IRMÃOS DE FÉ
Moacyr Góes, Brasil, 2004

Há três tempos históricos em Irmãos de Fé. Não se trata apenas de três segmentos narrativos, mas de uma operação dramática que, pondo cada um dos períodos em confronto com os outros, constrói a síntese da significação do enredo. E essa significação, para além da mensagem religiosa explícíta (da redenção dos pecados e da transformação pela fé), tem um caráter de, na falta de termo melhor, "flexibilização dogmática". O passado de sacrifícios pela causa certa, mostrado no filme por meio da visualização da conversão de Saulo, alterará o presente de um deliquente juvenil, livrando-o do mesmo sacrifício de seu antepassado, ex-pecador como ele, para obter uma redenção sem sofrimento. A punição lá de trás limpa a barra dos faltosos de nosso tempo.

Em linhas gerais, Irmãos de Fé ilustra o alto preço da convicção cristã, como A Paixão de Cristo, mas também prega, subliminarmente que seja, contra esse preço salgado. Sua plataforma é uma religiosidade light, self-service, modelada de acordo com as conveniências dos fiéis: sem muitos compromissos e concessões, sem leis e proibições excessivas, de modo a ampliar o rebanho católico - levando-se em conta, nessa catequese, a alergia ao martírio na contemporaneidade. O passeio pelos tempos históricos nos mostra como era duro o passado dos fiéis e como pode ser menos sacrificante o presente dos novos crentes.

Um segmento é o de 2020, ano no qual o filme começa e depois termina - sempre com o rosto de um homem. Outro são os dias correntes, nosso presente, ano supostamente de 2004 - quando aquele homem do início e do final, ficamos sabendo, era um adolescente infrator, preso em um instituto "correcional" para ser punido por um assalto, crime esse expresso em imagens. Durante o cumprimento de sua pena, o rapaz ganha de presente, das mãos de Padre Marcelo, um volume da Bíblia. Neste, ele lê a história de Saulo, o judeu perseguidor de cristãos que, após receber um sinal divino e ficar totalmente cego, encontra a luz no cristianismo, seu antigo inimigo, passando-se a chamar Paulo. Somos encaminhados, assim, ao terceiro tempo histórico: o da gênese da era cristã.

Essa distinção temporal-histórica é fundamental para se entender o percurso de significações esboçado pelas imagens. Supõe-se que, por começar e terminar em 2020, com a imagem de um mesmo ator, a instância narradora, mesmo dispensando a narração verbal, esteja no futuro, e as situações de 2004 sejam um flash-back. Temos assim um narrador-personagem, como em Maria: A Mãe do Filho de Deus, filme anterior de Moacyr Góes com o Padre Marcelo. Mas, esse narrador não é o dono da verdade (status do padre-narrador em Maria), e sim um criminoso. Ele visualiza os fatos com seu imaginário e com sua memória, porque para se chegar ao futuro (o ano de 2020 no qual o tal homem se revelará um assistente social-religioso), o caminho é o conhecimento do passado, a gênese do cristianismo narrada pelo evangelho - que purifica o narrador silencioso, sem dele cobrar nada por suas faltas.

Ou seja: o delinquente de nosso presente tornou-se o homem do futuro, e de futuro, depois de receber a mesma luz transformadora de Saulo, que se converteu em Paulo. Estamos assim em uma das bases do cristianismo, a "segunda chance" permitida pela aceitação de Cristo como salvador dos homens, que possibilita aos crentes enterrar o passado (seja qual for) e recomeçar do zero, agora comprometidos não só com uma nova ética, mas, sobretudo, com o compromisso de espalhar a fé neste salvador. Estamos, portanto, em lógica semelhante a de Hellboy: não importa de onde se vem e o que se fez no passado; importa apenas que, no presente, integre-se ao consenso. Mas esse consenso, no filme, não é definido. Ser cristão, pelo que vemos, é crer em Cristo. Nada mais. Em Hellboy, pelo menos, está claro: é agir como um homem, como um homem americano.

No passado, a conversão implica dor física. Paulo leva bordoadas por ter sido perseguidor de cristãos e também por pregar contra as tradições judaicas (como a proibição da carne de porco e a obrigatoriedade da circuncisão). Seu projeto é universalista e multicultural, ou seja, cada cultura com seu cristianismo. Trata-se de um personagem de ideais contemporâneos, que luta para manter as especificidades locais em um projeto de globalização - todas as diferenças são aceitas em nome de um símbolo aglutinador (o Cristo). Mas a luta por esse ideal rende-lhe feridas pelo corpo, porque os valores consolidados no tempo (no caso, o judaísmo) resistem com violência à ascensão da novidade (no caso, o cristianismo). Paulo quer enterrar o antigo pedagogo, Moisés, e implantar uma religião ainda sem leis escritas, a do Cristo. É um sujeito tentando viabilizar a modernidade religiosa em um mundo arcaico, inclusive com a possibilidade de mudar de nome e de biografia.

Em nosso presente (mas flashback na lógica narrativa), em 2004, a história está para se repetir, agora com o adolescente, que pode mudar ao ler a história de Paulo. No entanto, se o garoto também leva umas bordoadas no internato, não é por sua convicção religiosa, ainda inexistente quando apanha, mas porque aquele meio, por falta de valores morais, é regulado pela força física. Não havendo como mudar o meio (pois o Estado, em seu papel correcional, está falido), resta mudar um indivíduo, escolhido a dedo entre os frutos podres. Como, a grosso modo, os judeus são salvos em A Lista de Schindler, ou seja, pela ligação privilegiada com a instância salvadora, neste caso o Padre Marcelo. O rapaz é salvo por que sua irmã conhece o Padre. Simples assim.

Em seu quinto longa-metragem em menos de três anos, com mais horas de set que a maioria dos estreantes dos anos 90, Moacyr Góes demonstra esforço para arejar as imagens, dessa vez captadas com câmera digital, possibilitando uma maior leveza na armação dos planos, construídos com enquadramentos menos apáticos, com luz estourada em alguns momentos, com as cores retiradas na parte urbana (e um pouco mais quentes na ilustração do evangelho), sem se evitar um textura mais suja e mais feia, com uma ação mais turbulenta dentro do quadro, sem a busca de uma beleza visual a qualquer preço dos outros filmes, que resultavam em uma artificialidade nada bela e apenas cafona.

Vemos assim um mínimo de verossimilhança na ambientação, um artificialismo mais realista. Também é perceptível uma melhor administração do ritmo, um controle maior da agilidade no encadeamento dos planos. Góes ainda está longe do que se supõe ser um bom diretor, mas, com Irmãos de Fé (do qual também é roteirista), sua noção de espetáculo foi aditivada por, com risco do excesso, a consciência de que as imagens têm de ter credibilidade. Não sabemos ainda se adiante o diretor, sobre o qual pesa o estigma de um início no teatro com montagens de enorme pretensão, criará uma marca minimamente reconhecível. Também não se pode afirmar que a busca da autoralidade, como sabe quem viu sua constrangedora adaptação de Dom Casmurro, seja uma promessa de progresso. De qualquer forma, enquanto a incógnita permanece, temos uma certeza: Góes ainda não ensinou ao padre a diferença entre decorar as falas e interpretar um personagem, mesmo sendo este personagem o feito diariamente pelo astro de batina.

Cléber Eduardo