AS BANDEIRAS DO AMANHECER
Jorge Sanjinés, Las Banderas del Amanecer, Bolívia, 1982

A grande contradição, do ponto de vista espectatorial, de assistir a um filme político-militante feito há vinte, quarenta anos atrás é que, uma vez já submetido à História, esse filme não mais nos atinge num de seus aspectos fundadores: a luta contra a tendência histórica hegemônica, a mobilização de esforços para reverter a causalidade temporal do sistema vigente (tido como opressor) – em outros termos, a tentativa de reescrever a História. É justamente no "fazer cinema politicamente", portanto, que o filme do passado se vê irreversivelmente minado. Encontramos extrema dificuldade em sentir a presença política de um filme que se mostra não mais como conclamação atuante, e sim como objeto catalogado, ultrapassado. Precisamos voltar a ele, assim sendo, com outros olhos.

Mas deixemos de ver o cinema a partir do mundo, e enxerguemos o mundo através do cinema: haveria algo capaz de eternizar aquela dimensão atuante? Se a resposta é positiva, o filme precisaria anular qualquer concepção concreta de tempo, ou ao menos não ter no naturalismo sua pedra de toque, porque o naturalismo acusa a passagem de tempo – e a passagem de tempo arremessa o filme de volta para o fluxo histórico que há muito o atropelou. A questão que se impõe como ponto de largada para o cineasta engajado é a mesma velha questão que se impõe a qualquer cineasta: como meu filme (se) inscreve (n)o tempo? Como as imagens que vemos em As Bandeiras do Amanhecer se conectam ao discurso de Simon Bolívar da cartela que abre o filme? Não surpreende que Sanjinés tenha volta e meia buscado uma forma culturalmente associada ao documentarismo para registrar uma matéria – mais ou menos assumidamente – encenada. Essa mistura de técnica de reportagem com teatro da vida pública, diluição da fronteira entre ficção e realidade, está na base de uma convicção artística presente em seus filmes: a verdade não está no real, mas no seu questionamento. Para ascender ao debate político eficaz, o cineasta precisa estabelecer uma nova relação com a cena. A realidade, num primeiro momento, precisa ser expulsa do cinema, para depois se re-introjetar com poderes multiplicados. Arcabouço de um cinema militante, que almeja o triunfo do ideal de uma classe específica – e não simplesmente abrir espaço para a dialética revolucionária –, esse novo estatuto de cena precisa ser depurado no interior do próprio processo de sua realização. Aí está a complexidade da sua proposta: uma reengenharia do tempo e do homem que o vivencia. Um filme em processo, sempre. "Un film en train de se faire" (A Chinesa, de Godard).

A Coragem do Povo não pode ser definido como cinema direto, ainda que o resultado às vezes (mas somente às vezes, pois alguns procedimentos de Sanjinés no enquadramento, por exemplo, dramatizam excessivamente) soe muito próximo do que faria um Frederick Wiseman, porquanto na verdade está reconstituindo o evento retratado através de pessoas direta ou indiretamente envolvidas. A primeira seqüência do filme, em que um grupo de camponeses é massacrado pelo exército, estabelece uma dinâmica de zooms e planos curtos que chegam a lembrar Sam Peckinpah. Como Daney escreveu em 1974, apenas três anos depois de A Coragem do Povo, "o contrário da mise en scène patronal do mundo do trabalho não pode ser simplesmente ‘o direto’, mas deve ser ‘uma outra mise en scène’" (citado por Patrice Blouin em "Où est le cinéma politique?", em Cahiers du Cinéma nΊ 578). Essa "outra mise en scène" parece estar na base do cinema de Sanjinés, assim como a pedagogia pela repetição que em As Bandeiras do Amanhecer cabe à voz ora lamentosa, ora enfurecida do campesinato boliviano.



As Bandeiras do Amanhecer, que Sanjinés finalizou em 1982, mas que começou a rodar em 1979, quando do golpe militar boliviano (processo tardio dentro da febre de ditaduras na América Latina), opera mesmo por dogmatismo, por sentenças lacônicas sobrepostas às imagens, por fotos com legendas acusatórias, por discursos que estabelecem oposições e associações básicas. Um pensamento que ainda crê na importância de uma teoria para balizar a prática revolucionária. "Não é uma questão de governo ou de pessoa no governo, mas sim de sistema. É preciso mudar o sistema!", diz uma voz em off já no final do filme, fechando seu tom dogmático. Sanjinés captou imagens impressionantes, como as de manifestações nas ruas da cidade, ou as dos camponeses marchando em multidão rumo ao protesto. Há um prurido de paternalismo intelectual, mas diluído numa substância que o filme reconhece o extrapolar – o didatismo é deixado de lado, nos melhores momentos de As Bandeiras do Amanhecer, para que o filme possa se embebedar do vigor exalado pelo povo. O filme começa com imagens da cidade grande, cheia de prédios e empresas de luxo, para logo depois ir para o campo empobrecido. A oposição cidade-campo é uma recorrência que permite a Sanjinés sempre retornar ao estado de sufoco que vê na relação entre o povo e os aparelhos (burocrático, militar, ideológico) do Estado. As Bandeiras do Amanhecer adormece um pouco a preocupação de achar um local de realidade para o filme, assume um formato mais convencional, simplesmente documentando – talvez porque se reconheça numa situação urgente e queira ser direto (assumindo todos os riscos que isso implica). Um filme extremamente bem montado, tanto na pista de imagem quanto na de som, que juntas constroem uma matéria que opera por somatório, e não por substituição; um registro se adiciona ao outro e forma uma coisa homogênea, uma massa.



É curioso acompanhar uma retrospectiva de Sanjinés em ano que tem sido tão estranho para o que quer que se entenda como cinema político. Há algo bastante peculiar no cinema contemporâneo. Enquanto uma parte do cinema americano, por exemplo, reabsorve tudo que nele pode haver de político numa onda gigante ou num sol que reaparece entre nuvens carregadas (O Dia Depois de Amanhã), sua mensagem sendo digerida – e, conseqüentemente, evacuada –, a outra parte faz campanha política em tela grande (Farenheit 11 de Setembro), panfletariza o surrealismo televisivo do show de auditório alimentando-o com quilômetros de x-files – e neste caso a mensagem é aprisionada numa sala de espelhos, onde fica sendo refletida infinitamente, mas sem transpor as divisas desse microcosmo. Os porta-vozes da indignação que aderem ao dispositivo cinematográfico clássico (experiência, catarse, imersão) não possuem a mesma capacidade de penetração, hoje em dia, que os carreadores da cultura televisual sensacionalista, supostamente interessados numa transmissão – propaganda, (auto)promoção. Em outras palavras, é dizer que a esquerda festiva atualmente prefere Michael Moore a Costa-Gavras (e continua a ignorar, naturalmente, os verdadeiros cineastas políticos). Sanjinés, que também lança um olhar acusatório ao "imperialismo norte-americano", que em grande medida propaga um discurso tão bem vindo a uma parte da "intelectualidade" local, jamais terá a mesma audiência de Michael Moore por aqui. Fácil de explicar?.


Luiz Carlos Oliveira Jr.