SANJINÉS E A CORAGEM
Jorge Sanjinés, El Coraje del Pueblo, Bolívia, 1971

El Coraje del Pueblo é certamente um dos filmes políticos de maior impacto realizados na América Latina durante os anos 70. O seu vigor estético nasce de uma busca pela representação da força popular (entendida como coletividade, como resistência de um povo) através de uma linguagem cinematográfica radicalmente diversa do espetáculo épico convencional.

Reconstituição do massacre da noite de São João em junho de 1967, quando vários operários das minas de estanho em Siglo XX foram retirados de suas casas e executados por tropas do exército, El Coraje del Pueblo é, na verdade, um grande mural sobre a luta operária ao longo de pelo menos duas décadas. Bem diferente do que se passa com as reconstituições "de época" que caracterizam certo cinema "engajado" europeu ou mesmo americano, o filme de Sanjinés recusa dois artifícios que, nos outros casos, são de fundamental importância: o herói individual e a narrativa que se constrói visando um clímax. Dialogando com as formas mais elaboradas do cinema político realizado até então (num percurso que passa por Eisenstein, pelo neo-realismo italiano, por Glauber Rocha e por toda uma escola documental), El Coraje del Pueblo foi construído a partir não só de uma pesquisa de campo (realizada por Oscar Soria, habitual colaborador de Sanjinés) como também por um trabalho de reconstituição feito pelos próprios sobreviventes do massacre.

A proposta de El Coraje del Pueblo vinha ao encontro das reflexões de Sanjinés a respeito de um cinema que partisse não de uma vontade autoral puramente individualista (como no chamado cinema "de arte" europeu) ou mesmo de uma tentativa de comunicabilidade com o público herdada do cinema hollywoodiano, mas sim de uma mútua colaboração entre a equipe do filme e a própria população envolvida nos acontecimentos que se buscasse retratar. Desta colaboração haveria a possibilidade de se criar uma linguagem de resistência, porque essencial, autêntica, arraigada ao modo de pensar, de agir, de sentir e de criar do povo andino (no caso, da parcela que compreende quase 50% dos bolivianos, ou seja, os índios).

El Coraje del Pueblo é o primeiro trabalho de Sanjinés nesse sentido, logo após ter realizado dois filmes de grande importância para o cinema latino-americano, Ukamau (1966) e Sangre de Condor (1969), ambos também roteirizados por Oscar Soria e interpretados por não-atores. Trata-se, portanto, de um cinema que se estrutura em grandes blocos de ação, fortemente apoiado num "espaço teatral ao ar livre" onde o "personagem coletivo" evolui, e cuja forma mais apropriada é justamente o plano-seqüência, que oferece maior liberdade aos atores-personagens.

Pode-se, evidentemente, argumentar que esta proposta estética em nada rompe com o problema real que se coloca diante do cinema político, que é justamente o dos meios de produção (um filme feito para o povo, mas nunca pelo povo). Mesmo numa mútua colaboração, como o esquema preconizado por Sanjinés, a palavra final será sempre a deste tão recusado "autor individualista". No entanto, esta objeção não invalida aquilo que de mais importante existe em El Coraje del Pueblo, que é justamente a sua força estética. Se não há, de fato, quebra nos moldes de produção, existe uma real contaminação criadora entre os sobreviventes do massacre e a equipe de filmagem. A câmera não é somente um meio de ordenação, mas de aprendizado. E basta ficarmos na primeira seqüência do filme, que reconstrói o massacre de 1942 nas minas de Catavi, para reconhecermos o valor desta estratégia: trata-se de uma das mais vigorosas e impressionantes aberturas de filmes realizadas neste período, quando mais se a compararmos ao que vinha sendo feito no Brasil, por exemplo.

Aliás, qualquer comparação entre El Coraje del Pueblo e os filmes brasileiros será sempre rica. Sanjinés realiza aquilo que Eduardo Coutinho tentou em 1964, com Cabra Marcado Para Morrer, e que, pelas circunstâncias bastante conhecidas por todos, acabou se transformando, vinte anos depois, num (belo) documentário de auto-resgate. Mas o que realmente surpreende em El Coraje del Pueblo e o torna bastante diferente dos filmes realizados pelo Cinema Novo no Brasil são dois aspectos: 1) a forma como as cenas são re-apresentadas pelos próprios sobreviventes (o que as torna ainda mais expressivas), e 2) a atitude de Sanjinés em, logo no começo, e depois ao final, apontar explicitamente os generais, presidentes e donos de minas que foram responsáveis pelos massacres, mostrando-os em sucessivas fotos legendadas.

O primeiro aspecto – a representação dos fatos pelos próprios sobreviventes – é rara no cinema brasileiro, ou pelo menos ela surge, em geral, como um aspecto secundário (como "fundo" para a evolução dos atores; Iracema, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna é um exemplo clássico). Em Coraje del Pueblo há pelo menos uma cena em que este tipo de representação ganha uma conotação histórica tão viva quanto angustiante: a cena em que um operário é pendurado de cabeça para baixo e é violentamente espancado por dois torturadores. Quanto ao fato de Sanjinés dar "nome aos bois", este é um procedimento absolutamente incomum no cinema brasileiro, afeito à parábola e à alegoria para driblar a censura.

Vale ressaltar, contudo, que não é o fato de nomear responsáveis que faz de El Coraje del Pueblo um bom filme, mas sim a construção de um discurso cujo impacto político encontra correspondência com sua estrutura narrativa: o herói coletivo nasce de uma lenta aproximação entre a câmera e os operários, entre as imagens e o espectador; a montagem das fotos dos militares e empresários rompe esta lógica e se projeta como desconstrução do plano-seqüência, individualizando o crime de Estado. Naturalmente, também não é possível desconsiderar a coragem deste gesto, e não é à tôa que Sanjinés, logo após El Coraje del Pueblo, precisou sair do país.

Rever El Coraje del Pueblo nos dias atuais é ainda mais enriquecedor, pois, muito embora as aparências às vezes queiram indicar o contrário, o cinema político (ou seria melhor dizer "a política" no cinema?) vive um momento de visibilidade intensa, em todo o mundo. No Brasil, será no mínimo estimulante conhecer a obra de Jorge Sanjinés, numa época que elege Diários de Motocicleta e seu bom-mocismo playboy como obra-síntese de uma visão latino-americana atual da, com o perdão da expressão absolutamente deslocada, revolução.

Luiz Alberto Rocha Melo