História
de Jean e Pauline
A exibição
de Demonlover no Festival do Rio BR de 2003 dividiu
opiniões, mas sem dúvida deixou clara,
para quem ainda não conhecia o diretor, a necessidade
de uma maior visibilidade da obra de Olivier Assayas.
Demonlover oferece apenas uma parte da diversificada
obra de Assayas, que apresentou seu último filme,
Clean, no festival de Cannes deste ano. Passar
Destinos Sentimentais na Sessão Cineclube
é mais uma etapa dessa descoberta tardia, cuja
complementação por enquanto só
pode ser feita através de alguns canais a cabo,
que vez ou outra abrem espaço para o cineasta
(Água Fria e Paris se Levanta,
dois de seus melhores filmes, foram exibidos na tv por
assinatura).
A carreira de Assayas
tem no mínimo um ponto em comum com a de alguns
dos cineastas franceses mais conhecidos por aqui: ele
foi redator dos Cahiers du Cinéma (não
na época de Bazin, Godard e Truffaut, mas na
primeira metade dos anos 1980, tendo como editor ninguém
menos que Serge Daney). Além de ter participado
daquele importante momento da revista, quando ressurgia
uma prática crítica/cinéfila não
apenas diurna, analítica, rigorosa, mas também
noturna e encantada, Assayas ainda foi roteirista de
André Techiné (Le Lieu du Crime,
Rendez-Vous), outro cineasta de filmografia constante
e essencial dentro do panorama francês atual.
É, portanto, de um diretor com histórico
tão sólido quanto maduro que estamos falando.
Destinos Sentimentais
é seu antepenúltimo trabalho, e é
um filme de época atípico. Apesar do título,
não é o destino - que traz em si um peso
existencial - o que está em jogo, mas um "simples"
porvir. O grande empreendimento narrativo do filme é
a fluidificação do tempo, o que está
longe de ser fácil numa produção
que remete ao passado, quando temos sempre a impressão
de que, delimitado no turbilhão da História,
aquele tempo adquire uma densidade impossível
de ser burlada. Mas Destinos Sentimentais ameniza
o tempo, faz-nos até esquecer da sua existência.
Jean Barnery, protagonista do filme, diz a frase, já
na parte final, que resume a relação que
o filme estabelece com o tempo: "É estranho
não lembrarmos de quem éramos". Ele
consegue perceber que mudou radicalmente, mas não
sabe dizer onde, quando e como exatamente se deu essa
mudança. É isso que faz de Destinos
Sentimentais um trabalho tão singular, tão
diferente dos filmes de época que, à sua
semelhança, abrangem um longo período
na vida dos personagens, dispõem de enormes elipses,
mas nunca deixam de mostrar os pontos de virada exatos,
a câmera nunca deixando de presenciar as manifestações
explícitas do tempo e do destino. No filme de
Assayas, são justamente esses rastros que estão
apagados, engolfados pelas elipses. Embora o filme abarque
as três primeiras décadas do século
XX e atravesse uma série de acontecimentos grandiosos
e fundamentais, o que cabe à câmera é
filmar os interditos desses acontecimentos. Em Destinos
Sentimentais a História é um eco distante,
não é a orquestra que vemos se apresentar
no palco. Na parte em que Jean vai à Primeira
Guerra Mundial, por exemplo, em vez de o acompanhar,
o filme fica com sua esposa Pauline (Emmanuelle Béart,
uma das melhores e mais bonitas atrizes francesas dos
últimos tempos), revelando a angústia
e o distanciamento que a preenchem. E talvez a melhor
forma de conhecer as conseqüências de uma
guerra não seja indo ao front, mas filmando o
dia-a-dia das esposas dos combatentes. Na cena que reflete
as greves e movimentos sindicalistas que marcaram os
anos 20, quando uma multidão de trabalhadores
revoltados com a fábrica de porcelana da família
Barnery atira-se contra o carro em que Jean se encontra,
quebrando o vidro, tentando impedi-lo de prosseguir,
a câmera, contudo, permanece dentro do carro,
continua a partilhar do ponto de vista do protagonista.
O carro, nesse caso, metaforiza o filme, que é
apenas sacudido de fora por uma história marcadamente
conflituosa e dissonante.
Se os filmes de Assayas
parecem tão distintos uns dos outros, é
porque ele sempre lida com temas mais ou menos novos
em relação aos trabalhos anteriores e
acredita haver a forma ideal (leia-se particular) de
filmá-los. A melhor expressão para a feitura
de Destinos Sentimentais vem de dentro do próprio
filme: a fabricação de porcelana, que
mistura uma maquinaria pesada ao mais fino artesanato.
A primeira vez que Pauline - que acredita no amor como
uma "religião do coração"
- vê Jean é mediante a mise en scène
austera da cerimônia cristã, que ordena
não só o dela, mas todos os olhares na
direção de Jean enquanto ele, ainda pastor
nessa parte do filme, reza a missa. A segunda vez, entretanto,
é numa festa, onde a câmera desliza pelo
espaço e vai captando uma simultaneidade de pequenos
acontecimentos através, principalmente, do olhar
de Pauline. Uma posição de câmera
que chama a atenção nesse e em outros
filmes do diretor é o plongé (a
tomada de cima): muito antes de denotar alguma superioridade
do cineasta em relação às pessoas
que filma, mostra seu impulso de cobri-las com luz,
uma espécie de ponto de vista solar, para aplacar-lhes
a frieza. Numa atitude semelhante, Pauline abre a janela
do quarto de hotel em que Jean se hospeda sofrendo de
tuberculose, após se divorciar da primeira esposa.
Ela deixa o sol entrar, num gesto fundador para toda
a relação que se desenvolverá entre
os dois.
Existe uma lógica
de desprendimento que permeia as relações
humanas na obra de Assayas. Na cena de abertura do filme
aparece uma data: 1900, um século que começa
- mas a cena é de um enterro. No momento seguinte,
Isabelle Huppert, que faz a primeira esposa de Barnery,
prepara-se para abandoná-lo. Algo se inicia,
mas algo se fecha. Jean enxerga esse movimento, verdadeira
reconfiguração do estado afetivo, com
pessimismo: "O que o mundo de hoje está
perdendo é o amor". Talvez não o
amor, mas certamente o romantismo. A belle époque,
das valsas alegres em salões nobres e luxuosos,
cede rapidamente lugar à guerra e às primeiras
grandes crises do capitalismo, originando não
só uma consciência trabalhadora revolucionária,
mas também uma má consciência burguesa
repleta de culpa (a discussão entre Jean e seu
filho a ilustra bem). Destinos Sentimentais,
feito em 2000 e contando uma história que começa
em 1900, nos propõe uma arqueologia sentimental
do homem contemporâneo, focando a longa trajetória
de um casal. No seu último plano, Jean fecha
os olhos (assustando Pauline, que pensa que ele morreu)
e viaja até a plácida imagem dele sob
a sombra de uma cerejeira, imagem selecionada em meio
às demais, presente da memória. Ao mostrar
o último estertor de uma certa visão romântica
do mundo, o filme recupera o que ao próprio cinema
era impingido como missão naquele momento: permitir
ao homem um recontato afetivo/perceptivo com o mundo,
liberar-lhe a visão de um instante privilegiado
em meio ao caos da vida moderna. O que o decorrer do
século traria, aí são outros quinhentos
(filmes).
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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