O Sangue do Condor possui duas tramas, narradas
em paralelo: de um lado, a luta do índio Ignacio
Mallku (Marcelino Yanahuaya) contra grupo de americanos
responsável pela infertilidade das mulheres da
aldeia e, por outro, as dificuldades do irmão,
Sixto (Vicente Verneros Salinas), que mora na cidade,
em obter sangue e remédios para o protagonista,
o qual, em virtude de sua atuação política,
foi quase assassinado pela própria polícia
do povoado natal.
Paralelismo narrativo, paralelismo temporal. No entanto,
se a montagem paralela em geral alterna acontecimentos
simultâneos que ocorrem em espaços diferentes,
Sanjinés, ao contrário, intercala ações
que tomam lugar em tempos diversos. Assim, enquanto
no passado Ignacio Mallku combate a organização
norte-americana que, sob falso pretexto de ajuda humanitária,
esteriliza em massa os quéchua a fim de, com
auxilia do poder público boliviano, aniquila-los
– vale lembrar que, no Brasil, o controle de natalidade
das camadas mais pobres, durante o regime militar, também
se dá através da esterilização
ilegal de mulheres promovida pela BEMFAM, entidade civil
subsidiada pelo Banco Mundial, pela Fundação
Ford e pela Fundação Rockfeller –, Sixto
enfrenta, no presente, para salvar o irmão, o
descaso da burguesia citadina (representada pelo médico
que deve vender-lhe sangue, mas que o despreza em prol
do congresso de medicina no qual é orador), refletindo,
por conseguinte, as profundas desigualdades sócio-econômicas
que caracterizam o meio urbano do país.
São temporalidades que se completam, pois uma
funciona como espelho da outra: em ambas, verifica-se
a passagem do individual ao coletivo, ou seja, no caso
de Ignacio, da revolta pessoal, contra as injustiças
que acometem sua família, para a reação
coordenada da comunidade, seja contra o Estado boliviano,
seja contra a dominação estrangeira. De
modo que, se Ignacio Mallku transforma o ódio
que sente com a morte dos três filhos, vitimados
pela peste (causada pela miséria reinante), e
com a esterilidade da esposa (cuja responsável
é a maternidade norte-americana) na liderança
positiva que detém sobre o povoado, a justaposição
dos planos ao término de O Sangue do Condor
– a expressão raivosa de Sixto, caminhando após
a morte de Ignacio, com os rifles erguidos em direção
ao céu – também apontam para o prosseguimento
da guerra travada pelos quéchua a favor de seus
direitos, negados sistematicamente por uma Bolívia
que os marginaliza.
Jorge Sanjinés, com O Sangue do Condor,
torna cristalino o processo que leva à conscientização
política, quando o "eu" começa
a pensar e, especialmente, a falar em termos do "nós".
É notável como o cineasta abandona a retórica
usual que estrutura filmes ditos "engajados",
na medida em que materializa nas privações
atrozes a que são submetidos os personagens o
discurso revolucionário que conduz a obra. Desta
preocupação de explicitar sua voz subversiva
provém o aspecto didático de O Sangue
do Condor, igualmente presente, com bem menos sucesso,
no último filme de Sanjinés, Os Filhos
do Último Jardim (2004): trata-se de estabelecer
com o público ao qual se destina – os próprios
quéchua – comunicação simples e
direta (através, por exemplo, dos diálogos
óbvios, dos personagens e das situações
maniqueístas, ou das seqüências clichês,
como a tentativa frustrada de Sixto em assaltar a grã-fina
na feira, seguida pelas visões aterrorizantes
das máscaras vendidas no local), para faze-lo
compreender que o único caminho possível
para a melhoria da condição de vida é
a revolução.
Sanjinés, na transição do individual
para o político que efetua em O Sangue do
Condor, não rebaixa os espectadores a meros
ignorantes a quem se deve revelar a "verdade".
Antes, seu filme, instrumento que visa à ação
política, propõe o diálogo, convoca
à reflexão, horizontaliza a relação
do diretor com a platéia – em suma, permite que
o movimento revolucionário tão almejado
aconteça entre iguais.
Paulo Ricardo de Almeida
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