soturno de Rashomon, quando o personagem de Toshiro Mifune, enquanto é julgado, olha para o alto e vê apenas nuvens – mas talvez estivesse à procura de alguém acima da justiça dos homens, acima da razão, alguém onisciente, que pudesse avaliar se o que ele diz é verdade ou mentira (ou que pudesse dizer que não existe nem verdade nem mentira).

O tema de Rashomon se tornaria recorrência na obra de Kurosawa: a perda da honra e da fé, a ductilidade entre sonho e pesadelo, o trinômio ambição-traição-destino. O filme começa com três homens – um padre, um lenhador e um andarilho – se protegendo da tempestade sob as ruínas de um portal na Idade Média. O padre e o lenhador estão ainda perplexos por conta do julgamento que testemunharam, em que eram narradas, sucessivamente, as versões de todos os envolvidos no crime de que o bandido interpretado por Mifune foi acusado (estupro e assassinato). As testemunhas também possuem suas versões, seus olhares em terceira pessoa, mas nenhum deles se confirma integralmente no outro. Tudo se resume a isso, no fundo: à impossibilidade de uma conciliação entre os homens, o que implica a impossibilidade de uma narração unívoca sobre um evento. O ponto de vista narrativo problematizado reflete uma preocupação inerente ao momento em que o filme foi feito, quando a ordenação causal do mundo pós-bomba atômica já parecia incabível. Em Rashomon, não há versão definitiva, pois esta concerniria a um julgamento superior – ausente. E não é só a imagem de Deus que está ausente no filme: nas cenas do julgamento, nunca é mostrado o juiz. A câmera filma o processo de frente, sem revelar o contra-campo em que a instância julgadora supostamente se encontra. Ocultando o rosto do juiz, o filme interroga a quem cabe julgar, e quais são seus parâmetros, concluindo que, uma vez perdido de vista o tamanho da Verdade, todas as versões são igualmente mentirosas e válidas – tal é o paradoxo em que o homem se acha encartuchado. "Os homens são fracos, portanto mentem", diz o padre. "No final, não se pode entender o que os homens fazem", é o pensamento do andarilho plebeu. Até mesmo a versão do marido, morto após assistir à esposa ser possuída por Mifune (na versão dele houve menos estupro do que cumplicidade), será ouvida durante o julgamento, através de um médium.

Todos no filme, portanto, têm direito a uma parte da narração, a uma porcentagem da ficção. Mas é curioso como o lenhador pouco a pouco se revela o personagem central. Dele saem a primeira e a última versão encenadas pelo filme. Na primeira, ele conta que encontrou apenas objetos, roupas, apetrechos de caça – a morte não presenciada, mas trancafiada em signos que a representam. Se o lenhador encontra símbolos, é porque sua atividade consiste explicitamente em oferecer o que colhe da natureza (a madeira da árvore) à cultura (lenha para fogueira, móveis), fechando o circuito que Lévi-Strauss definiu como etapa simbólica. Ao final, contudo, o lenhador tem outra versão, em que ninguém é poupado, todos sofrem desonras, ou seja, o problema está na humanidade inteira, no sinal dos tempos, e não em um ou outro indivíduo. Na floresta, local idílico, ocorreu o crime: paraíso e inferno estão amalgamados.

Rashomon seria um filme extremamente pessimista caso não houvesse a mensagem final de esperança, mensagem que se encaixa cuidadosamente numa narrativa em grande medida esquemática (o ponto fraco do esquematismo, no entanto, é contrabalançado por belos momentos de mise en scène, principalmente quando Kurosawa mobiliza, valendo-se da profundidade de campo, uma dialética entre rostos imóveis e rostos/corpos que se movem expressivamente). Os três homens encontram um bebê abandonado, que chora enrolado a uma manta. Enquanto o plebeu, cuja máxima é "se você não é egoísta, não pode sobreviver", corre e rouba a manta da criança, expondo-a ao frio, os outros dois o repreendem e ficam indignados. Após uma discussão, o lenhador – que acaba admitindo ter roubado um dos objetos valiosos que encontrou na floresta – resolve levar a criança para casa e adotá-la, o que reacende a fé do padre na humanidade. A chuva dá trégua, e ele sai com a criança no colo, sublinhando o acolhimento como forma de enfrentamento ao caos. Uma esperança que se diluiria no caminho até 1985, pois a imagem vulcânica que encerra Ran não é senão a desilusão derradeira de um ciclo iniciado em 1950.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

(VHS Tocantins; DVD Continental)