No início e no final
de Cama de Gato, jovens divagam sobre questões
diversas. Estão na rua ou em bares. São
depoimentos provocados por Alexandre Stockler, diretor
estreante em cinema, egresso do teatro, e alinhavados
como fragmentos documentais. Os temas sobre os quais
falam no começo serão encenados ficcionalmente
a seguir. As falas exibidas no desfecho são sintonizadas
com a experiência limite vivida pelos personagens.
Temos assim uma introdução e uma conclusão,
no estatuto do documentário, que ambicionam legitimar
o painel sociológico da ficção.
Esta se torna, então, mera ilustração
de uma pesquisa de campo servida como aperitivo e sobremesa
para a indigesta refeição ofertada no
restante do tempo. É o escudo do filme contra
a possibilidade de desvincularmos encenação
e modelo real.
O painel esboçado tem como objeto uma juventude
de classe média urbana, capaz de constranger
os outros em nome de um hedonismo desesperado, cujo
motor está menos na busca do prazer e mais na
fuga de um tédio agressivo. Vê-se um mal
estar provocado não pelo recalque, como constatou
Freud, mas pela falência dos reguladores morais:
pode-se tudo na ausência de referenciais civilizatórios.
São três os personagens sem limites, mas
eles não viverão situações
que os caracterize como seres peculiares. O comportamento
do trio é tratado como sintoma de um universo
do qual são expressões simbólicas
e estereotipadas. Após um estupro coletivo e
duas mortes aparentes, resultantes da violência
sexual, eles iniciam uma jornada em busca da impunidade.
Porque se trata, em última instância, da
morte da responsabilidade.
Ao contrário do que escreveu Hannah Arendt, o
mal não é banalizado por força
da ignorância e da falta de reflexão, mas
com consciência da maldade por parte dos agentes.
Eles se auto-diagnosticam como produtos do seu tempo,
com chavões sociológicos de rasgado senso
autoparódico. Tratam os outros como peças
de seus jogos e, no caso de seres de classe social inferior,
seja um porteiro ou moradores de rua, a estratégia
é a da humilhação sustentada pela
hierarquia (eles por cima, evidentemente). As ruas de
São Paulo, filmadas à noite a maior parte
da metragem, ganham ares ameaçadores, quase apocalípticos,
com a iminência permanente da ameaça à
vida (na verdade, à classe média). O cenário
do trecho final, um lixão, parece extraído
de um delírio. Parece não. É. Porque
é justamente a suspensão da razão
que conduz os personagens a seu pesadelo.
Alexandre Stockler conduz o julgamento da juventude
urbana sem o fascínio de Larry Clark pelos excessos
praticados por seus personagens, mas, como o diretor
americano, aproxima-se dos rapazes armado de desprezo
e sem nenhuma disposição de compreendê-los.
Cada momento do filme existe para condená-los
- não vemos nenhuma sutileza, nenhum afeto, nenhuma
humanidade. A amoralidade dos jovens, porém,
é reproduzida nas imagens: Stockler também
não tem limites e não demonstra responsabilidade
estética. Todos os caminhos são tomados,
sem se privilegiar este ou aquele. Ignora-se que a criação
artística, embora livre para tomar qualquer rumo,
pede a opção por uma direção.
Tanto é resultante das escolhas para tornar algo
visível quanto modelada pelas omissões.
Se um travelling é questão de moral, e
isso não está em discussão aqui,
abrir mão é fundamental. A linguagem da
evidência só se constitui assim pelo não
mostrado. Para cada escolha, todas as outras são
jogadas fora.
Cama de Gato coloca-se como diagnosticador quando
também é sintoma de um dessaranjo artístico
provocado pela multiplicação de possibilidades
tecnológicas de captação e finalização
de sons e imagens. Com tantas ofertas, todos os caminhos
são possíveis. Ainda mais para um filme
de baixo orçamento que, devido à liberdade
econômica, inspira-se a desrespeitar limites.
E nessa encruzilhada surge ou não a responsabilidade
do artista (questão sobre a qual ainda há
muito a escrever em próxima ocasião).
Criar é menos explorar alternativas e mais estabelecer
limites entre tantas alternativas possíveis.
É isso que muitos diretores, sejam estreantes
como Stockler, sejam experientes como Tony Scott (com
seu paradigmático Chamas da Vingança),
parecem ignorar. Ao não escolherem, ou ao escolher
o que estiver disponível, acham estar sendo ousados.
Não há coragem nessa falta de rigor. Tampouco
vigor
Impera em Cama de Gato a promiscuidade estilística.
Vemos a captação digital empregada para
dar realismo à imagem e, em contrapartida, uma
série de procedimentos empenhados em quebrar
o registro realista. A auto-referencialidade e o artifício
rompedor da transparência são perseguidos
insistentemente. Há replay de uma cena, trechos
escritos na tela e momentos de câmera subjetiva,
de mais de um personagem, com olhar narrador múltiplo,
para aproximá-los do espectador. Tanto os rapazes
falam para a platéia, olhando na direção
dela, como assimilam o olhar do público, apenas
para acusá-lo de compactuar com as situações
mostradas. Quase se pode ouvir o diretor gritando por
meio das imagens: isso está acontecendo perto
de você. E, neste sentido, a ambição
de Stockler (com seu cínico moralismo) é
muito primária.
Cléber Eduardo
|