Embora
três décadas separem os projetos, o outro
filme de Kurosawa com que Rashomon mais dialoga
é Ran. Em Rashomon não há
ainda a aura monumental que os posteriores épicos
de Kurosawa adquiririam, mas o magma essencial lá
se encontra: o caos e a discórdia instalados
entre os homens, abandonados que estão por qualquer
divindade. Ran pode ser visto, na verdade, como
a triste confirmação, por parte do diretor,
de que a esperança anunciada ao final de Rashomon
não se confirmaria nas décadas seguintes.
O sentimento de insegurança culminaria na tensão
nuclear de alguma forma condensada no filme de 1985,
cujo último plano é um cego que, à
beira de um abismo, deixa cair uma imagem de Buda, com
o céu crepuscular como pano de fundo. O céu
é em muitas vezes uma figura poética opressora
nos filmes de Kurosawa, e é exatamente ele quem
aparece no plano mais soturno de Rashomon, quando
o personagem de Toshiro Mifune, enquanto é julgado,
olha para o alto e vê apenas nuvens – mas talvez
estivesse à procura de alguém acima da
justiça dos homens, acima da razão, alguém
onisciente, que pudesse avaliar se o que ele diz é
verdade ou mentira (ou que pudesse dizer que não
existe nem verdade nem mentira).
O tema de Rashomon se tornaria recorrência
na obra de Kurosawa: a perda da honra e da fé,
a ductilidade entre sonho e pesadelo, o trinômio
ambição-traição-destino.
O filme começa com três homens – um padre,
um lenhador e um andarilho – se protegendo da tempestade
sob as ruínas de um portal na Idade Média.
O padre e o lenhador estão ainda perplexos por
conta do julgamento que testemunharam, em que eram narradas,
sucessivamente, as versões de todos os envolvidos
no crime de que o bandido interpretado por Mifune foi
acusado (estupro e assassinato). As testemunhas também
possuem suas versões, seus olhares em terceira
pessoa, mas nenhum deles se confirma integralmente no
outro. Tudo se resume a isso, no fundo: à impossibilidade
de uma conciliação entre os homens, o
que implica a impossibilidade de uma narração
unívoca sobre um evento. O ponto de vista narrativo
problematizado reflete uma preocupação
inerente ao momento em que o filme foi feito, quando
a ordenação causal do mundo pós-bomba
atômica já parecia incabível. Em
Rashomon, não há versão
definitiva, pois esta concerniria a um julgamento superior
– ausente. E não é só a imagem
de Deus que está ausente no filme: nas cenas
do julgamento, nunca é mostrado o juiz. A câmera
filma o processo de frente, sem revelar o contra-campo
em que a instância julgadora supostamente se encontra.
Ocultando o rosto do juiz, o filme interroga a quem
cabe julgar, e quais são seus parâmetros,
concluindo que, uma vez perdido de vista o tamanho da
Verdade, todas as versões são igualmente
mentirosas e válidas – tal é o paradoxo
em que o homem se acha encartuchado. "Os homens
são fracos, portanto mentem", diz o padre.
"No final, não se pode entender o que os
homens fazem", é o pensamento do andarilho
plebeu. Até mesmo a versão do marido,
morto após assistir à esposa ser possuída
por Mifune (na versão dele houve menos estupro
do que cumplicidade), será ouvida durante o julgamento,
através de um médium.
Todos no filme, portanto, têm direito a uma parte
da narração, a uma porcentagem da ficção.
Mas é curioso como o lenhador pouco a pouco se
revela o personagem central. Dele saem a primeira e
a última versão encenadas pelo filme.
Na primeira, ele conta que encontrou apenas objetos,
roupas, apetrechos de caça – a morte não
presenciada, mas trancafiada em signos que a representam.
Se o lenhador encontra símbolos, é porque
sua atividade consiste explicitamente em oferecer o
que colhe da natureza (a madeira da árvore) à
cultura (lenha para fogueira, móveis), fechando
o circuito que Lévi-Strauss definiu como etapa
simbólica. Ao final, contudo, o lenhador tem
outra versão, em que ninguém é
poupado, todos sofrem desonras, ou seja, o problema
está na humanidade inteira, no sinal dos tempos,
e não em um ou outro indivíduo. Na floresta,
local idílico, ocorreu o crime: paraíso
e inferno estão amalgamados.
Rashomon seria um filme extremamente pessimista
caso não houvesse a mensagem final de esperança,
mensagem que se encaixa cuidadosamente numa narrativa
em grande medida esquemática (o ponto fraco do
esquematismo, no entanto, é contrabalançado
por belos momentos de mise en scène, principalmente
quando Kurosawa mobiliza, valendo-se da profundidade
de campo, uma dialética entre rostos imóveis
e rostos/corpos que se movem expressivamente). Os três
homens encontram um bebê abandonado, que chora
enrolado a uma manta. Enquanto o plebeu, cuja máxima
é "se você não é egoísta,
não pode sobreviver", corre e rouba a manta
da criança, expondo-a ao frio, os outros dois
o repreendem e ficam indignados. Após uma discussão,
o lenhador – que acaba admitindo ter roubado um dos
objetos valiosos que encontrou na floresta – resolve
levar a criança para casa e adotá-la,
o que reacende a fé do padre na humanidade. A
chuva dá trégua, e ele sai com a criança
no colo, sublinhando o acolhimento como forma de enfrentamento
ao caos. Uma esperança que se diluiria no caminho
até 1985, pois a imagem vulcânica que encerra
Ran não é senão a desilusão
derradeira de um ciclo iniciado em 1950.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(VHS Tocantins; DVD Continental)
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