O cinema de Jia Zhang-ke é recente, composto
até aqui de apenas 3 longas e um curta, entre
os quais apenas Plataforma e Prazeres Desconhecidos
circularam por enquanto no Brasil – um longa novo,
Shijie, está anunciado para o Festival
de Veneza de 2004. Mas já há, entre os
seus defensores, aqueles que defendem tratar-se do maior
talento que a China continental legou ao cinema (o que,
convenhamos, não é tão difícil
assim, uma vez que em retrospectiva, ao menos nos filmes
que chegam a nós, Hong Kong e Taiwan revelaram
cinemas bem mais vigorosos). Há uma boa razão
para tamanha excitação: Jia Zhang-ke faz
filmes novos, arriscados e interessantes. De quantos
cineastas que tiveram longas lançados pela primeira
vez por aqui recentemente pode-se dizer o mesmo?
* * *
O cinema de Jia é jovem não só
pelos poucos filmes, mas por ter como grande preocupação
delinear o significado de ser jovem numa cidade de província
chinesa. Para isso, dois fatores vêm lhe prestar
ajuda. A primeira é sua imensa habilidade para
criar ambientação e para apresentar o
universo pelo qual seus personagens transitam. Plataforma
e Prazeres Desconhecidos se passam na cidade
natal do diretor, Fanyang, e Jia tem completo domínio
sobre este espaço: cada rua, cada casa e terreno
baldio são rendidos pela câmera como parte
de uma experiência que o diretor compartilha com
seus personagens e conosco. A outra é o talento
para trabalhar com blocos de tempo, que Jia transforma
numa agressiva arma cinematográfica. Acumulação
de situações é peça chave
para apreciação dos dois filmes (o que
torna uma pena que Plataforma chegue até
nós na versão de 2h35, em vez do corte
original de 3h); são filmes lentos, mas os filmes
dão forma física ao seu ritmo. Em Plataforma
e Prazeres Desconhecidos sentimos o tempo. Sentimos
o que ele representa aos seus jovens personagens. Plataforma
não é um filme que estuda as transformações
políticas à distancia; é quase
o oposto disso.
A História é o grande tema do cinema chinês
– por cinema chinês entenda-se aqui todo o cinema
realizado na China, Taiwan e Hong Kong –, e Jia Zhang-ke
é um grande cineasta histórico. Seu único
rival seria Hou Hsiao-hsien, mas ambos, apesar de muitos
pontos em comum, abordam a História por pontos
de vista diferentes. Para Hou, ela existe primordialmente
como memória, como uma experiência vivida,
na qual ele deve mergulhar, mas também da qual
ele será o poeta elegíaco. Jia, por sua
vez, entra nela pela porta dos fundos, com uma imensa
curiosidade de compreendê-la: primeiro é
preciso senti-la para, então, dali tirar algum
sentido. Fazendo o sempre perigoso jogo das comparações
com a cultura ocidental, Hou Hsiao-hsien é John
Ford, Jia Zhang-ke é Roberto Rossellini. Assim
como o cineasta italiano, Jia demonstra um constante
desejo de historicizar o presente. Prazeres Desconhecidos
é tão filme histórico quanto
Plataforma, mesmo que ele fale do hoje e do agora
(mas já não era isso que fazia o próprio
Plataforma?). Os dois filmes de Jia que chegaram
até nós – e, pelas informações
disponíveis, também sua estréia
em longa), mostram um processo de desgarramento e dissolução
de seus personagens e seus desejos. Não há,
no entanto, nada de derrotista neles. Ao contrário:
o próprio fato deles existirem já representa
uma forma de resistência e uma alternativa aberta
pelo diretor.
Plataforma é um filme sobre a abertura
capitalista chinesa na década de 80, mas não
há nele qualquer sinal de lição
histórica (Jia deixa a preocupação
de oferecer uma aula informativa para filmes e diretores
medíocres). Não é só uma
questão de apresentar a questão pelo lado
menos explorado dela, mas acreditar que, se o cinema
deve mergulhar na história, é para faze-lo
de forma a permitir que o espectador possa antes de
tudo senti-la. Plataforma é um filme extremamente
físico. Um filme dedicado a nos colocar em contato
com a História. Jia Zhang-ke acredita em tornar
a História táctil. Plataforma permite
sentir o que a abertura econômica chinesa significou
para um jovem nascido no interior do país. Jia
queria transpor um pouco da experiência que a
geração dele teve, e o filme todo trabalha
de forma a nos colocar em contato com isso. Há
poucas cenas mais fortes no cinema recente do que aquela
em que os protagonistas tentam, em vão, alcançar
um trem. Jia é um mestre em captar o que é
ser jovem vivendo numa cidade onde nada acontece, em
transpor para a tela a sensação de que
algo está acontecendo em outro lugar.
A opinião geral, à época de sua
exibição em festivais, é que Prazeres
Desconhecidos seria uma mera repetição
do filme anterior, o que diz certamente mais sobre a
preguiça do olhar do que sobre o filme propriamente
dito. Prazeres Desconhecidos é um filme
completo em si mesmo, individuado, com seus problemas
e propostas particulares. Trata-se de um outro momento,
e o que o filme faz é justamente trabalhar no
pós-abertura, num universo de personagens localizados
no limite da marginalidade (Ruy Gardnier diz que Jia
é o verdadeiro cineasta marginal contemporâneo,
e Prazeres Desconhecidos certamente serve como
uma grande prova disso). Há os desejos, os sonhos,
mas eles já partem de um outro principio. Não
é à toa que os heróis de Prazeres
Desconhecidos não contemplam a arte, mas
a contravenção (como já fizera
antes Xiao Wu, o batedor de carteiras protagonista do
primeiro longa do diretor, que ressurge neste filme
recém saído da cadeia). Prazeres Desconhecidos
é um filme de desespero. Se em Plataforma
a imagem que mais nos fica é a do trem que
não se alcançou, aqui nos lembraremos
da moto que morre no meio da estrada e se recusa a pegar.
Há um sentimento de tristeza e impotência
nestas duas imagens-simbolo, mas elas têm significados
muito diferentes. Como o próprio Prazeres
Desconhecidos nos lembra, ele próprio é
um filme ilegal, obra contraventora que só poderá
circular dentro da China via pirataria (o mesmo valendo
para os dois filmes anteriores do cineasta).
Jia Zhang-ke tem fama de ser um diretor difícil,
o que não é bem verdade. Seus filmes pedem
ao espectador que ele se envolva com o material, mas,
tão logo aceitamos o jogo, não há
nada de complicado, austero ou distante nele. Jia é
um diretor com uma sensibilidade bastante pop
(não é por nada que os dois filmes que
chegaram até nós tiraram seus títulos
de canções pop chinesas). Ele tem
um senso apurado para a coreografia do movimento dentro
do quadro. Há uma cena belíssima em Plataforma
em que uma das ex-participantes da trupe que se tornou
policial dança ao som do rádio que exemplifica
isto muito bem. Há nestes filmes (mais em Prazeres
Desconhecidos) um forte senso de urgência
nas simples imagens que contrasta com o tom de vida
passando que marca os acontecimentos na vida dos seus
personagens. Há até mesmo um senso de
humor que pode passar despercebido para aqueles que
decidiram encarar os filmes como algum tipo de lição
impenetrável sobre a China pós-Mao. Além
disso, Jia é um mestre em captar o que é
ser jovem vivendo numa cidade onde nada acontece, em
transpor para a tela a sensação de que
algo está acontecendo em outro lugar.
* * *
O quarto longa-metragem de Jia, Shijie, está
sendo lançado agora em Veneza. Trata-se de uma
novidade na sua filmografia, por se tratar do primeiro
filme do diretor feito com autorização
do governo chinês. Esperamos que ele dê
as caras nos festivais do Rio e São Paulo, e
que a nova legalidade não impeça Jia Zhang-ke
de continuar na linha de frente do cinema chinês
mais renovador.
Filipe Furtado
|