4 FILMES DE AKIRA KUROSAWA
O Idiota; Trono Manchado de Sangue; Yojimbo, o Guarda-costas; Ran

Hakushi, 1951, Japão;
Kumonosu Jô, 1957, Japão;
Yojimbo, 1961, Japão;
Ran, 1985, Japão/França.


"Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem – muitas vezes por culpa de nossos próprios excessos – pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua, nas estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas, bêbedos, mentirosos e adúlteros pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída a influência divina... Ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode" (Rei Lear, ato I, cena II).

Em O Idiota, Trono Manchado de Sangue, Yojimbo, O Guarda-Costas e Ran, Akira Kurosawa coloca em questão o livre arbítrio do homem: os personagens estão atados ao destino e à vontade dos deuses, ou as tragédias que se sucedem são fruto de suas próprias ações, do uso irresponsável de sua liberdade?

As oposições entre homem e deuses, entre destino e liberdade, aparecem com clareza em Trono Manchado de Sangue. Nesta adaptação de Macbeth, Taketori Washizu (Toshiro Mifune) assume o poder ao assassinar, influenciado pela esposa, Asaji (Isuzu Yamada), seu suserano. Em aparência, trata-se, para Washizu, de cumprir a profecia dita pela bruxa que encontrara no Bosque das Teias de Aranha, configurando-se, por conseguinte, no destino inexorável – representado plasticamente por Kurosawa através da fantasmagórica aparição da bruxa, bem como da labiríntica e quase intransponível floresta que protege o castelo do senhor feudal – do personagem.

No entanto, a despeito da narrativa épica e das interpretações maiores-que-a-vida, Trono Manchado de Sangue não se constitui em filme fantástico, pois o interesse, despertado por Asaji, que move Washizu é bastante concreto: tornar-se shogun, a fim de controlar a terra, a força militar e, em conseqüência, o poder sobre camponeses, vassalos e nobreza feudal. Desse modo, são os atos cruéis e imorais de Washizu – que Kurosawa mostra como fraco e submisso à esposa, ao contrário do Macbeth de Orson Welles, verdadeiro herói marginal que se bate contra os desígnios celestes – para galgar o comando que o levam à ruína, conforme fica expresso na confiança que possui na impossibilidade do Bosque das Teias de Aranha de marchar em direção a seu castelo: ao crer piamente na natureza (ou seja, nos deuses), Washizu não conta com a capacidade de seus inimigos em alterá-la e em manuseá-la de acordo com o necessário. Quando Asaji enlouquece e Washizu é alvejado pelas flechas dos próprios comandados, percebe-se que a teia a qual os destrói não estava determinada a priori, mas sim que resulta das decisões que tomaram livremente para alcançar seus objetivos.

A Macbeth, Akira Kurosawa soma Rei Lear para filmar Ran. Se agora é Kaede (Mieko Harada) quem encarna o papel de Lady Macbeth que em Trono Manchado de Sangue cabe a Asaji, há também o patriarca, Lorde Hidetora Ichimonji (Tatsuya Nakadai), o qual reparte seus domínios entre os três filhos, Taro (Akira Terao), Jiro (Junpachi Nozu) e Saburo (Daysuke Ryu). De sorte que o cineasta, em Ran, estrutura a dialética entre destino e livre arbítrio a partir de dois eixos, que se interpenetram: sobre a crença tola de Hidetora de que o amor e a lealdade seriam capazes de suplantar o desejo que seus filhos têm pelo poder, assim como o orgulho ferido do pai, que não aceita a verdade dita por Saburo, único herdeiro que o respeita de fato; e sobre as maquinações de Kaede, a qual pretende se vingar de Hidetora pelo assassinato dos pais e pela perda do castelo, valendo-se, para tanto, primeiro de Taro, seu marido, e depois de Jiro, que a toma como esposa após matar o irmão mais velho em combate.

Conhecido pelas seqüências de batalha – que utilizam menos a violência do que o grafismo das cores primárias que caracterizam os exércitos dos três filhos, marcando assim a divergência e a beligerância entre eles –, Ran explicita a proposta de Kurosawa quando, junto ao lorde morto, o bobo pergunta aos deuses se estão contentes em maltratar os homens, enquanto, na verdade, são os céus que choram devido à crueldade humana. O final trágico (amplificado pelo ritmo lento do filme e pela música de Toru Takemitsu, que se baseia em Gustav Mahler) que se abate sobre Hidetora e Saburo é apenas conseqüência dos desmandos cometidos pelo patriarca na consolidação de seu feudo, tragédia esta que não poupa especialmente os inocentes: Sue (Yoshiko Miyazaki), primeira esposa de Jiro, incapaz de sentir rancor pelo sogro que lhe assassinou os pais e que lhe queimou o castelo, morta por Kaede, e seu irmão Kurogane (Hisashi Igawa), cujos olhos foram queimados por Hidetora e que, cego, tateante e solitário, deixa cair a imagem de Buda, símbolo da ordem, da compaixão e da bondade, dentro do abismo.

A escolha entre o certo e o errado, que permeia Trono Manchado de Sangue e Ran, que parece ausente dos serviços prestados pelo samurai Sanjuro Kuwabatake (Toshiro Mifune) a ambos os clãs que disputam o controle da cidade em Yojimbo, O guarda-costas. Agindo à revelia, para quem lhe pagar mais, mesmo a chegada de Sanjuro ao vilarejo se assemelha à obra do acaso, já que somente segue a direção apontada pelo pedaço de madeira.

O envolvimento do samurai na guerra entre Seibei (Seizaburo Kawazu) e Ushitora (Ryu Sazanke), porém, não está ligado à sorte ou ao azar. Na estrada, quando diante da encruzilhada, é Sanjuro que lança a madeira ao alto para que ela lhe aponte o caminho a tomar. De maneira que são as ações do protagonista, e não o destino, que regem os acontecimentos no desenrolar do filme, sobretudo porque sua suposta amoralidade se revela falsa: o caráter do samurai é marcado essencialmente pela bondade e pela virtude, como demonstra a seqüência em que o herói resgata Nui (Yoko Tsukasa), prisioneira de Ushitora, a fim de reuni-la com a família.

Assim, o bem e o mal se encontram melhor delimitados em Yojimbo do que em sua refilmagem, Por Um Punhado de Dólares (1964), de Sérgio Leone, na qual é impossível conhecer as motivações exatas do personagem de Clint Eastwood. Por Um Punhado de Dólares, entretanto, nasce da desconstrução do faroeste clássico realizada por John Ford em O Homem que Matou o Fascínora (1962) e por Sam Peckinpah em Pistoleiros do Entardecer (1962), enquanto Yojimbo a antecede. Ou seja, o filme de Kurosawa – que retrabalha o western, da mesma forma que, esteticamente, é influenciado pela profundidade de campo e pela iluminação expressionista de Orson Welles (prejudicadas pelo péssimo DVD da Continental que, além de dar tonalidades verdes ao preto e branco da fotografia, está em scope injustificável, que estica e distorce as rigorosas composições do cineasta japonês) – deve ao código moral presente em Os Brutos Também Amam (1953), de George Stevens, em que o estranho com nome retorna à vida de pistoleiro para defender os posseiros contra os proprietários de gado que ameaçam expulsá-los. Sanjuro, como Shane, age por motivos nobres: se ele limpa a cidade das famílias rivais, é para que a paz e a ordem possam voltar, mesmo que o preço, segundo Unosuke (Tatsuya Nakadai, em paródia aos "homens do Oeste"), seja a condenação ao inferno.

Dois caminhos também se abrem para Kenji Kameda (Masayuki Mori), protagonista de O Idiota, versão de Akira Kurosawa para o romance de Dostoievski. Dividido em duas partes ("amor e sofrimento" e "amor e ódio"), na metragem ocidental (166 minutos) bem inferior à japonesa (245 minutos), o filme acompanha o dilema de Kameda, que deve escolher entre Ayako (Yoshiko Kuga), jovem de família abastada e respeitada, e Taeko Nasu (a grande Setsuko Hara), mulher "de vida fácil" que vive complicado relacionamento amoroso com Akama (Toshiro Mifune), amigo do protagonista.

Após escapar de modo milagroso da morte, Kameda passa a sofrer de "idiotice", ou seja, de amor incondicional pela vida. Bom e puro em excesso, pronto ao auto-sacrifício caso preciso – tal qual Rocco Parondi, que tem igualmente como modelo O Idiota, de Dostoievski, em Rocco e Seus Irmãos (1960), de Luchino Visconti –, Kameda não consegue odiar mesmo aqueles que o ridicularizam. Como o amor que sente exclui qualquer emoção negativa, como o ciúme ou a possessividade, o herói se apaixona por ambas as mulheres, seja em virtude da identificação que nutre pelo sofrimento de Taeko, prisioneira de seu passado imoral, seja devido à admiração pela personalidade forte e decidida de Ayako.

É justamente o gênio de Ayako que conduz O Idiota à tragédia. Ao não acreditar que Taeko possa abdicar de Kameda – desistir por amá-lo demais, para não compromete-lo –, Ayako força o protagonista à escolha indesejada. Como desconhece a distinção entre o bem e o mal (não provou o fruto proibido da árvore do conhecimento), Kameda não pode optar, pois, uma vez que tudo lhe soa admirável, está despreparado para julgar, pré-condição para o ato de escolher. Assim, a maldade, em O Idiota, assume valoração positiva, já que cada exercício da liberdade humana implica, em contrapartida necessária da felicidade que se busca, causar dor e sofrimento a alguém.

Portanto, para Akira Kurosawa, as desgraças que assolam os homens decorrem do uso inconseqüente do livre arbítrio, e não da vontade divina ou dos desígnios do destino.

Paulo Ricardo de Almeida

(O Idiota, VHS Concorde Video;
Trono Manchado de Sangue, VHS Tocantins, DVD Continental;
Yojimbo, o Guarda-costas,
VHS Tocantins, DVD Continental;
Ran, VHS Globo Vídeo, DVD Continental)