Colateral
traz o que em outras ocasiões já havia permitido
a Michael Mann fazer grandes filmes (Profissão, Ladrão,
Fogo Contra Fogo) e depois derrapar no thriller
corporativo mais rasteiro (O Informante): a violência
como um vetor que corta a cidade de lado a lado, na
mesma medida em que a mantém de pé, e a complexa geometria
dos mecanismos de vigilância (autoridades vigiando o
espaço coletivo, corporações vigiando outras corporações,
os diversos setores da sociedade sujeitos a cadastro
e rastreamento – e o indivíduo perdido em meio a tudo
isso). Em Colateral, mais do que nos trabalhos
anteriores, a grande preocupação está no exercício de
estilo e na experiência estética que o filme é capaz
de proporcionar. É nítida, inclusive, a sensação de
realização pessoal, de auto-entrega estilística em muitas
partes do filme. Mann chega a dedicar toda uma seqüência
a um fetichismo particular: sua fixação pela luz azul,
que dá o tom de várias partes do filme e que ele explora
ao máximo na cena da boate Fever, ponto nodal da narrativa
(quando o policial que estava do lado do protagonista
é eliminado e resta a este último se virar sozinho).
O veículo da proposta conceitual de Mann cabe, no plano
narrativo, ao táxi de Max (Jamie Foxx), que é forçado
a cruzar Los Angeles parando de ponto em ponto para
que Vincent (Tom Cruise), o passageiro misterioso, possa
realizar seu trabalho de matador profissional. O convite
feito por Vincent a Max é o convite feito por Mann ao
espectador: acompanhar de perto, mesmo sem saber ainda
do que se trata, um processo violento cujas causas e
finalidades desconhecemos – e cujo antídoto terá de
ser fabricado no presente dos acontecimentos. Colateral
se desenvolve no interior mesmo da ação violenta,
e não nas nervuras de sua possível causalidade. Uma
vez que instaura e sublinha uma situação e uma forma
(o início é marcado pela sucessão de planos fechados
e curtos) tão incomuns, Colateral pode até passar
a idéia de ser um filme feito sob total controle, mas
é preferível enxergá-lo como uma experimentação em torno
de um conjunto de fraseados que o diretor, por mais
que os saiba de cor, constantemente re-arranja – um
filme um tanto jazzístico (donde a cena no clube de
jazz, em que Mann se divide entre a vontade de valorizar
música e ambiência e a necessidade de mostrar Vincent
matando o trompetista fã de Miles Davis, não é senão
uma afirmação dessa proposta). Desde seu primeiro longa-metragem,
Profissão, Ladrão (Thief, 1981), já era
evidente a capacidade de Mann em criar climas envolventes,
em trazer a luz e o som para o primeiro plano quando
houvesse sentido em fazê-lo. O clímax de um filme de
Mann pode ser muito mais do que uma resolução de roteiro:
os finais de Fogo Contra Fogo e Colateral
são antes de tudo uma orquestração de formas tiradas
tanto de um repertório maneirista caro ao diretor (em
Colateral, a perseguição no metrô lembra vários
filmes, destacadamente O Pagamento Final, de
Brian De Palma) quanto de uma deliberação poética que
torna peculiar a sua obra.
Ao invés de – como nos filmes de aventura mais recentes
– já começar introduzindo o espectador no cerne da ação,
para depois cadenciar a narrativa e estabelecer uma
nova forma de confronto e/ou aproximação entre os personagens,
Colateral adia a chegada das turbulências, e
o tempo de conhecer os personagens é dividido entre
o começo e o meio, entre a imagem que Max deseja passar
(primeiro contato) e a verdade sobre suas ocupações
e aspirações (a transparência que a situação-limite
proporciona). O filme leva um bom tempo respondendo
às tarefas programáticas de Vincent, sem que Max consiga
reagir eficazmente. Fazendo um movimento ambíguo, em
que liberta seus personagens da armadura dos clichês
sem abandonar a possibilidade de trabalhá-los como tal,
Mann dá um tratamento diferencial a Vincent, robotizando-o
ao máximo (ele termina o filme “virando estátua”). Mesmo
quando Vincent começa a falar de seu passado conturbado,
construção arquetípica absolutamente deslocada no filme,
incongruente com seu andamento, a história termina com
uma piada (ele mente que matou seu pai aos doze anos
e depois desmente rindo), como se houvesse uma autocrítica
que impedisse aquele diálogo de passar em branco. O
personagem de Tom Cruise é quase uma máquina: ele não
só executa as operações friamente, sem errar, mas ainda
está caracterizado com um gestual (principalmente quando
corre ou atira) que remete inevitavelmente ao T1000
de O Exterminador do Futuro 2. Capacidade de
calcular, aliás, que Max também domina, mesmo que em
outra escala (os cálculos precisos sobre quantos minutos
se leva para ir de um lugar a outro). Há um espelhamento
entre os personagens, evidentemente, e o fato do confronto
final terminar sem vencedor, simplesmente acabando as
balas, é a confirmação de que eles se misturaram ao
longo do filme e não há como se eliminarem mutuamente.
O momento em que Max sai da condição passiva e inicia
sua reviravolta é exatamente quando ele é obrigado a
se passar por Vincent para conseguir as informações
sobre as duas vítimas restantes. Ali ele entra no jogo,
aprende a improvisação, começa a usar as frases do matador.
Max precisou atravessar a pele de seu oponente, confundir-se
a ele, para só então encontrar a coragem e os meios
de se defender.
O filme possui um timing narrativo que guarda
semelhanças com Duro de Matar, de John McTiernan,
principalmente no que diz respeito a uma ação que se
passa numa única noite e é filmada com poucas elipses.
No filme de Michael Mann, esse aspecto remete ainda
aos dispositivos de controle, instalados em todos os
becos possíveis da cidade e registrando continuamente
tudo o que se passa – ou quase tudo. A própria opção
pela câmera digital nas externas, além de motivos estéticos
(em se tratando de um filme integralmente noturno, há
de se levar em conta o excelente ganho de luz do digital),
sugere uma maior aproximação de textura com as câmeras
de segurança onipresentes no espaço urbano. É preciso
unificar, através das imagens, um espaço por si só fragmentado,
impossível de ser observado de um único ponto. Mas as
cenas de helicóptero em Colateral apontam na
verdade para a ineficácia desse olhar vertical: o plongé
na cidade não abarca tudo que ocorre nas ruas. É o próprio
Vincent quem reclama do excessivo individualismo e da
descontinuidade espacial de Los Angeles – o que Mann
busca traduzir na forma do filme – e, apesar de estarem
juntos na maior parte do filme, são raros os planos
em que ele e Max ocupam o mesmo quadro: na maioria das
vezes são separados pelo campo-contracampo. A fragmentação
está expressa, portanto, não só no espaço da cidade,
mas também no espaço entre os indivíduos. Não à toa,
os clubes noturnos que Colateral visita são guetos:
latinos, chineses, negros, brancos, todos vivem na mesma
cidade, mas cada um na sua.
Em outra aproximação com Duro de Matar, a ação
da polícia é filmada de maneira bastante crítica por
Michael Mann: a invasão desastrosa à boate Fever e o
chefe da polícia concluindo precipitadamente – e talvez
preconceituosamente – que Max está sozinho e é o causador
das mortes são os melhores exemplos. Parcela crítica
que em momento algum toma as rédeas do filme, permanecendo
na periferia das suas intenções – de forma até mal-engendrada,
porém sem grandes prejuízos para o todo. Se há preocupação
em manter a substância de Colateral dentro de
uma fôrma narrativa – às vezes o atravancando –, acaba
que são poucas as nuances de trama realmente elogiáveis
do filme; na maioria das vezes o roteiro parece uma
coisa da qual o diretor no fundo queria apenas pinçar
pretextos, pois sua motivação e sua força estão na experiência
da travessia dos canais abertos pelas obras do acaso
que pontuam a narrativa. O retorno da personagem da
promotora, por exemplo, aguardado desde o momento em
que ela e Max se despedem lá no início, é frustrante
do ponto de vista da sua inserção temática no filme,
mas é o que abre caminho para duas de suas seqüências
mais tensas e bem construídas: as perseguições no prédio
onde ela trabalha e no metrô.
Colateral é um filme feito na efervescência,
na montanha russa que a circunstância impõe como movimento-padrão
– e na inconstância de quem faz uma coisa da vida mas
gostaria de estar fazendo outra. Auxiliado por uma fotografia
excepcional, Mann filmou alguns planos de inscrição
gráfica confusa, favorecendo uma desorientação passageira
de que o filme precisa para obter o efeito ideal. Impressiona
a quantidade de closes em que, apesar do formato largo
de 1:2.35, o rosto é determinante sobre todo o resto.
Nas cenas noturnas de Fogo Contra Fogo, com seus
prédios ou locações na parte alta de Los Angeles, o
indivíduo é volta e meia enquadrado em plano médio com
a cidade ao fundo, aquele oceano de luzes que o ultrapassa.
Em Colateral a estratégia visual é outra, concentra
as pausas do filme nos rostos dos personagens, e Vincent
precisa afirmar verbalmente sua condição de micropartícula
em meio a um universo incomensurável. Mas é da boca
de outro Vincent, aquele interpretado por Al Pacino
em Fogo Contra Fogo, que sai o princípio fundamental
de Colateral: a idéia de preservar a angústia
para se manter no limite, onde heróis e vilões precisam
estar para realizar bem o seu trabalho.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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