El
Coraje del Pueblo é certamente um dos filmes
políticos de maior impacto realizados na América
Latina durante os anos 70. O seu vigor estético
nasce de uma busca pela representação
da força popular (entendida como coletividade,
como resistência de um povo) através de
uma linguagem cinematográfica radicalmente diversa
do espetáculo épico convencional.
Reconstituição do massacre da noite de
São João em junho de 1967, quando vários
operários das minas de estanho em Siglo XX foram
retirados de suas casas e executados por tropas do exército,
El Coraje del Pueblo é, na verdade, um
grande mural sobre a luta operária ao longo de
pelo menos duas décadas. Bem diferente do que
se passa com as reconstituições "de
época" que caracterizam certo cinema "engajado"
europeu ou mesmo americano, o filme de Sanjinés
recusa dois artifícios que, nos outros casos,
são de fundamental importância: o herói
individual e a narrativa que se constrói visando
um clímax. Dialogando com as formas mais elaboradas
do cinema político realizado até então
(num percurso que passa por Eisenstein, pelo neo-realismo
italiano, por Glauber Rocha e por toda uma escola documental),
El Coraje del Pueblo foi construído a
partir não só de uma pesquisa de campo
(realizada por Oscar Soria, habitual colaborador de
Sanjinés) como também por um trabalho
de reconstituição feito pelos próprios
sobreviventes do massacre.
A proposta de El
Coraje del Pueblo vinha ao encontro das reflexões
de Sanjinés a respeito de um cinema que partisse
não de uma vontade autoral puramente individualista
(como no chamado cinema "de arte" europeu)
ou mesmo de uma tentativa de comunicabilidade com o
público herdada do cinema hollywoodiano, mas
sim de uma mútua colaboração entre
a equipe do filme e a própria população
envolvida nos acontecimentos que se buscasse retratar.
Desta colaboração haveria a possibilidade
de se criar uma linguagem de resistência, porque
essencial, autêntica, arraigada ao modo de pensar,
de agir, de sentir e de criar do povo andino (no caso,
da parcela que compreende quase 50% dos bolivianos,
ou seja, os índios).
El Coraje del Pueblo é o primeiro trabalho
de Sanjinés nesse sentido, logo após ter
realizado dois filmes de grande importância para
o cinema latino-americano, Ukamau (1966) e Sangre
de Condor (1969), ambos também roteirizados
por Oscar Soria e interpretados por não-atores.
Trata-se, portanto, de um cinema que se estrutura em
grandes blocos de ação, fortemente apoiado
num "espaço teatral ao ar livre" onde
o "personagem coletivo" evolui, e cuja forma
mais apropriada é justamente o plano-seqüência,
que oferece maior liberdade aos atores-personagens.
Pode-se, evidentemente, argumentar que esta proposta
estética em nada rompe com o problema real que
se coloca diante do cinema político, que é
justamente o dos meios de produção (um
filme feito para o povo, mas nunca pelo
povo). Mesmo numa mútua colaboração,
como o esquema preconizado por Sanjinés, a palavra
final será sempre a deste tão recusado
"autor individualista". No entanto, esta objeção
não invalida aquilo que de mais importante existe
em El Coraje del Pueblo, que é justamente
a sua força estética. Se não há,
de fato, quebra nos moldes de produção,
existe uma real contaminação criadora
entre os sobreviventes do massacre e a equipe de filmagem.
A câmera não é somente um meio de
ordenação, mas de aprendizado. E basta
ficarmos na primeira seqüência do filme,
que reconstrói o massacre de 1942 nas minas de
Catavi, para reconhecermos o valor desta estratégia:
trata-se de uma das mais vigorosas e impressionantes
aberturas de filmes realizadas neste período,
quando mais se a compararmos ao que vinha sendo feito
no Brasil, por exemplo.
Aliás, qualquer comparação
entre El Coraje del Pueblo e os filmes brasileiros
será sempre rica. Sanjinés realiza aquilo
que Eduardo Coutinho tentou em 1964, com Cabra Marcado
Para Morrer, e que, pelas circunstâncias bastante
conhecidas por todos, acabou se transformando, vinte
anos depois, num (belo) documentário de auto-resgate.
Mas o que realmente surpreende em El Coraje del Pueblo
e o torna bastante diferente dos filmes realizados pelo
Cinema Novo no Brasil são dois aspectos: 1) a
forma como as cenas são re-apresentadas pelos
próprios sobreviventes (o que as torna ainda
mais expressivas), e 2) a atitude de Sanjinés
em, logo no começo, e depois ao final, apontar
explicitamente os generais, presidentes e donos de minas
que foram responsáveis pelos massacres, mostrando-os
em sucessivas fotos legendadas.
O primeiro aspecto a representação dos
fatos pelos próprios sobreviventes é
rara no cinema brasileiro, ou pelo menos ela surge,
em geral, como um aspecto secundário (como "fundo"
para a evolução dos atores; Iracema,
de Jorge Bodanzky e Orlando Senna é um exemplo
clássico). Em Coraje del Pueblo há
pelo menos uma cena em que este tipo de representação
ganha uma conotação histórica tão
viva quanto angustiante: a cena em que um operário
é pendurado de cabeça para baixo e é
violentamente espancado por dois torturadores. Quanto
ao fato de Sanjinés dar "nome aos bois",
este é um procedimento absolutamente incomum
no cinema brasileiro, afeito à parábola
e à alegoria para driblar a censura.
Vale ressaltar, contudo, que não é o fato
de nomear responsáveis que faz de El Coraje
del Pueblo um bom filme, mas sim a construção
de um discurso cujo impacto político encontra
correspondência com sua estrutura narrativa: o
herói coletivo nasce de uma lenta aproximação
entre a câmera e os operários, entre as
imagens e o espectador; a montagem das fotos dos militares
e empresários rompe esta lógica e se projeta
como desconstrução do plano-seqüência,
individualizando o crime de Estado. Naturalmente, também
não é possível desconsiderar a
coragem deste gesto, e não é à
tôa que Sanjinés, logo após El
Coraje del Pueblo, precisou sair do país.
Rever El Coraje
del Pueblo nos dias atuais é ainda mais enriquecedor,
pois, muito embora as aparências às vezes
queiram indicar o contrário, o cinema político
(ou seria melhor dizer "a política"
no cinema?) vive um momento de visibilidade intensa,
em todo o mundo. No Brasil, será no mínimo
estimulante conhecer a obra de Jorge Sanjinés,
numa época que elege Diários de Motocicleta
e seu bom-mocismo playboy como obra-síntese de
uma visão latino-americana atual da, com o perdão
da expressão absolutamente deslocada, revolução.
Luiz Alberto Rocha Melo
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