O
que ninguém esperava do novo filme de M. Night
Shyamalan é que ele fosse o que é: uma
obra-prima das mais perturbadoras e esquisitas dos últimos
anos. Não se trata de uma fábula política
sobre a América da era Bush até porque,
muito por força da circunstância, o filme
literalmente pós-11/9 de Shyamalan já
tinha sido o maravilhoso Sinais, cuja produção
começou dia 12 de setembro de 2001. Tampouco
se trata de um ensaio sociológico sobre o medo.
Sem dúvida alguma, A Vila traz
um dos maiores estudos sobre visibilidade que o cinema
contemporâneo tem para oferecer. E é também
(no que podemos pensar em Dez e Elefante)
um elogio do dispositivo. Como vem fazendo de filme
em filme, Shyamalan se lança à reinvenção
de formas. Num certo sentido, A Vila ocupa uma
posição semelhante àquela que Através
das Oliveiras ocupou na obra de Abbas Kiarostami:
um filme auto-reflexivo (não por acaso Shyamalan
faz uma ponta, quase no final, de costas para a câmera,
aparecendo refletido no vidro da portinha do armário
de remédios), mas que, enquanto olha no retrovisor,
anda para frente. A comparação vai além,
pois o diretor de O Sexto Sentido é alguém
que, assim como Kiarostami, explora a capacidade do
cinema de nos revelar o indizível no visível
e nos arrebatar.
Shyamalan já havia chegado a um grau de consistência
admirável nos trabalhos anteriores, mas A
Vila é um filme que transborda o seu cinema.
Desenvolvendo-se justamente na encruzilhada em que as
instâncias narrativas, as marcas autorais e a
natureza complexa do material humano em jogo se interceptam
e se despistam, A Vila pode ser o filme definidor
com relação ao futuro da carreira de Shyamalan,
conceitualmente e comercialmente. A própria campanha
publicitária parece ter resultado da detecção
de um problema: o filme, no fundo, não tem característica
de grande público. Os distribuidores encontraram
talvez a única forma de vender o filme, anunciando
um desfecho surpreendente e garantindo ao menos sua
primeira semana. Mas, na verdade, não existe
surpresa final, e sim um todo narrativo/temático
que é liberado aos poucos. É um filme
de montagem bastante original, praticamente sem unidades
narrativas que possam se definir como seqüências.
Salvo uma ou outra parte que realmente compõe
uma seqüência, o filme é todo construído
segundo um tempo narrativo particular, pouco convencional,
como se procurasse o regime de temporalidade inerente
à vila. A substância nuclear do filme corre
subterraneamente, mas fazendo aflorar, aqui e ali, poços
que se somam na construção de uma obra
muito superior ao que um olhar desatento pode pressupor.
Em A Vila tudo é questão, necessária
e primordialmente, de mise en scène. O
filme começa a se mostrar claro desde o primeiro
plano, durante o enterro de uma criança, em que
um discurso em off do Prof. Walker (Willian Hurt)
questiona a vida na vila (e no mundo de uma forma geral)
enquanto o zoom dilui a questão da distância
na tomada de vista reinscrevendo-a na não-distância
de uma operação manual (o movimento ótico
feito na câmera). Existe não só
uma relação com o espaço e com
o tempo, mas também uma relação
entre os sujeitos (que olham e que são olhados)
que o filme buscará problematizar de modo denso
e criativo.
A Vila não exclui a religiosidade da obra
de Shyamalan, muito pelo contrário: não
bastasse o nome de Deus, acompanhado de toda uma iconografia
religiosa, perpassar os dilemas éticos do filme,
a cidade-dispositivo de Covington ainda evoca um clima
de parábola bíblica à Gênese.
Só que o filme não adere a um discurso
teologizante, o que é bem diferente. A metodologia
está expressa nas aulas dadas por Walker no início,
quando ele reforça para as crianças as
doutrinas que regem a cidade. Ali o filme se assume
iniciático, telúrico, primário.
Covington se sustenta num mito: o das criaturas com
as quais existe um pacto de não-agressão
e respeito ao espaço alheio pacto que parece
estar sendo quebrado. Mas a farsa, tornada explícita
na metade do filme, vai sendo sugerida desde os primeiros
minutos, seja através da dramaturgia propositalmente
carregada (criando um distanciamento), seja através
de falas e atitudes que apontam para a existência
de um segredo. É em H.P. Lovecraft, o "mestre
do indizível", autor de clássicos
da literatura de horror, que pensamos imediatamente
na primeira parte do filme, quando se fala nas inenarráveis
criaturas da floresta ("Those-we-dont-speak-of").
O filme evolui então como uma avalanche de sentidos,
abrindo-se para a beleza das cenas de amor (Lucius pegando
a mão de Ivy e pondo o filme em câmera
lenta, transformando subitamente o que era suspense
em romance, é peça de antologia), mas
mantendo-se soturno na maior parte do tempo. A Vila
termina com uma tela preta e o som de batida seca que
acompanhara suas cenas de susto, depois de um plano-seqüência
praticamente fixo (salvo um re-enquadramento no final,
a câmera permanece imóvel e usa a profundidade
de campo). Um final tão aterrador quanto o de
A Salvo, de Todd Haynes, em que uma espécie
de spa new age faz as vezes da cidadela de A
Vila. Se há uma paranóia social perpassando
esses dois filmes, ela é menos conseqüência
política do que agorafobia, ou algo simplesmente
indefinível. A Vila não esgota
seu objeto em patologia social. Os dirigentes do vilarejo
se isolaram da sociedade (leia-se a cidade grande contemporânea),
mas não sabemos disso quando o filme começa,
pois ele nos arremessa no interior dessa vivência
e nos faz compartilhar dela sem conhecer as suas bordas.
Embora lembremos de Dogville vez ou outra durante
o filme, o que surge como constatação
é a postura diametralmente oposta adotada por
Shyamalan. A Vila não faz um mergulho
numa pretensa América profunda, com uma estética
bem particular e evocando aspectos de mito de fundação,
para mostrar uma experiência grotesca e manipular
nosso sentimento em relação às
pessoas que a protagonizam. Interessa a Shyamalan uma
monstruosidade de gestos, e não de intenções.
Não interessa a ele queimar ratinhos dentro de
uma estufa de laboratório. O que preocupa o diretor,
mais do que as conseqüências políticas
das atitudes tomadas, é uma ação
interior que se manifesta em cada um dos personagens
não como psicologia ou tipologia folhetinesca,
mas como uma gestão seletiva dos afetos. O tom
over da declaração de amor feita
a Lucius (Joaquin Phoenix) no início do filme
o que rende uma piada de montagem, quando corta para
a menina chorando, nos dando a entender a recusa é
menos um artifício dramatúrgico do que
uma entrega, literalmente, do que está em jogo
naquela micro-sociedade. Os habitantes de Covington,
conscientemente ou não, ficcionalizam suas vidas
como fuga de um espaço-fora, que no passado se
mostrou hostil aos "dirigentes" (os fundadores
da cidade). Mas é esse espaço-fora (da
vila, da tela, do campo de visão) que, uma vez
furada a membrana, oferece os meios que garantem a sobrevivência
da ficção, ameaçada por elementos
que não são senão endógenos.
Essa contaminação benéfica, que
contradiz as premissas dos moradores da vila, é
a contrapartida que expõe a complexidade da relação
entre o conceito de vida posto em prática naquele
lugar e todo o entorno. Daquele modo de vida pacato
e ingênuo, brota a flor vermelha, a de cor proibida,
sem que ninguém possa impedir restando enterrá-la,
escondê-la. O mesmo ocorrerá a Noah (Adrien
Brody), o desviante. Ele terá o mesmo destino
da flor que aparece no início. Cairá num
buraco, vestido com a fantasia vermelha, e ao final
Walker anunciará um enterro com todas as honrarias,
pois Noah justamente possibilitou a manutenção
do mito, e, por conseguinte, a continuidade de Covington
(o sacrifício humano novamente povoa a tela de
Shyamalan). O que os "dirigentes" de Convington
não conseguem admitir é o compromisso,
existente desde que o mundo é mundo (e desde
que o mundo é cinema e vice-versa), entre a inocência
e a violência. É impossível manter
a humanidade dentro de uma célula mínima
e garantir seu crescimento pacífico. Afinal de
contas, em que tipo de inocência repousa a violência
desse gesto fundador e sustentador da vila? Talvez pela
sofisticação estética e pelos enredos
inteligentes de seus filmes, acaba que volta e meia
esquecemos da grande primariedade do cinema de Shyamalan.
Quando ele coloca os pingos nos is, tudo se revela muito
básico, muito feijão com arroz. Amor,
morte, religião, família, medo: a mente
e o coração se manifestam de forma arcaica
em Shyamalan. O mistério é o simples,
e em nenhum momento os filmes mentem a respeito disso.
Simplicidade que não impede uma ambigüidade
latente durante toda a projeção de A
Vila: o filme não induz nenhuma linha de
resposta, aprovadora ou reprovadora, aos seus personagens
a cena em que os dirigentes discutem o estatuto do
vilarejo frente à situação de saúde
crítica de Lucius e a possível ida de
Ivy à cidade é filmada em tom documental.
A primeira aparição da criatura se dá
depois de uma cena em que o personagem de Brody se esconde
no armário de Ivy (Bryce Dallas Howard, em atuação
que mereceria um texto à parte). A cena é
filmada da janela, como uma autêntica cena de
suspense, mas ela não leva susto quando abre
o armário, pois não pode vê-lo (numa
posição que parece de ataque). Esse plano
é um dos centros nervosos do filme: nele se coloca
o espelhamento entre os inimigos de fora (as criaturas)
e a ameaça de dentro (não exatamente Noah,
mas o sistema de confinamento e terror que em algum
momento afetará a mente, nem que seja a do mais
suscetível), faz-se um questionamento fundamental
sobre a origem do temor local (o que é o medo
para alguém que não consegue ver a face
do mal?), fica estabelecido entre quais personagens
se dará o confronto central do filme (a cena
da perseguição na floresta). O mais espetacular
do mecanismo ficcional de A Vila é que
seu clímax de suspense se dá depois de
sabermos que as criaturas são uma farsa, uma
fantasia. Entretanto, Shyamalan cria o clima da perseguição
na floresta, quando Ivy foge de uma criatura, como se
nada tivesse sido falado antes. E, o que é mais
incrível, a cena funciona muito bem, em grande
medida por conta de um jogo de tensão e distensão
que a montagem realiza magistralmente (só que
o medo no cinema é mais do que a articulação
bem sucedida dos seus elementos plásticos, donde
o suspense de A Vila fica ainda mais inexplicável).
Outra cena crucial é o diálogo de Ivy
e Lucius no alpendre da casa dela. Filmada em quatro
belíssimos planos, essa cena mostra os dois únicos
habitantes de Covington que não sentem medo declarando
amor um ao outro e revelando a força que integra
afecção e visibilidade. A cegueira de
Ivy, a cor que ela enxerga em Lucius, a preocupação
de Lucius com ela, o temperamento destemido dos dois,
a relação de intromissão que eles
estabelecem diferentemente dos outros com o espaço
e com o imaginário local: tudo isso tece uma
rede de união. A cena termina com a câmera
fazendo um movimento pressagiador do destino trágico,
abandonando o casal que se beija e caminhando para a
esquerda até enquadrar a cadeira de balanço
igual àquela em que Noah sentará com as
mãos sujas do sangue de Lucius. É com
essa e outras cenas que alternam imagens icônicas
a imagens bastante inusitadas que Shyamalan atinge a
perfeição plástica de A Vila,
tendo como braço direito o diretor de fotografia
Roger Deakins, que possibilitou noturnas praticamente
à luz de tochas, no seu melhor trabalho em anos.
O som da sirene do jipe é o sinal que denuncia
de vez a contemporaneidade no filme. Que seja um som
a fazê-lo, parece justo num filme em que a edição
sonora é absolutamente fundamental (o que se
nota logo no início, com o barulho das moscas
que sobrevoam o animal morto sendo trazido para primeiro
plano). "Ouço gentileza na sua voz, não
era isso o que eu esperava das cidades", diz Ivy
ao guarda florestal que a encontra na beira da estrada
e se dispõe a ajudá-la. O medo inculcado
nas crianças de Covington através das
histórias das criaturas pode até causar
asco, mas a resposta do filme a esse monstro fabulado
é o olhar confuso e enternecido do guarda florestal
aquele que protege os limites e o conteúdo
da floresta , um personagem de suma importância,
apesar da curta participação. Ele, que
desconhece a existência de Covington (e sequer
imagina o folclore que condena tudo o que extrapola
os limites da vila), estranha o anacronismo da situação,
o modo dela falar, suas roupas, a descrição
de sua missão, o presente que lhe é oferecido
(aparentemente um relógio antigo, que depois
estará pendurado no retrovisor do jipe do guarda).
Terá sido por Ivy, somente por ela, que o guarda
se sensibilizou e aceitou pegar os remédios sem
falar nada ao seu chefe? Terá ele se sentido
muito pequeno diante daquela alteridade tão demarcada,
tão difícil de ser compreendida somente
no espaço, digamos, de um filme? A sensibilidade
e o estranhamento que aquele olhar revela são
a chave de toda a disposição do filme.
O ímpeto do personagem não foi abusar
daquela inocência, daquela fragilidade indefesa
e bela, mas sim prolongá-la. E não coube
a ele decidir o destino do que quer que existisse para
lá da floresta. Não por acaso estamos
falando de um cinema tão diferente do de Lars
Von Trier: propositalmente ou não, A Vila
é também a resposta de Shyamalan a Dogville.
Existe uma relação de proximidade câmera-personagem
muito cuidadosa do que o close no rosto agonizante
de Noah e, antes, a cena dele esfaqueando Lucius (atitude
tão humana quanto o amor sublime entre os jovens
do filme) são os exemplos mais problemáticos,
porém peças importantes e coerentes no
filme. O cineasta aqui não se elege o juiz das
ações, não sobrepõe seus
valores ao que está do outro lado da câmera,
ou do outro lado da cerca que delimita a floresta. Até
porque ele pode estar lá, em algum lugar refletido.
O último plano do filme é essa incapacidade
de intervir, essa incapacidade de decupar e seguir uma
composição dramática; a câmera
resolve se posicionar na cama do debilitado Lucius e
observar tudo passivamente a própria câmera
termina o filme se afirmando também ela um paciente,
também ela à espera da volta de Ivy. O
cinema ainda terá de esperar um pouco mais, contudo,
até que surja uma outra cena tão bonita
quanto aquela do encontro entre dois personagens-mundo,
Ivy e o guarda florestal. A decisão dele de preservar
o segredo corresponde ao impulso, por parte do cineasta,
de preservar o local do outro como única condição
para se continuar a filmar, ou mesmo para se ter começado
a filmar (por que razão além desta o período
em que o filme se passa, no tempo fictício de
Covington, corresponde à época da gênese
da sétima arte?). Deixar aquela experiência
radical existir sem querer impor um olhar de cima (sem
aviões sobrevoando o local), para Shyamalan,
é a possibilidade de prosseguir fazendo cinema.
Com A Vila, ele nos inicia na difícil
pedagogia de um novo olhar sobre as coisas ocultadas,
indizíveis, desmascaradas, todas as coisas. De
agora em diante, o cinema carregará esse aprendizado
como se nunca tivesse saído da escola primária.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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