A
grande contradição, do ponto de vista
espectatorial, de assistir a um filme político-militante
feito há vinte, quarenta anos atrás é
que, uma vez já submetido à História,
esse filme não mais nos atinge num de seus aspectos
fundadores: a luta contra a tendência histórica
hegemônica, a mobilização de esforços
para reverter a causalidade temporal do sistema vigente
(tido como opressor) em outros termos, a tentativa
de reescrever a História. É justamente
no "fazer cinema politicamente", portanto,
que o filme do passado se vê irreversivelmente
minado. Encontramos extrema dificuldade em sentir a
presença política de um filme que
se mostra não mais como conclamação
atuante, e sim como objeto catalogado, ultrapassado.
Precisamos voltar a ele, assim sendo, com outros olhos.
Mas deixemos de ver o cinema a partir do mundo, e enxerguemos
o mundo através do cinema: haveria algo
capaz de eternizar aquela dimensão atuante? Se
a resposta é positiva, o filme precisaria anular
qualquer concepção concreta de tempo,
ou ao menos não ter no naturalismo sua pedra
de toque, porque o naturalismo acusa a passagem de tempo
e a passagem de tempo arremessa o filme de volta para
o fluxo histórico que há muito o atropelou.
A questão que se impõe como ponto de largada
para o cineasta engajado é a mesma velha questão
que se impõe a qualquer cineasta: como meu filme
(se) inscreve (n)o tempo? Como as imagens que vemos
em As Bandeiras do Amanhecer se conectam
ao discurso de Simon Bolívar da cartela que abre
o filme? Não surpreende que Sanjinés tenha
volta e meia buscado uma forma culturalmente associada
ao documentarismo para registrar uma matéria
mais ou menos assumidamente encenada. Essa mistura
de técnica de reportagem com teatro da vida pública,
diluição da fronteira entre ficção
e realidade, está na base de uma convicção
artística presente em seus filmes: a verdade
não está no real, mas no seu questionamento.
Para ascender ao debate político eficaz, o cineasta
precisa estabelecer uma nova relação com
a cena. A realidade, num primeiro momento, precisa ser
expulsa do cinema, para depois se re-introjetar com
poderes multiplicados. Arcabouço de um cinema
militante, que almeja o triunfo do ideal de uma classe
específica e não simplesmente abrir
espaço para a dialética revolucionária
, esse novo estatuto de cena precisa ser depurado no
interior do próprio processo de sua realização.
Aí está a complexidade da sua proposta:
uma reengenharia do tempo e do homem que o vivencia.
Um filme em processo, sempre. "Un film en train
de se faire" (A Chinesa, de Godard).
A Coragem do Povo não pode ser definido
como cinema direto, ainda que o resultado às
vezes (mas somente às vezes, pois alguns procedimentos
de Sanjinés no enquadramento, por exemplo, dramatizam
excessivamente) soe muito próximo do que faria
um Frederick Wiseman, porquanto na verdade está
reconstituindo o evento retratado através de
pessoas direta ou indiretamente envolvidas. A primeira
seqüência do filme, em que um grupo de camponeses
é massacrado pelo exército, estabelece
uma dinâmica de zooms e planos curtos que chegam
a lembrar Sam Peckinpah. Como Daney escreveu em 1974,
apenas três anos depois de A Coragem do Povo,
"o contrário da mise en scène
patronal do mundo do trabalho não pode ser simplesmente
o direto, mas deve ser uma outra mise en scène"
(citado por Patrice Blouin em "Où est le
cinéma politique?", em Cahiers du Cinéma
nΊ 578). Essa "outra mise en scène"
parece estar na base do cinema de Sanjinés, assim
como a pedagogia pela repetição que em
As Bandeiras do Amanhecer cabe à voz ora
lamentosa, ora enfurecida do campesinato boliviano.
As Bandeiras do Amanhecer, que Sanjinés
finalizou em 1982, mas que começou a rodar em
1979, quando do golpe militar boliviano (processo tardio
dentro da febre de ditaduras na América Latina),
opera mesmo por dogmatismo, por sentenças lacônicas
sobrepostas às imagens, por fotos com legendas
acusatórias, por discursos que estabelecem oposições
e associações básicas. Um pensamento
que ainda crê na importância de uma teoria
para balizar a prática revolucionária.
"Não é uma questão de governo
ou de pessoa no governo, mas sim de sistema. É
preciso mudar o sistema!", diz uma voz em off
já no final do filme, fechando seu tom dogmático.
Sanjinés captou imagens impressionantes, como
as de manifestações nas ruas da cidade,
ou as dos camponeses marchando em multidão rumo
ao protesto. Há um prurido de paternalismo intelectual,
mas diluído numa substância que o filme
reconhece o extrapolar o didatismo é deixado
de lado, nos melhores momentos de As Bandeiras do
Amanhecer, para que o filme possa se embebedar do
vigor exalado pelo povo. O filme começa com imagens
da cidade grande, cheia de prédios e empresas
de luxo, para logo depois ir para o campo empobrecido.
A oposição cidade-campo é uma recorrência
que permite a Sanjinés sempre retornar ao estado
de sufoco que vê na relação entre
o povo e os aparelhos (burocrático, militar,
ideológico) do Estado. As Bandeiras do Amanhecer
adormece um pouco a preocupação de
achar um local de realidade para o filme, assume um
formato mais convencional, simplesmente documentando
talvez porque se reconheça numa situação
urgente e queira ser direto (assumindo todos os riscos
que isso implica). Um filme extremamente bem montado,
tanto na pista de imagem quanto na de som, que juntas
constroem uma matéria que opera por somatório,
e não por substituição; um registro
se adiciona ao outro e forma uma coisa homogênea,
uma massa.
É curioso acompanhar uma retrospectiva de Sanjinés
em ano que tem sido tão estranho para o que quer
que se entenda como cinema político. Há
algo bastante peculiar no cinema contemporâneo.
Enquanto uma parte do cinema americano, por exemplo,
reabsorve tudo que nele pode haver de político
numa onda gigante ou num sol que reaparece entre nuvens
carregadas (O Dia Depois de Amanhã), sua
mensagem sendo digerida e, conseqüentemente,
evacuada , a outra parte faz campanha política
em tela grande (Farenheit 11 de Setembro), panfletariza
o surrealismo televisivo do show de auditório
alimentando-o com quilômetros de x-files
e neste caso a mensagem é aprisionada numa
sala de espelhos, onde fica sendo refletida infinitamente,
mas sem transpor as divisas desse microcosmo. Os porta-vozes
da indignação que aderem ao dispositivo
cinematográfico clássico (experiência,
catarse, imersão) não possuem a mesma
capacidade de penetração, hoje em dia,
que os carreadores da cultura televisual sensacionalista,
supostamente interessados numa transmissão
propaganda, (auto)promoção. Em outras
palavras, é dizer que a esquerda festiva atualmente
prefere Michael Moore a Costa-Gavras (e continua a ignorar,
naturalmente, os verdadeiros cineastas políticos).
Sanjinés, que também lança um olhar
acusatório ao "imperialismo norte-americano",
que em grande medida propaga um discurso tão
bem vindo a uma parte da "intelectualidade"
local, jamais terá a mesma audiência de
Michael Moore por aqui. Fácil de explicar?.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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