ENTREVISTA COM O SECRETÁRIO-EXECUTIVO DO MINISTÉRIO DA CULTURA, JUCA FERREIRA

Contracampo - Queríamos começar perguntando justamente sobre o planejamento do MinC, antes e depois do vazamento da minuta do Projeto pela internet. Como é que ele está alterado e colocado em termos de prazos?

Juca Ferreira - Em termos de prazos, a gente aumentou na medida em que é necessário um prazo de discussão que dê condições para que os diversos atores que compõem o mundo do audiovisual tenham possibilidades de, de fato, analisar o texto e formular um posicionamento que represente os diversos segmentos que compõem esta área tão complexa. E que nos dê condições de realmente chegar a um resultado que garanta uma regulação satisfatória, dentro dos termos constitucionais, garantindo o enfrentamento da complexidade técnica e gerencial-administrativa da área empresarial que signifique um avanço na capacidade do Estado brasileiro garantir o desenvolvimento econômico e cultural do setor.

Cc - Você tocou no termo "regulação", e lendo o Projeto com calma a gente percebe desde o primeiro parágrafo que estes são os dois termos centrais ao documento: regulação e organização. Eu queria que você falasse da importância que vocês vêem no papel do Estado, a partir das instâncias referidas no projeto, exercer este papel de regulador e organizador deste setor.

JF - O setor do audiovisual no mundo inteiro vem passando por um processo de transformação tecnológica que tornou as legislações sobre o assunto absolutamente obsoletas. Em geral, a legislação anterior a todo esse processo, como é o caso da brasileira, não só não comporta várias tecnologias e suportes que já estão em operação ou em vias de entrarem no mercado, como não comportam o aspecto principal, que é isso que os técnicos e teóricos do setor chamam de "convergência tecnológica". Ou seja, hoje os conteúdos trafegam por vários suportes - o cinema por exemplo realiza mais de 70% de sua renda em outros suportes e ambientes que não a sala de exibição, como a TV, o DVD, o VHS, a internet. E esta possibilidade que o desenvolvimento tecnológico criou não permite mais que uma legislação seja eficiente tratando de uma forma estanque setor por setor. Então, essa amplitude que a Ancinav pretende ter é exatamente para fazer frente a uma realidade. Por exemplo, o Japão de cinco em cinco anos faz um esforço de modernização e atualização da legislação na área de telecomunicações e na área do audiovisual, exatamente por compreender que este é um processo irreversível, inquestionável e incontornável, e portanto precisa ser enfrentado. Países como a Austrália, França, Itália, Coréia do Sul, ou mesmo os Estados Unidos, vêm atualizando sua legislação para fazer frente a esta realidade inexorável deste processo de modernização, de convergência tecnológica. Processo em que houve uma certa mudança do perfil de atuação empresarial do setor, com uma grande horizontalização da intervenção destas empresas assumindo várias dimensões que, até então, eram até proibidas pela Constituição destes países, particularmente pela Constituição americana. Então, neste sentido, nós não podemos ficar estagnados em duas décadas atrás. O Brasil precisa de uma legislação que dê conta desta complexidade, inclusive para proteger nossos conteúdos nacionais, as empresas nacionais, os criadores nacionais, de uma ação avassaladoramente oligopolizante, de controle da distribuição, da veiculação.

Então, há uma necessidade de enfrentamento desta questão, e isso não é colocado por nós, é colocado pelo setor: esta é a quarta vez que se tenta criar a Ancinav, mas nas outras vezes alguns lobbies conseguiram detonar o processo de criação e de discussão. Desta vez, houve uma tentativa de descredenciar a discussão, estigmatizando previamente o conteúdo da minuta do anteprojeto de Lei que o Ministério da Cultura, trabalhando junto com outros Ministérios, estava apresentando. Na verdade foi uma repetição de uma atitude que nós consideramos autoritária e que não corresponde à realidade, na medida em que está garantido o processo. O MinC tem demonstrado apego a um conceito básico de que política pública não se constrói dentro dos gabinetes e das repartições públicas, e sim à luz do dia, com discussões públicas, com participação e consultas, e é isso que estamos propondo. Então, nós estamos manifestando, e o Ministro tem dito isso, uma paciência enorme com esta reação inicial porque a gente sabe que é uma necessidade inquestionável, sob o ponto de vista público, que atualizemos a nossa legislação nesta área.

Cc - Falando então desta resposta inicial, nós pudemos ver que ela tentou dar uma leitura de cunho fortemente ideológico a um projeto que, após atenta leitura, pouco tem desta conotação. É um projeto prático, de cunho fortemente econômico de regulação de um setor. Além disso, o projeto afirma seguidamente, já a partir de seu Artigo Segundo a manutenção dos conceitos de liberdade de expressão e comunicação, e isso é repetido algumas vezes ao longo do documento. Como você enxerga, então, esta resposta eminentemente ideológica de crítica ao projeto?

JF - Esta "ideologização", se podemos chamar assim, não é ocasional. Primeiro, ela faz parte desta tentativa de descredenciar a discussão, de conduzir a conversa e criar uma moldura de apresentação da proposta dentro de um contexto de autoritarismo, de dirigismo, de tentativa de interferir na liberdade de criação no Brasil, que é escandalosamente distante da realidade do projeto. Faz parte, então, desta tentativa de descredenciar um debate público mais do que necessário, o que não é a primeira vez que acontece. A grande diferença em relação a ocasiões anteriores é que, primeiro, a conjuntura é outra - a democracia brasileira vem cada vez mais se consolidando, onde a eleição do presidente Lula abriu um novo capítulo, há uma repactuação geral na sociedade brasileira e todos os aspectos que garantem relações democráticas na sociedade tendem a se aprofundar. A sociedade brasileira está com fome de atualização, de modernização, o Brasil é um país viável que tem condições, no século XXI de ser uma grande Nação. Mas nós temos ainda entulhos autoritários, apropriações de espaços do Estado brasileiro - ou seja, parte do Estado brasileiro ainda é "privatizado", e o presidente Lula tem sinalizado que só uma maneira de atualizar a nossa sociedade e o nosso Estado, que é através da discussão, da pactuação. Por isso mesmo, este é um contexto que inibe estas tentativas autoritárias de descredenciar discussões que são estratégicas para a nossa sociedade. Por exemplo, no artigo da Miriam Leitão (do Jornal O Globo), ela se refere ao artigo 42 da minuta do projeto de Lei, quando os artigos 42 e 43 são cópias da nossa Constituição. Ou seja, as pessoas caracterizam artigos da Constituição brasileira, nossa Lei máxima, como manifestação de autoritarismo do Ministério da Cultura. Isso é o que a gente poderia chamar de um ato falho, aí sim autoritário.

Outra coisa que eu acho importante destacar é que nem tudo nesta discussão reflete esta manifestação corporativa do setor. A recorrência ao contexto de conflito ideológico bi-polarizado, de soviéticos e Ocidente (onde eles seriam a democracia ocidental e o Projeto seria uma manifestação soviética), me surpreendeu pelo arcaísmo conceitual. De repente eu me senti na década de 50, 60, 70, em plena Guerra Fria, governo Lyndon Johnson, McNamara. Me parece que estes setores precisam atualizar seu material conceitual e sua capacidade de interpretar os fenômenos democratizantes que surgiram na sociedade brasileira. Não há mais, no mínimo desde a queda do Muro de Berlim, condições de você empacotar as manifestações de atualização, de democratização, de ampliação do Estado brasileiro, e circunscrevê-las numa apresentação como algo de "soviético" ou coisas do gênero. Ao fazer isso, manifesta-se uma certa pobreza conceitual, uma falta de capacidade de interpretar as demandas da sociedade, especialmente em direção à democratização. Este aspecto me parece ainda mais triste do que a do interesse corporativo, porque toda corporação ao participar do espaço público necessariamente traz seu interesse privado e coloca-o na mesa, e isso é de se esperar. Mas daí a se tentar inibir, e até mesmo cercear, o debate de uma questão tão importante com um arsenal de argumentos que são de antes da queda do Muro de Berlim, com uma ótica dicotômica cujo aprisionamento tanto mal causou ao mundo. E é uma colocação sem base em qualquer realidade, porque, como você constatou, o texto não possui base ideológica.

Cc - Dentro deste contexto de manifestações contrárias que você menciona, alguns artigos deste anteprojeto podem ter uma leitura específica dentro da realidade brasileira (que pode até ter paralelos em vários países, mas que ainda assim é só nossa). Menciono especificamente artigos como o 39 (da definição de empresa brasileira) ou o 40 (da definição de produção independente), entre vários outros, onde a tentativa de garantir, como o projeto seguidamente afirma, a variedade das fontes de informação, a competição efetiva e se colocar contrário a monopólios e oligopólios atingiriam, neste contexto específico que mencionamos acima, principalmente uma empresa (ou um grupo delas): as Organizações Globo - mesmo que não aja, é claro, nenhuma menção específica a ela no texto, e que em qualquer ocasião futura ou passada poderia se tratar de um outro grupo ou empresa; mas no Brasil, hoje, ela é que possui tal posição. Talvez não por acaso, foram os meios de comunicação desta empresa que serviram como base para estes ataques iniciais ao projeto, e sabemos da influência e penetração destes no fluxo nacional de informações. O que eu gostaria de saber é: como o Ministério enxerga a possibilidade da retomada efetiva do diálogo entre as duas partes, uma vez que este projeto ainda precisa passar por tantas instâncias antes de efetivamente poder ser colocado em funcionamento.

JF - Eu queria começar a responder esta pergunta ressaltando duas coisas: primeiro que o texto da Lei não visa nenhuma empresa em particular, e sim o contexto geral das atividades na área do audiovisual, encarando todas essas dimensões sobre as quais já falamos, e procurando fazer frente a uma realidade concreta que não só o Brasil, mas o mundo inteiro enfrenta. Este processo de atualização da legislação e da regulação, que ela procura fazer, é um fato real na grande maioria dos países do mundo. Portanto, a primeira coisa é que não tem este sentido paroquial de visar atingir ninguém em especial. Eu diria até mais: a regulação prevista neste projeto é muito suave, se comparada com a da França, com a da Coréia, da Austrália - porque nestes os índices de obrigatoriedade e nacionalização são muito maiores que estes apresentados aqui, da defesa do conteúdo nacional, da empresa nacional, do criador nacional. Agora, evidentemente, por falta de uma regulação, o contexto se expressa com uma certa gravidade na realidade brasileira.

A outra coisa que eu queria dizer é que o Ministro Gilberto Gil é uma pessoa fartamente conhecida pela população brasileira, por sua trajetória no mundo da cultura - não só como criador mas também como intelectual orgânico. Por isso é difícil colar nele a pecha de soviético, de autoritário, de estatizante e me parece que este foi um dos fatores que mais dificultou o sucesso desta estratégia de "guerra aérea", ou seja, de soltar uma quantidade enorme de bombas para previamente impedir qualquer possibilidade de reação. O Ministro Gil possui um capital político tal junto à sociedade brasileira que bastou ele dizer "Vocês estão querendo dizer que eu sou soviético, autoritário, a favor da censura?" para esvaziar completamente a possibilidade desta versão ter permanência e realidade.

Me parece que nos últimos dias, especialmente de dois dias para cá (N. do T.: entrevista realizada na manhã do dia 13/08), nós já estamos assistindo a uma mudança do ambiente, do diálogo em torno do projeto. As várias entidades do mundo audiovisual brasileiro se manifestaram, favoravelmente, à discussão antes de tudo - e muitos favoravelmente ao texto e muitos ainda favoravelmente à essência do texto, ou seja, a necessidade de uma regulação e de uma agência abrangente, onde restaria como missão principal trabalhar a melhoria de um ou outro artigo, de uma ou outra redação. Alguns levantam a questão da taxa, que deveria ou não ser menor, mas não negam a necessidade da própria atividade gerar capacidade de reinvestimento em si mesma, para superar os gargalos econômicos que o audiovisual brasileiro tem. Estas pessoas, corretamente, têm apontado que nós não podemos pensar em capitalizar a atividade apenas com dinheiro de fundo perdido que é repassado pelo Poder Público para a atividade. Esta é uma dimensão importante, e o Ministro vem aumentando estes recursos a fundo perdido através dos mecanismos de renúncia fiscal, da Lei do Audiovisual e da Lei Rouanet, e criando novos mecanismos para aumentá-los ainda mais. Mas, é evidente que nós não podemos pensar em montar uma indústria do audiovisual poderosa no Brasil apenas baseada numa capitalização a fundo perdido. Isso é uma ingenuidade ou o reflexo de pessoas prisioneiras de uma tradição onde os principais recursos, ou os únicos, da atividade virem de fundo perdido. Mas eu vejo esta reação mais naquela faixa do ditado popular que cachimbo deixa a boca torta.

Então, eu acho que há todo o espaço para discussão, para o diálogo, principalmente porque esta tentativa de descredenciar com um arsenal ideológico tão pobre, tão atrasado, não tem condições de criar uma dificuldade intransponível. A dificuldade existe, ainda mais porque discutir a regulação da mídia através desta própria mídia é um problema real, mas já existe no setor uma massa crítica produzida por ele mesmo. Porque, afinal, não fomos nós que criamos a idéia da Ancinav - inclusive alguns dos que hoje estão contra há dois ou três anos atrás eram a favor, como é o caso específico do meu querido Cacá Diegues, que era membro do GEDIC e assinou documentos na época, quando uma gritaria parecida com esta acabou impedindo a criação da agência, que se tornou apenas uma agência de cinema. É necessário que a gente invista na discussão, isso faz parte do fortalecimento do espaço público no Brasil, do espaço democrático e a sociedade brasileira precisa se modernizar para garantir uma inserção no mundo globalizado de uma forma mais sólida, mais sustentável - e é esta uma das grandes lições do Governo Lula: a possibilidade de uma forma pacífica através da discussão, da participação da sociedade e dos diretamente interessados nas políticas públicas. Criaremos assim um novo ambiente, respeitando as diferenças de opinião, os interesses em jogo, mas constituindo uma posição enquanto Estado brasileiro, enquanto interesse público, que tem no audiovisual uma atividade tão importante.

Cc - O projeto prevê uma série de ações que refletem não só algumas das reivindicações dos recentes Congressos do Cinema Brasileiro (o CBC) ou do GEDIC, como mesmo dos primeiros Congressos dos anos 50, reivindicações históricas, em suma. Há inúmeros pontos que poderíamos discutir longamente, desde esta idéia da taxação dos filmes por número de cópias, passando pela reinstalação de um Sistema de Informações central de aferição da bilheteria e indo até pontos como a necessidade do depósito de matrizes de filmes na Cinemateca Brasileira ou a cessão dos direitos de exibição dos filmes feitos com recursos públicos para exibição nas redes públicas de TV passados 8 anos. Destacaria ainda a criação de novos métodos ou entidades para iniciar este processo que você mencionou, relacionado à auto-sustentabilidade do cinema nacional, especificamente o Funcinav (fundo de fomento à atividade audiovisual); os três tipos de ação que viriam deste - o Prodecine (Programa de Desenvolvimento do Cinema), o Prodav (Desenvolvimento do Audiovisual) e o Prêmio de Adicional de Renda; e a criação dos Funcine. O texto deste projeto, quando chega na explanação destes mecanismos, que podem ser consideradas suas grandes novidades "positivas" (onde veríamos as taxações ou cotas como novidades que não são criadoras em si, e sim possibilitadoras de algo), é bastante curto e vago, dá apenas linhas gerais mas não explica como eles funcionariam de fato ou sequer maiores detalhes de uso destes. Queria que você explicasse o porquê desta opção, ou dessa necessidade.

JF - O que nós estamos instituindo é um marco regulatório abrangente que dê conta da realidade do setor audiovisual brasileiro e criando uma Agência com competência de gerir o processo de atualização da circulação dos conteúdos nas diversas plataformas que o mundo do audiovisual impõe. Agora, evidentemente que ao consolidarmos isso nós possamos partir imediatamente depois para a regulamentação de uma série de aspectos que, inclusive, precisarão estar sendo permanentemente modificados. E para isso é bem melhor que estejam numa estrutura de regulamentação da Lei do que no corpo desta, porque se ficar nesta ficaríamos obrigados a, todas as vezes em que fosse necessário fazer pequenas alterações em coisas que são previsivelmente mutantes, seria preciso um esforço enorme. Por isso mesmo é preferível deixar todos estes pontos para um processo de regulamentação posterior.

Cc - Boa parte dos trechos da Lei que foram pinçados cirurgicamente para contestação com bases ideológicas vem da parte referente aos chamados "Princípios Fundamentais", que são trechos de referência a instâncias tão abrangentes quanto "Os Deveres do Poder Público". Faz parte da redação jurídica desta parte das leis, assim como dos contratos ou estatutos, um certo tom mais geral, mais de carta de intenções ou de tentar prever mais do que o necessário para não precisar depois fazer alterações - isso é comum no dia a dia jurídico da redação deste tipo de texto. Um exemplo é a tal menção ao Conselho-Diretor da Ancinav que foi lida como permitindo "reuniões secretas", quando é uma redação comum e de praxe no tipo de agência aqui instituída. A partir das críticas que foram levantadas, você mesmo declarou que esta redação específica está sendo revista e recolocada - eu queria que você falasse um pouco sobre este processo.

JF - No processo de discussão nós detectaremos alguns tipos de problemas. O primeiro seria a redação que não esteja explicitando a intenção do texto, ou seja, uma redação que não se qualifica suficientemente para expressar com a transparência que a Lei exige - então, vamos melhorar a redação deste texto. Em segundo lugar, algum mecanismo criado pela Lei que não seja aceito pelo conjunto da atividade ou que fique comprovado que é negativo para ela - então, suprimimos o mecanismo. Ou seja, nós estamos abertos para que a discussão seja o principal instrumento de construção de um aprimoramento deste projeto. Agora, tem uma carga intencional de criação de uma nuvem de fumaça em torno do projeto ao estigmatizá-lo previamente. Hoje mesmo aqui tem uma manchete de um dos jornais mais importantes do Brasil que lê: "PT quer criar 500 cargos para a agência do cinema". Isso é uma manchete com a clara intenção de reforçar a idéia de que regular, criar um marco regulatório, é necessariamente estatizante e aumentar a burocracia. Passados vinte anos defendendo o Estado mínimo, isso criou uma certa subjetividade no Brasil de rejeição de qualquer interferência do Estado - e isso é claramente uma má intenção. Na verdade, sobre a criação destes cargos, mesmo que a gente não crie a Ancinav, a Ancine - criada no Governo anterior - já está com a criação destes cargos prevista porque a demanda do tipo de trabalho da Agência no cinema já pede uma certa estrutura para seu pleno funcionamento e seu caráter de fiscalização e outras atuações da agência. Se você amplia do cinema para todas as outras áreas, é normal que isso se amplie um pouco mais. Mas, essa manchete que eu diria que não é só política, mas também mal intencionada, ela faz parte dessa tentativa de aprisionar a discussão em duas ou três características estigmatizantes. Este recurso, vamos ter que lidar com ele permanentemente, mas estamos preparados para podermos, a cada tentativa, esclarecer e chamar para o fundamental. É o que a Bíblia chama de separar o joio do trigo. A gente precisa ter a paciência, e o Ministro com sua espiritualidade é inspiração constante quanto a isso, de separar o que não é verdadeiro daquilo que é verdadeiro, e vamos discutir o que é verdadeiro. Agora, responderemos a todos esses argumentos, sem dúvida.

Cc - Para fechar, queríamos esclarecer inclusive que não quisemos com esta entrevista entrar mais fundo nos pontos específicos do projeto exatamente por entendermos que ele ainda está em discussão, e que os pontos serão frutos de muita negociação - por isso faz pouco sentido neste momento ficar pegando ponto a ponto a Lei para análise porque isso será feito ao longo das próximas semanas pelos diferentes setores da atividade. Queríamos mais era entender os fundamentos do Ministério na composição deste projeto - e neste sentido vale uma última pergunta: é sabido que o Governo estudou bastante na elaboração do projeto, tanto as legislações anteriores nacionais sobre este assunto, quanto a legislação de outros países e a legislação de outros setores no que se refere à criação desta agência reguladora. Você poderia falar como se deu este processo?

JF - Na medida em que a reação corporativa ao projeto teve um efeito menor do que o esperado pelos que a mobilizaram, eu acho que virá uma segunda reação, de aparência técnica. Menções à inconstitucionalidade, conflitos de competência com outras agências, etc. Já estamos esperando esta segunda fileira de resistência, de dar um aparelhamento técnico ao que até agora tem sido um ataque puramente ideológico. Nós trabalhamos o projeto ao longo de 14 meses de trabalho, com o apoio e participação da Casa Civil; do Ministério da Fazenda, que nos deu uma consultoria nos aspectos econômicos; de consultores de diversas áreas para que o projeto de lei viesse calçado nas leis maiores, principalmente na Constituição. Nós estamos tentando desbravar uma situação nova, que é esta criada por esta revolução tecnológica, pela convergência tecnológica e a realidade empresarial do setor. A característica do projeto é nitidamente de proteção do conteúdo nacional, das empresas nacionais, dentro de uma perspectiva democrática, ou seja: de ampliar a acessibilidade à veiculação, e isso é uma questão que incomoda algumas empresas. Eles gostariam que a gente regulasse o capital estrangeiro na área, mas permitisse a monopolização de algumas empresas brasileiras na atividade, mas não concordamos com isso. Acreditamos que é estratégico para a sociedade garantir a possibilidade de que todas as regiões do Brasil possam veicular sua produção local, o que faz parte de um conceito mais fundamental que é garantir a diversidade cultural do país e garantir a construção de um audiovisual que esteja sustentado na ampla possibilidade que a riqueza cultural brasileira permite. Dentro deste esforço, alguns dos nossos técnicos da área audiovisual foram para a Coréia conhecer o marco regulatório que tem permitido que eles avancem na proteção ao conteúdo nacional, foram à Austrália, onde perceberam que lá o marco regulatório é muito mais rigoroso no sentido de impedir que as "majors" atuem de uma forma oligopólica na sua realidade. Em alguns destes países a cota de tela existe também na televisão, e os próprios Estados Unidos possuem mecanismos de defesa para proteger o mercado deles de produtos vindos de outros países. Então, hoje acreditamos que estamos inseridos num contexto de início de século XXI onde os países, e as próprias Nações Unidas, vêm fazendo um trabalho de afirmação da necessidade de proteger a diversidade cultural no mundo, e o audiovisual é área estratégica nesta questão.

Assim, nada do que estamos propondo é exótico ou tirado da nossa cabeça, e sim está dentro de uma tendência contemporânea da geração de marcos regulatórios e da criação de instrumentos que façam com que o interesse coletivo se sobreponha aos interesses particulares das corporações que desejem monopolizar um setor. Daqui para a frente, então, é trabalhar para aprimorar o texto, retirar o que possivelmente exista (e nós sempre admitimos que possa existir) com algum aspecto que não seja viável na aplicação. Mas, essa rejeição primeira é claramente autoritária, não-democrática, numa tentativa de predominar o interesse particular, corporativo, sobre o interesse coletivo, prejudicando um aspecto importantíssimo que é a ampliação da acessibilidade no Brasil. Garantir que o conteúdo audiovisual tenha livre circulação a partir de suas potencialidades neste mercado do audiovisual. Mas creio que a própria repercussão que foi dada acabou se caracterizando como um tiro no pé, porque a sociedade brasileira está percebendo que estamos tratando de algo importante. Agora, eu acredito que a razão irá predominar e que chegaremos a um texto satisfatório. No nível do Governo há uma determinação de dar sustentação a este processo, está se avançando. Evidentemente existe um ou outro aspecto de compatibilização de competências, entre agências diversas, mas isso é processo de aprimoramento do texto. Dentro do Governo não há nada que sinalize conflitos intransponíveis, pelo contrário: a reunião dos Ministros manifestou isso, e as conversas que nós estamos mantendo após a reunião dos ministérios que compões o Conselho Superior de Cinema têm demonstrado que estamos avançando. Então, a idéia é aceitar os 60 dias pedidos pelos representantes da sociedade civil no Conselho, nós já sinalizamos isso para a Casa Civil que já realizou a consulta e eu mesmo, ontem, pessoalmente conversei com o Ministro José Dirceu e há todo interesse de investir na discussão, daí o alargamento para este prazo de 60 dias.


Entrevista cedida na manhã do dia 13/8/2004, por telefone, de Brasília, a Eduardo Valente.