COLATERAL
Michael Mann, Collateral, EUA, 2004

Colateral traz o que em outras ocasiões já havia permitido a Michael Mann fazer grandes filmes (Profissão, Ladrão, Fogo Contra Fogo) e depois derrapar no thriller corporativo mais rasteiro (O Informante): a violência como um vetor que corta a cidade de lado a lado, na mesma medida em que a mantém de pé, e a complexa geometria dos mecanismos de vigilância (autoridades vigiando o espaço coletivo, corporações vigiando outras corporações, os diversos setores da sociedade sujeitos a cadastro e rastreamento – e o indivíduo perdido em meio a tudo isso). Em Colateral, mais do que nos trabalhos anteriores, a grande preocupação está no exercício de estilo e na experiência estética que o filme é capaz de proporcionar. É nítida, inclusive, a sensação de realização pessoal, de auto-entrega estilística em muitas partes do filme. Mann chega a dedicar toda uma seqüência a um fetichismo particular: sua fixação pela luz azul, que dá o tom de várias partes do filme e que ele explora ao máximo na cena da boate Fever, ponto nodal da narrativa (quando o policial que estava do lado do protagonista é eliminado e resta a este último se virar sozinho).

O veículo da proposta conceitual de Mann cabe, no plano narrativo, ao táxi de Max (Jamie Foxx), que é forçado a cruzar Los Angeles parando de ponto em ponto para que Vincent (Tom Cruise), o passageiro misterioso, possa realizar seu trabalho de matador profissional. O convite feito por Vincent a Max é o convite feito por Mann ao espectador: acompanhar de perto, mesmo sem saber ainda do que se trata, um processo violento cujas causas e finalidades desconhecemos – e cujo antídoto terá de ser fabricado no presente dos acontecimentos. Colateral se desenvolve no interior mesmo da ação violenta, e não nas nervuras de sua possível causalidade. Uma vez que instaura e sublinha uma situação e uma forma (o início é marcado pela sucessão de planos fechados e curtos) tão incomuns, Colateral pode até passar a idéia de ser um filme feito sob total controle, mas é preferível enxergá-lo como uma experimentação em torno de um conjunto de fraseados que o diretor, por mais que os saiba de cor, constantemente re-arranja – um filme um tanto jazzístico (donde a cena no clube de jazz, em que Mann se divide entre a vontade de valorizar música e ambiência e a necessidade de mostrar Vincent matando o trompetista fã de Miles Davis, não é senão uma afirmação dessa proposta). Desde seu primeiro longa-metragem, Profissão, Ladrão (Thief, 1981), já era evidente a capacidade de Mann em criar climas envolventes, em trazer a luz e o som para o primeiro plano quando houvesse sentido em fazê-lo. O clímax de um filme de Mann pode ser muito mais do que uma resolução de roteiro: os finais de Fogo Contra Fogo e Colateral são antes de tudo uma orquestração de formas tiradas tanto de um repertório maneirista caro ao diretor (em Colateral, a perseguição no metrô lembra vários filmes, destacadamente O Pagamento Final, de Brian De Palma) quanto de uma deliberação poética que torna peculiar a sua obra.

Ao invés de – como nos filmes de aventura mais recentes – já começar introduzindo o espectador no cerne da ação, para depois cadenciar a narrativa e estabelecer uma nova forma de confronto e/ou aproximação entre os personagens, Colateral adia a chegada das turbulências, e o tempo de conhecer os personagens é dividido entre o começo e o meio, entre a imagem que Max deseja passar (primeiro contato) e a verdade sobre suas ocupações e aspirações (a transparência que a situação-limite proporciona). O filme leva um bom tempo respondendo às tarefas programáticas de Vincent, sem que Max consiga reagir eficazmente. Fazendo um movimento ambíguo, em que liberta seus personagens da armadura dos clichês sem abandonar a possibilidade de trabalhá-los como tal, Mann dá um tratamento diferencial a Vincent, robotizando-o ao máximo (ele termina o filme “virando estátua”). Mesmo quando Vincent começa a falar de seu passado conturbado, construção arquetípica absolutamente deslocada no filme, incongruente com seu andamento, a história termina com uma piada (ele mente que matou seu pai aos doze anos e depois desmente rindo), como se houvesse uma autocrítica que impedisse aquele diálogo de passar em branco. O personagem de Tom Cruise é quase uma máquina: ele não só executa as operações friamente, sem errar, mas ainda está caracterizado com um gestual (principalmente quando corre ou atira) que remete inevitavelmente ao T1000 de O Exterminador do Futuro 2. Capacidade de calcular, aliás, que Max também domina, mesmo que em outra escala (os cálculos precisos sobre quantos minutos se leva para ir de um lugar a outro). Há um espelhamento entre os personagens, evidentemente, e o fato do confronto final terminar sem vencedor, simplesmente acabando as balas, é a confirmação de que eles se misturaram ao longo do filme e não há como se eliminarem mutuamente. O momento em que Max sai da condição passiva e inicia sua reviravolta é exatamente quando ele é obrigado a se passar por Vincent para conseguir as informações sobre as duas vítimas restantes. Ali ele entra no jogo, aprende a improvisação, começa a usar as frases do matador. Max precisou atravessar a pele de seu oponente, confundir-se a ele, para só então encontrar a coragem e os meios de se defender.

O filme possui um timing narrativo que guarda semelhanças com Duro de Matar, de John McTiernan, principalmente no que diz respeito a uma ação que se passa numa única noite e é filmada com poucas elipses. No filme de Michael Mann, esse aspecto remete ainda aos dispositivos de controle, instalados em todos os becos possíveis da cidade e registrando continuamente tudo o que se passa – ou quase tudo. A própria opção pela câmera digital nas externas, além de motivos estéticos (em se tratando de um filme integralmente noturno, há de se levar em conta o excelente ganho de luz do digital), sugere uma maior aproximação de textura com as câmeras de segurança onipresentes no espaço urbano. É preciso unificar, através das imagens, um espaço por si só fragmentado, impossível de ser observado de um único ponto. Mas as cenas de helicóptero em Colateral apontam na verdade para a ineficácia desse olhar vertical: o plongé na cidade não abarca tudo que ocorre nas ruas. É o próprio Vincent quem reclama do excessivo individualismo e da descontinuidade espacial de Los Angeles – o que Mann busca traduzir na forma do filme – e, apesar de estarem juntos na maior parte do filme, são raros os planos em que ele e Max ocupam o mesmo quadro: na maioria das vezes são separados pelo campo-contracampo. A fragmentação está expressa, portanto, não só no espaço da cidade, mas também no espaço entre os indivíduos. Não à toa, os clubes noturnos que Colateral visita são guetos: latinos, chineses, negros, brancos, todos vivem na mesma cidade, mas cada um na sua.

Em outra aproximação com Duro de Matar, a ação da polícia é filmada de maneira bastante crítica por Michael Mann: a invasão desastrosa à boate Fever e o chefe da polícia concluindo precipitadamente – e talvez preconceituosamente – que Max está sozinho e é o causador das mortes são os melhores exemplos. Parcela crítica que em momento algum toma as rédeas do filme, permanecendo na periferia das suas intenções – de forma até mal-engendrada, porém sem grandes prejuízos para o todo. Se há preocupação em manter a substância de Colateral dentro de uma fôrma narrativa – às vezes o atravancando –, acaba que são poucas as nuances de trama realmente elogiáveis do filme; na maioria das vezes o roteiro parece uma coisa da qual o diretor no fundo queria apenas pinçar pretextos, pois sua motivação e sua força estão na experiência da travessia dos canais abertos pelas obras do acaso que pontuam a narrativa. O retorno da personagem da promotora, por exemplo, aguardado desde o momento em que ela e Max se despedem lá no início, é frustrante do ponto de vista da sua inserção temática no filme, mas é o que abre caminho para duas de suas seqüências mais tensas e bem construídas: as perseguições no prédio onde ela trabalha e no metrô.

Colateral é um filme feito na efervescência, na montanha russa que a circunstância impõe como movimento-padrão – e na inconstância de quem faz uma coisa da vida mas gostaria de estar fazendo outra. Auxiliado por uma fotografia excepcional, Mann filmou alguns planos de inscrição gráfica confusa, favorecendo uma desorientação passageira de que o filme precisa para obter o efeito ideal. Impressiona a quantidade de closes em que, apesar do formato largo de 1:2.35, o rosto é determinante sobre todo o resto. Nas cenas noturnas de Fogo Contra Fogo, com seus prédios ou locações na parte alta de Los Angeles, o indivíduo é volta e meia enquadrado em plano médio com a cidade ao fundo, aquele oceano de luzes que o ultrapassa. Em Colateral a estratégia visual é outra, concentra as pausas do filme nos rostos dos personagens, e Vincent precisa afirmar verbalmente sua condição de micropartícula em meio a um universo incomensurável. Mas é da boca de outro Vincent, aquele interpretado por Al Pacino em Fogo Contra Fogo, que sai o princípio fundamental de Colateral: a idéia de preservar a angústia para se manter no limite, onde heróis e vilões precisam estar para realizar bem o seu trabalho.


Luiz Carlos Oliveira Jr.