Há três tempos
históricos em Irmãos de Fé.
Não se trata apenas de três segmentos narrativos,
mas de uma operação dramática que,
pondo cada um dos períodos em confronto com os
outros, constrói a síntese da significação
do enredo. E essa significação, para além
da mensagem religiosa explícíta (da redenção
dos pecados e da transformação pela fé),
tem um caráter de, na falta de termo melhor,
"flexibilização dogmática". O passado
de sacrifícios pela causa certa, mostrado no
filme por meio da visualização da conversão
de Saulo, alterará o presente de um deliquente
juvenil, livrando-o do mesmo sacrifício de seu
antepassado, ex-pecador como ele, para obter uma redenção
sem sofrimento. A punição lá de
trás limpa a barra dos faltosos de nosso tempo.
Em linhas gerais, Irmãos de Fé
ilustra o alto preço da convicção
cristã, como A Paixão de Cristo,
mas também prega, subliminarmente que seja, contra
esse preço salgado. Sua plataforma é uma
religiosidade light, self-service, modelada de acordo
com as conveniências dos fiéis: sem muitos
compromissos e concessões, sem leis e proibições
excessivas, de modo a ampliar o rebanho católico
- levando-se em conta, nessa catequese, a alergia ao
martírio na contemporaneidade. O passeio pelos
tempos históricos nos mostra como era duro o
passado dos fiéis e como pode ser menos sacrificante
o presente dos novos crentes.
Um segmento é o de 2020, ano no qual o filme
começa e depois termina - sempre com o rosto
de um homem. Outro são os dias correntes, nosso
presente, ano supostamente de 2004 - quando aquele homem
do início e do final, ficamos sabendo, era um
adolescente infrator, preso em um instituto "correcional"
para ser punido por um assalto, crime esse expresso
em imagens. Durante o cumprimento de sua pena, o rapaz
ganha de presente, das mãos de Padre Marcelo,
um volume da Bíblia. Neste, ele lê a história
de Saulo, o judeu perseguidor de cristãos que,
após receber um sinal divino e ficar totalmente
cego, encontra a luz no cristianismo, seu antigo inimigo,
passando-se a chamar Paulo. Somos encaminhados, assim,
ao terceiro tempo histórico: o da gênese
da era cristã.
Essa distinção temporal-histórica
é fundamental para se entender o percurso de
significações esboçado pelas imagens.
Supõe-se que, por começar e terminar em
2020, com a imagem de um mesmo ator, a instância
narradora, mesmo dispensando a narração
verbal, esteja no futuro, e as situações
de 2004 sejam um flash-back. Temos assim um narrador-personagem,
como em Maria: A Mãe do Filho de Deus,
filme anterior de Moacyr Góes com o Padre Marcelo.
Mas, esse narrador não é o dono da verdade
(status do padre-narrador em Maria), e sim um criminoso.
Ele visualiza os fatos com seu imaginário e com
sua memória, porque para se chegar ao futuro
(o ano de 2020 no qual o tal homem se revelará
um assistente social-religioso), o caminho é
o conhecimento do passado, a gênese do cristianismo
narrada pelo evangelho - que purifica o narrador silencioso,
sem dele cobrar nada por suas faltas.
Ou seja: o delinquente de nosso presente tornou-se o
homem do futuro, e de futuro, depois de receber a mesma
luz transformadora de Saulo, que se converteu em Paulo.
Estamos assim em uma das bases do cristianismo, a "segunda
chance" permitida pela aceitação de Cristo
como salvador dos homens, que possibilita aos crentes
enterrar o passado (seja qual for) e recomeçar
do zero, agora comprometidos não só com
uma nova ética, mas, sobretudo, com o compromisso
de espalhar a fé neste salvador. Estamos, portanto,
em lógica semelhante a de Hellboy: não
importa de onde se vem e o que se fez no passado; importa
apenas que, no presente, integre-se ao consenso. Mas
esse consenso, no filme, não é definido.
Ser cristão, pelo que vemos, é crer em
Cristo. Nada mais. Em Hellboy, pelo menos, está
claro: é agir como um homem, como um homem americano.
No passado, a conversão implica dor física.
Paulo leva bordoadas por ter sido perseguidor de cristãos
e também por pregar contra as tradições
judaicas (como a proibição da carne de
porco e a obrigatoriedade da circuncisão). Seu
projeto é universalista e multicultural, ou seja,
cada cultura com seu cristianismo. Trata-se de um personagem
de ideais contemporâneos, que luta para manter
as especificidades locais em um projeto de globalização
- todas as diferenças são aceitas em nome
de um símbolo aglutinador (o Cristo). Mas a luta
por esse ideal rende-lhe feridas pelo corpo, porque
os valores consolidados no tempo (no caso, o judaísmo)
resistem com violência à ascensão
da novidade (no caso, o cristianismo). Paulo quer enterrar
o antigo pedagogo, Moisés, e implantar uma religião
ainda sem leis escritas, a do Cristo. É um sujeito
tentando viabilizar a modernidade religiosa em um mundo
arcaico, inclusive com a possibilidade de mudar de nome
e de biografia.
Em nosso presente (mas flashback na lógica narrativa),
em 2004, a história está para se repetir,
agora com o adolescente, que pode mudar ao ler a história
de Paulo. No entanto, se o garoto também leva
umas bordoadas no internato, não é por
sua convicção religiosa, ainda inexistente
quando apanha, mas porque aquele meio, por falta de
valores morais, é regulado pela força
física. Não havendo como mudar o meio
(pois o Estado, em seu papel correcional, está
falido), resta mudar um indivíduo, escolhido
a dedo entre os frutos podres. Como, a grosso modo,
os judeus são salvos em A Lista de Schindler,
ou seja, pela ligação privilegiada com
a instância salvadora, neste caso o Padre Marcelo.
O rapaz é salvo por que sua irmã conhece
o Padre. Simples assim.
Em seu quinto longa-metragem em menos de três
anos, com mais horas de set que a maioria dos estreantes
dos anos 90, Moacyr Góes demonstra esforço
para arejar as imagens, dessa vez captadas com câmera
digital, possibilitando uma maior leveza na armação
dos planos, construídos com enquadramentos menos
apáticos, com luz estourada em alguns momentos,
com as cores retiradas na parte urbana (e um pouco mais
quentes na ilustração do evangelho), sem
se evitar um textura mais suja e mais feia, com uma
ação mais turbulenta dentro do quadro,
sem a busca de uma beleza visual a qualquer preço
dos outros filmes, que resultavam em uma artificialidade
nada bela e apenas cafona.
Vemos assim um mínimo de verossimilhança
na ambientação, um artificialismo mais
realista. Também é perceptível
uma melhor administração do ritmo, um
controle maior da agilidade no encadeamento dos planos.
Góes ainda está longe do que se supõe
ser um bom diretor, mas, com Irmãos de Fé
(do qual também é roteirista), sua noção
de espetáculo foi aditivada por, com risco do
excesso, a consciência de que as imagens têm
de ter credibilidade. Não sabemos ainda se adiante
o diretor, sobre o qual pesa o estigma de um início
no teatro com montagens de enorme pretensão,
criará uma marca minimamente reconhecível.
Também não se pode afirmar que a busca
da autoralidade, como sabe quem viu sua constrangedora
adaptação de Dom Casmurro, seja uma promessa
de progresso. De qualquer forma, enquanto a incógnita
permanece, temos uma certeza: Góes ainda não
ensinou ao padre a diferença entre decorar as
falas e interpretar um personagem, mesmo sendo este
personagem o feito diariamente pelo astro de batina.
Cléber Eduardo
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