A VILA
M. Night Shyamalan, The Village, EUA, 2004

O que ninguém esperava do novo filme de M. Night Shyamalan é que ele fosse o que é: uma obra-prima das mais perturbadoras e esquisitas dos últimos anos. Não se trata de uma fábula política sobre a América da era Bush – até porque, muito por força da circunstância, o filme literalmente pós-11/9 de Shyamalan já tinha sido o maravilhoso Sinais, cuja produção começou dia 12 de setembro de 2001. Tampouco se trata de um ensaio sociológico sobre o medo. Sem dúvida alguma, A Vila traz um dos maiores estudos sobre visibilidade que o cinema contemporâneo tem para oferecer. E é também (no que podemos pensar em Dez e Elefante) um elogio do dispositivo. Como vem fazendo de filme em filme, Shyamalan se lança à reinvenção de formas. Num certo sentido, A Vila ocupa uma posição semelhante àquela que Através das Oliveiras ocupou na obra de Abbas Kiarostami: um filme auto-reflexivo (não por acaso Shyamalan faz uma ponta, quase no final, de costas para a câmera, aparecendo refletido no vidro da portinha do armário de remédios), mas que, enquanto olha no retrovisor, anda para frente. A comparação vai além, pois o diretor de O Sexto Sentido é alguém que, assim como Kiarostami, explora a capacidade do cinema de nos revelar o indizível no visível – e nos arrebatar.

Shyamalan já havia chegado a um grau de consistência admirável nos trabalhos anteriores, mas A Vila é um filme que transborda o seu cinema. Desenvolvendo-se justamente na encruzilhada em que as instâncias narrativas, as marcas autorais e a natureza complexa do material humano em jogo se interceptam e se despistam, A Vila pode ser o filme definidor com relação ao futuro da carreira de Shyamalan, conceitualmente e comercialmente. A própria campanha publicitária parece ter resultado da detecção de um problema: o filme, no fundo, não tem característica de grande público. Os distribuidores encontraram talvez a única forma de vender o filme, anunciando um desfecho surpreendente e garantindo ao menos sua primeira semana. Mas, na verdade, não existe surpresa final, e sim um todo narrativo/temático que é liberado aos poucos. É um filme de montagem bastante original, praticamente sem unidades narrativas que possam se definir como seqüências. Salvo uma ou outra parte que realmente compõe uma seqüência, o filme é todo construído segundo um tempo narrativo particular, pouco convencional, como se procurasse o regime de temporalidade inerente à vila. A substância nuclear do filme corre subterraneamente, mas fazendo aflorar, aqui e ali, poços que se somam na construção de uma obra muito superior ao que um olhar desatento pode pressupor. Em A Vila tudo é questão, necessária e primordialmente, de mise en scène. O filme começa a se mostrar claro desde o primeiro plano, durante o enterro de uma criança, em que um discurso em off do Prof. Walker (Willian Hurt) questiona a vida na vila (e no mundo de uma forma geral) enquanto o zoom dilui a questão da distância na tomada de vista reinscrevendo-a na não-distância de uma operação manual (o movimento ótico feito na câmera). Existe não só uma relação com o espaço e com o tempo, mas também uma relação entre os sujeitos (que olham e que são olhados) que o filme buscará problematizar de modo denso e criativo.

A Vila não exclui a religiosidade da obra de Shyamalan, muito pelo contrário: não bastasse o nome de Deus, acompanhado de toda uma iconografia religiosa, perpassar os dilemas éticos do filme, a cidade-dispositivo de Covington ainda evoca um clima de parábola bíblica à Gênese. Só que o filme não adere a um discurso teologizante, o que é bem diferente. A metodologia está expressa nas aulas dadas por Walker no início, quando ele reforça para as crianças as doutrinas que regem a cidade. Ali o filme se assume iniciático, telúrico, primário. Covington se sustenta num mito: o das criaturas com as quais existe um pacto de não-agressão e respeito ao espaço alheio – pacto que parece estar sendo quebrado. Mas a farsa, tornada explícita na metade do filme, vai sendo sugerida desde os primeiros minutos, seja através da dramaturgia propositalmente carregada (criando um distanciamento), seja através de falas e atitudes que apontam para a existência de um segredo. É em H.P. Lovecraft, o "mestre do indizível", autor de clássicos da literatura de horror, que pensamos imediatamente na primeira parte do filme, quando se fala nas inenarráveis criaturas da floresta ("Those-we-don’t-speak-of"). O filme evolui então como uma avalanche de sentidos, abrindo-se para a beleza das cenas de amor (Lucius pegando a mão de Ivy e pondo o filme em câmera lenta, transformando subitamente o que era suspense em romance, é peça de antologia), mas mantendo-se soturno na maior parte do tempo. A Vila termina com uma tela preta e o som de batida seca que acompanhara suas cenas de susto, depois de um plano-seqüência praticamente fixo (salvo um re-enquadramento no final, a câmera permanece imóvel e usa a profundidade de campo). Um final tão aterrador quanto o de A Salvo, de Todd Haynes, em que uma espécie de spa new age faz as vezes da cidadela de A Vila. Se há uma paranóia social perpassando esses dois filmes, ela é menos conseqüência política do que agorafobia, ou algo simplesmente indefinível. A Vila não esgota seu objeto em patologia social. Os dirigentes do vilarejo se isolaram da sociedade (leia-se a cidade grande contemporânea), mas não sabemos disso quando o filme começa, pois ele nos arremessa no interior dessa vivência e nos faz compartilhar dela sem conhecer as suas bordas.

Embora lembremos de Dogville vez ou outra durante o filme, o que surge como constatação é a postura diametralmente oposta adotada por Shyamalan. A Vila não faz um mergulho numa pretensa América profunda, com uma estética bem particular e evocando aspectos de mito de fundação, para mostrar uma experiência grotesca e manipular nosso sentimento em relação às pessoas que a protagonizam. Interessa a Shyamalan uma monstruosidade de gestos, e não de intenções. Não interessa a ele queimar ratinhos dentro de uma estufa de laboratório. O que preocupa o diretor, mais do que as conseqüências políticas das atitudes tomadas, é uma ação interior que se manifesta em cada um dos personagens não como psicologia ou tipologia folhetinesca, mas como uma gestão seletiva dos afetos. O tom over da declaração de amor feita a Lucius (Joaquin Phoenix) no início do filme – o que rende uma piada de montagem, quando corta para a menina chorando, nos dando a entender a recusa – é menos um artifício dramatúrgico do que uma entrega, literalmente, do que está em jogo naquela micro-sociedade. Os habitantes de Covington, conscientemente ou não, ficcionalizam suas vidas como fuga de um espaço-fora, que no passado se mostrou hostil aos "dirigentes" (os fundadores da cidade). Mas é esse espaço-fora (da vila, da tela, do campo de visão) que, uma vez furada a membrana, oferece os meios que garantem a sobrevivência da ficção, ameaçada por elementos que não são senão endógenos. Essa contaminação benéfica, que contradiz as premissas dos moradores da vila, é a contrapartida que expõe a complexidade da relação entre o conceito de vida posto em prática naquele lugar e todo o entorno. Daquele modo de vida pacato e ingênuo, brota a flor vermelha, a de cor proibida, sem que ninguém possa impedir – restando enterrá-la, escondê-la. O mesmo ocorrerá a Noah (Adrien Brody), o desviante. Ele terá o mesmo destino da flor que aparece no início. Cairá num buraco, vestido com a fantasia vermelha, e ao final Walker anunciará um enterro com todas as honrarias, pois Noah justamente possibilitou a manutenção do mito, e, por conseguinte, a continuidade de Covington (o sacrifício humano novamente povoa a tela de Shyamalan). O que os "dirigentes" de Convington não conseguem admitir é o compromisso, existente desde que o mundo é mundo (e desde que o mundo é cinema e vice-versa), entre a inocência e a violência. É impossível manter a humanidade dentro de uma célula mínima e garantir seu crescimento pacífico. Afinal de contas, em que tipo de inocência repousa a violência desse gesto fundador e sustentador da vila? Talvez pela sofisticação estética e pelos enredos inteligentes de seus filmes, acaba que volta e meia esquecemos da grande primariedade do cinema de Shyamalan. Quando ele coloca os pingos nos is, tudo se revela muito básico, muito feijão com arroz. Amor, morte, religião, família, medo: a mente e o coração se manifestam de forma arcaica em Shyamalan. O mistério é o simples, e em nenhum momento os filmes mentem a respeito disso. Simplicidade que não impede uma ambigüidade latente durante toda a projeção de A Vila: o filme não induz nenhuma linha de resposta, aprovadora ou reprovadora, aos seus personagens – a cena em que os dirigentes discutem o estatuto do vilarejo frente à situação de saúde crítica de Lucius e a possível ida de Ivy à cidade é filmada em tom documental.

A primeira aparição da criatura se dá depois de uma cena em que o personagem de Brody se esconde no armário de Ivy (Bryce Dallas Howard, em atuação que mereceria um texto à parte). A cena é filmada da janela, como uma autêntica cena de suspense, mas ela não leva susto quando abre o armário, pois não pode vê-lo (numa posição que parece de ataque). Esse plano é um dos centros nervosos do filme: nele se coloca o espelhamento entre os inimigos de fora (as criaturas) e a ameaça de dentro (não exatamente Noah, mas o sistema de confinamento e terror que em algum momento afetará a mente, nem que seja a do mais suscetível), faz-se um questionamento fundamental sobre a origem do temor local (o que é o medo para alguém que não consegue ver a face do mal?), fica estabelecido entre quais personagens se dará o confronto central do filme (a cena da perseguição na floresta). O mais espetacular do mecanismo ficcional de A Vila é que seu clímax de suspense se dá depois de sabermos que as criaturas são uma farsa, uma fantasia. Entretanto, Shyamalan cria o clima da perseguição na floresta, quando Ivy foge de uma criatura, como se nada tivesse sido falado antes. E, o que é mais incrível, a cena funciona muito bem, em grande medida por conta de um jogo de tensão e distensão que a montagem realiza magistralmente (só que o medo no cinema é mais do que a articulação bem sucedida dos seus elementos plásticos, donde o suspense de A Vila fica ainda mais inexplicável). Outra cena crucial é o diálogo de Ivy e Lucius no alpendre da casa dela. Filmada em quatro belíssimos planos, essa cena mostra os dois únicos habitantes de Covington que não sentem medo declarando amor um ao outro e revelando a força que integra afecção e visibilidade. A cegueira de Ivy, a cor que ela enxerga em Lucius, a preocupação de Lucius com ela, o temperamento destemido dos dois, a relação de intromissão que eles estabelecem – diferentemente dos outros – com o espaço e com o imaginário local: tudo isso tece uma rede de união. A cena termina com a câmera fazendo um movimento pressagiador do destino trágico, abandonando o casal que se beija e caminhando para a esquerda até enquadrar a cadeira de balanço igual àquela em que Noah sentará com as mãos sujas do sangue de Lucius. É com essa e outras cenas que alternam imagens icônicas a imagens bastante inusitadas que Shyamalan atinge a perfeição plástica de A Vila, tendo como braço direito o diretor de fotografia Roger Deakins, que possibilitou noturnas praticamente à luz de tochas, no seu melhor trabalho em anos.

O som da sirene do jipe é o sinal que denuncia de vez a contemporaneidade no filme. Que seja um som a fazê-lo, parece justo num filme em que a edição sonora é absolutamente fundamental (o que se nota logo no início, com o barulho das moscas que sobrevoam o animal morto sendo trazido para primeiro plano). "Ouço gentileza na sua voz, não era isso o que eu esperava das cidades", diz Ivy ao guarda florestal que a encontra na beira da estrada e se dispõe a ajudá-la. O medo inculcado nas crianças de Covington através das histórias das criaturas pode até causar asco, mas a resposta do filme a esse monstro fabulado é o olhar confuso e enternecido do guarda florestal – aquele que protege os limites e o conteúdo da floresta –, um personagem de suma importância, apesar da curta participação. Ele, que desconhece a existência de Covington (e sequer imagina o folclore que condena tudo o que extrapola os limites da vila), estranha o anacronismo da situação, o modo dela falar, suas roupas, a descrição de sua missão, o presente que lhe é oferecido (aparentemente um relógio antigo, que depois estará pendurado no retrovisor do jipe do guarda). Terá sido por Ivy, somente por ela, que o guarda se sensibilizou e aceitou pegar os remédios sem falar nada ao seu chefe? Terá ele se sentido muito pequeno diante daquela alteridade tão demarcada, tão difícil de ser compreendida somente no espaço, digamos, de um filme? A sensibilidade e o estranhamento que aquele olhar revela são a chave de toda a disposição do filme. O ímpeto do personagem não foi abusar daquela inocência, daquela fragilidade indefesa e bela, mas sim prolongá-la. E não coube a ele decidir o destino do que quer que existisse para lá da floresta. Não por acaso estamos falando de um cinema tão diferente do de Lars Von Trier: propositalmente ou não, A Vila é também a resposta de Shyamalan a Dogville.

Existe uma relação de proximidade câmera-personagem muito cuidadosa – do que o close no rosto agonizante de Noah e, antes, a cena dele esfaqueando Lucius (atitude tão humana quanto o amor sublime entre os jovens do filme) são os exemplos mais problemáticos, porém peças importantes e coerentes no filme. O cineasta aqui não se elege o juiz das ações, não sobrepõe seus valores ao que está do outro lado da câmera, ou do outro lado da cerca que delimita a floresta. Até porque ele pode estar lá, em algum lugar refletido. O último plano do filme é essa incapacidade de intervir, essa incapacidade de decupar e seguir uma composição dramática; a câmera resolve se posicionar na cama do debilitado Lucius e observar tudo passivamente – a própria câmera termina o filme se afirmando também ela um paciente, também ela à espera da volta de Ivy. O cinema ainda terá de esperar um pouco mais, contudo, até que surja uma outra cena tão bonita quanto aquela do encontro entre dois personagens-mundo, Ivy e o guarda florestal. A decisão dele de preservar o segredo corresponde ao impulso, por parte do cineasta, de preservar o local do outro como única condição para se continuar a filmar, ou mesmo para se ter começado a filmar (por que razão além desta o período em que o filme se passa, no tempo fictício de Covington, corresponde à época da gênese da sétima arte?). Deixar aquela experiência radical existir sem querer impor um olhar de cima (sem aviões sobrevoando o local), para Shyamalan, é a possibilidade de prosseguir fazendo cinema. Com A Vila, ele nos inicia na difícil pedagogia de um novo olhar sobre as coisas – ocultadas, indizíveis, desmascaradas, todas as coisas. De agora em diante, o cinema carregará esse aprendizado como se nunca tivesse saído da escola primária.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 



Bryce Dallas Howard em A Vila de M. Night Shyamalan