CAMA DE GATO
Alexandre Stockler, Brasil, 2002

No início e no final de Cama de Gato, jovens divagam sobre questões diversas. Estão na rua ou em bares. São depoimentos provocados por Alexandre Stockler, diretor estreante em cinema, egresso do teatro, e alinhavados como fragmentos documentais. Os temas sobre os quais falam no começo serão encenados ficcionalmente a seguir. As falas exibidas no desfecho são sintonizadas com a experiência limite vivida pelos personagens. Temos assim uma introdução e uma conclusão, no estatuto do documentário, que ambicionam legitimar o painel sociológico da ficção. Esta se torna, então, mera ilustração de uma pesquisa de campo servida como aperitivo e sobremesa para a indigesta refeição ofertada no restante do tempo. É o escudo do filme contra a possibilidade de desvincularmos encenação e modelo real.

O painel esboçado tem como objeto uma juventude de classe média urbana, capaz de constranger os outros em nome de um hedonismo desesperado, cujo motor está menos na busca do prazer e mais na fuga de um tédio agressivo. Vê-se um mal estar provocado não pelo recalque, como constatou Freud, mas pela falência dos reguladores morais: pode-se tudo na ausência de referenciais civilizatórios. São três os personagens sem limites, mas eles não viverão situações que os caracterize como seres peculiares. O comportamento do trio é tratado como sintoma de um universo do qual são expressões simbólicas e estereotipadas. Após um estupro coletivo e duas mortes aparentes, resultantes da violência sexual, eles iniciam uma jornada em busca da impunidade. Porque se trata, em última instância, da morte da responsabilidade.

Ao contrário do que escreveu Hannah Arendt, o mal não é banalizado por força da ignorância e da falta de reflexão, mas com consciência da maldade por parte dos agentes. Eles se auto-diagnosticam como produtos do seu tempo, com chavões sociológicos de rasgado senso autoparódico. Tratam os outros como peças de seus jogos e, no caso de seres de classe social inferior, seja um porteiro ou moradores de rua, a estratégia é a da humilhação sustentada pela hierarquia (eles por cima, evidentemente). As ruas de São Paulo, filmadas à noite a maior parte da metragem, ganham ares ameaçadores, quase apocalípticos, com a iminência permanente da ameaça à vida (na verdade, à classe média). O cenário do trecho final, um lixão, parece extraído de um delírio. Parece não. É. Porque é justamente a suspensão da razão que conduz os personagens a seu pesadelo.

Alexandre Stockler conduz o julgamento da juventude urbana sem o fascínio de Larry Clark pelos excessos praticados por seus personagens, mas, como o diretor americano, aproxima-se dos rapazes armado de desprezo e sem nenhuma disposição de compreendê-los. Cada momento do filme existe para condená-los - não vemos nenhuma sutileza, nenhum afeto, nenhuma humanidade. A amoralidade dos jovens, porém, é reproduzida nas imagens: Stockler também não tem limites e não demonstra responsabilidade estética. Todos os caminhos são tomados, sem se privilegiar este ou aquele. Ignora-se que a criação artística, embora livre para tomar qualquer rumo, pede a opção por uma direção. Tanto é resultante das escolhas para tornar algo visível quanto modelada pelas omissões. Se um travelling é questão de moral, e isso não está em discussão aqui, abrir mão é fundamental. A linguagem da evidência só se constitui assim pelo não mostrado. Para cada escolha, todas as outras são jogadas fora.

Cama de Gato coloca-se como diagnosticador quando também é sintoma de um dessaranjo artístico provocado pela multiplicação de possibilidades tecnológicas de captação e finalização de sons e imagens. Com tantas ofertas, todos os caminhos são possíveis. Ainda mais para um filme de baixo orçamento que, devido à liberdade econômica, inspira-se a desrespeitar limites. E nessa encruzilhada surge ou não a responsabilidade do artista (questão sobre a qual ainda há muito a escrever em próxima ocasião). Criar é menos explorar alternativas e mais estabelecer limites entre tantas alternativas possíveis. É isso que muitos diretores, sejam estreantes como Stockler, sejam experientes como Tony Scott (com seu paradigmático Chamas da Vingança), parecem ignorar. Ao não escolherem, ou ao escolher o que estiver disponível, acham estar sendo ousados. Não há coragem nessa falta de rigor. Tampouco vigor

Impera em Cama de Gato a promiscuidade estilística. Vemos a captação digital empregada para dar realismo à imagem e, em contrapartida, uma série de procedimentos empenhados em quebrar o registro realista. A auto-referencialidade e o artifício rompedor da transparência são perseguidos insistentemente. Há replay de uma cena, trechos escritos na tela e momentos de câmera subjetiva, de mais de um personagem, com olhar narrador múltiplo, para aproximá-los do espectador. Tanto os rapazes falam para a platéia, olhando na direção dela, como assimilam o olhar do público, apenas para acusá-lo de compactuar com as situações mostradas. Quase se pode ouvir o diretor gritando por meio das imagens: isso está acontecendo perto de você. E, neste sentido, a ambição de Stockler (com seu cínico moralismo) é muito primária.

Cléber Eduardo