QUANDO O CINEMA É TÃO GRANDE QUANTO A VIDA

“Vai lá, Eduardo, assiste o filme do Chris Marker e escreve alguma coisa pra revista!” Este foi o incentivo/desafio do editor de pauta Peerre sobre o filme Le fond de l’air est rouge, exibido no Rio dentro da mostra De Olhos Bem Abertos. Aceitei, com galhardia, afinal o (pouco) que vi de Marker (La jetée, Sans soleil, Nível 5) sempre me causou mais do que uma boa impressão – um sempre instigante fascínio de querer pensar mais sobre os limites da linguagem do cinema, das fronteiras de gêneros e registros. Nada sabia eu sobre o filme que ia ver – santa ignorância.

Chegando no CCBB, o primeiro aviso desalentador: o filme seria exibido no original em francês, sem legendas. Eu realmente não entendo francês a este ponto para me garantir, mas decidi ficar por dois motivos: primeiro porque já tinha reservado a tarde para aquilo (afinal, o filme tem 3 horas), então não custava dar alguns minutos do tempo para constatar a incompreensão; e segundo, porque sempre corre-se o risco nestas mostras de única exibição dos filmes de a informação não ser precisa – vai que pinta uma legendinha em inglês... Me posiciono no fundo da sala, pronto para sair sem incomodar muito as pessoas. Começam os créditos e lá está ela: a legenda em inglês traduzindo o título original – Grin without a cat. Peraí - Grin without a cat? Não me parece exatamente uma tradução literal... mas é só o início, porque em Marker nada é, neste sentido, literal.

Me dirijo para as sagradas poltronas frontais da sala, já pronto para enfrentar as legendinhas em inglês ao lado do editor de pauta. Mais uma surpresa, porém: a cópia não é legendada em inglês, e sim dublada no idioma de Shakespeare – legendada só nas passagens filmadas com falas em outra língua, o off é todo em inglês. Boa notícia? Nem tanto – o som nem sempre é fácil de entender, ainda mais quando entra uma voz feminina no off. O filme começa, imagens do Vietnã durante a guerra. Todas as figuras aparecem na tela cortadas quase do nariz para cima – claramente estão projetando o filme na janela errada. Aguardo um pouco para ver se o projecionista se dá conta do equívoco claro, mas nada acontece. Depois de dez minutos, não tem jeito: é subir para o fundo da sala e me dirigir para a cabine de projeção, onde se encontra o projecionista com as latas do filme aos seus pés. Nela, em letras garrafais: ATTENTION – FORMAT 1,37. Para quem não sabe, trata-se do formato mais quadrado de tela – o filme estava sendo projetado em 1,85, o mais retangular antes do cinemascope. Peço ao projecionista que faça a caridade de efetuar a troca, porque senão não dá para ver o filme. Solícito, ele se dispõe, mas precisa parar a projeção para trocar de lente. Assim o faz, por dez minutos tornados longos pela ansiedade e impaciência na sala, abrandadas por um bom papo com Peerre e Fabián. Começa a projeção, agora sim correta, agora sim tranquila.

Três horas depois, a projeção termina e estou lá chapado na cadeira. Na cabeça, as palavras mortais: “Escreve alguma coisa pra revista, Eduardo!” E aí, editor, estou me saindo bem até agora? Espero que sim, porque escrever SOBRE Le fond de l’air est rouge ainda me parece impossível, então prefiro só escrever em torno dele. Acredito que a projeção em película deste filme no Brasil é um acontecimento bem mais importante do que a própria mostra, que dirá a mídia, deixou transparecer – e por isso aceito o fato de que a Contracampo não pode deixar passar em branco este momento sem algum registro. Mas, analisar o filme de Marker? Como? A partir de qual ponto de vista?

Para os que não sabem (mais uma vez: eu não sabia), o filme de Marker é um grande apanhado dos movimentos sociais (eminentemente os de esquerda) que cortam o mundo, de 1967 (Guerra do Vietnã, etc) a 1977. Assunto abrangente, talvez, mas que se torna muito mais do que isso nas mãos de Marker: fruto de uma extensa e impressionante pesquisa de imagens que vai dos registros de mídia a cenas realmente surpreendentes e pouco vistas, ele monta uma narrativa que corta o mundo de lado a lado através de uma quase delirante sequência de argumentações que misturam depoimentos aos textos em off, nunca apenas explicativos, sempre criadores de sentidos inesperados com as imagens que surgem e sua quase sempre inesperada conexão com as próximas que virão. Não há nas 3 horas de filme uma só argumentação rasteira ou meramente expositiva – Marker não mostra imagens e sons, e sim dialoga com eles, e através deles, conosco, num fluxo de informação incessante, sufocante em sua quantidade e profundidade.

Filme de montagem? Também (não por acaso começa com um jogo dialético entre cenas de Encouraçado Potemkim e de protestos em 67), mas não só. Filme de tese? Também, mas não se pode dizer que seja fácil dizer qual – afinal para além da separação do mundo entre os que detêm o Poder e os que estão contra estes (única separação atemporal inconfundível), é complicado saber exatamente a posição de Marker sobre uma enormidade dos assuntos ali dispostos, desde o regime chinês ao cubano, passando pela Primavera de Praga ou os movimentos estudantis e operários franceses. Marker nos relembra constantemente que não se pode simplificar o que nada tem de simples: as manifestações populares, os movimentos da política, os rumos incertos da História e da sociedade.

Por isso tudo, é quase uma chacota pedir que se assista a Le fond de l’air est rouge uma única vez, numa conturbada sessão em que eventualmente não se entende o que se diz na tela, e faça-se disso uma análise. Marker levou anos juntando o seu material, montando o seu discurso – não serei eu a tentar desmembrá-lo em poucoas dias, em poucas horas, pois trata-se de batalha perdida na saída. O que eu posso fazer aqui, nestas maltraçadas linhas, é registrar a importância que se veja mais e mais este filme, que se possa discuti-lo e receber cada informação que dele advém no fluxo do possível. Porque Le fond de l’air est rouge não se completa ou se entende só com a palavra “cinema” – é vida impressa na tela, pelos olhos de um cineasta essencial. Caro editor, desculpe-me minhas falhas, mas numa segunda vez juro que consigo fazer melhor. Ou não: talvez descubra que o melhor mesmo, diante deste filme, era ter permanecido calado.

Eduardo Valente