Yume, Japão/EUA,
1990
Hachi-gatsu no kyôshikyoku, Japão, 1991
Madadayo, Japão, 1993
É impressionante
voltar os olhos para os três últimos filmes
de Akira Kurosawa sob o signo desta palavra: "últimos".
Porque, olhados em retrospecto, após o falecimento
do cineasta em 1998, impressiona ver como os temas da
velhice e da morte perpassam estes três trabalhos
que têm a força de um autêntico epitáfio
artístico escrito em vida. Não se tratam,
no entanto, de filmes de tons escuros sobre a vida a
partir da morte, de forma alguma (mesmo vindo de um
cineasta que no início dos anos 70 chegou a tentar
o suicídio). Quase o oposto disso: em todos os
três há um personagem idoso que reafirma
constantemente seu apego à vida e à beleza
dos pequenos rituais cotidianos, para além da
sabedoria sobre a proximidade do fim.
Madadayo é mais obviamente sobre isso,
como seu título mesmo já indica: trata-se
de uma expressão que significa "ainda não!",
resposta que o protagonista do filme (um professor que
se aposenta nos primeiros planos do filme) dá
para os convidados de suas festas de aniversário
todos os anos, quando repetem a pergunta (num pequeno
jogo ritualístico) se ele já estaria pronto
para partir. Madadayo pode ser lido como um libelo
pelo apego à vida mesmo nos seus momentos finais,
o que não pode ser tema mais próprio ao
último filme de um cineasta idoso. Comparar a
figura do professor, constantemente cercado por seus
alunos que o idolatram, com a persona de Kurosawa, chega
a ser quase banal de tão óbvio - mas não
menos adequado por isso. Interessante, porém,
seria pensar em quem seriam estes alunos, se olhamos
para seus filmes anteriores.
Afinal, em 1989, mesmo com todo o reconhecimento que
sua carreira já tinha, Kurosawa só pôde
dar vazão às suas idéias para Sonhos
por conta do financiamento conseguido com a ajuda de
Steven Spielberg - sendo que este já era o quarto
filme seguido dele onde a principal fonte de recursos
não foi japonesa (os outros sendo Dersu Uzala,
Kagemusha e Ran). Não deixa de
ser interessante, portanto, pensar que os alunos do
professor Kurosawa, que se recusa a parar de filmar
(ainda não!), não eram pupilos locais,
japoneses, ou pelo menos não só: e sim
cineastas como Spielberg, Coppola e George Lucas (que
co-produziram Kagemusha) ou mesmo Martin Scorsese,
cuja participação afetiva como ator em
Sonhos (interpretando Van Gogh) pode ser facilmente
lida como uma homenagem ao mestre.
De fato, sob inúmeros aspectos, Akira Kurosawa
sempre foi visto como o mais ocidental dos grandes cineastas
japoneses - e, não por acaso, não só
teve filmes como Os Sete Samurais e Yojimbo
adaptados pelo cinema americano, como também
recebe a reconhecida admissão do próprio
George Lucas de que A Fortaleza Escondida é
uma das principais fontes de inspiração
por trás do primeiro Guerra nas Estrelas.
É claro que o caminho não é de
mão única, e a circulação
dos filmes de Kurosawa pelo Ocidente (sendo que Rashomon
pode ser considerado o primeiro filme japonês
a ser visto de forma mais abrangente pelas bandas ocidentais)
é equivalente ao interesse seguidamente demonstrado
pelo próprio Kurosawa pelas artes e rituais da
sociedade ocidental. Pode parecer só um detalhe
anedótico, mas as aproximações
constantes de Kurosawa com o cinema ocidental, e em
especial o americano, parecem um segundo aspecto muito
rico ao se aproximar destes três filmes que encerram
sua carreira.
Sonhos, por exemplo, tem um verniz que sua co-produção/distribuição
internacional via Warner só parece aumentar,
de uma aproximação com imagens que comporiam
um grande imaginário ocidental sobre o Japão:
desde marcos geográficos (no caso, o monte Fuji),
passando por todo uma ritualística (que junta
expressões como o Teatro Nô ou o Kabuki)
tanto artística quanto social. Sonhos
de fato funciona como uma série de curta-metragens
ilustrando experiências oníricas do próprio
Kurosawa. Vários dos pequenos curtas lidam com
a relação do Homem com a natureza (as
preocupações ecológicas estavam
em alta na época de sua realização),
e vários aproximam o Homem da Morte. Alguns possuem
força dramática autêntica (especialmente
o que se passa na neve, ou o do túnel dos fantasmas),
mas os outros parecem mais ligados a um trabalho com
um cromatismo (não por acaso um deles é
sobre Van Gogh - outro aceno de Kurosawa à importância
da arte ocidental em sua formação, que
aliás foi em pintura) que eventualmente torna
a representação onírica algo redundante
(os sonhos são povoados por fumaças, máscaras,
tempos irreais). De fato, Kurosawa parece o tempo todo
consciente de estar levando o Japão ao olhar
do outro (no caso, seus produtores, inclusive), e o
filme patina um pouco em alguns dos seus episódios
por conta disso.
O oposto exato da exuberância imagética
de Sonhos (que aliás se segue à
já mencionada exuberância de Kagemusha
e Ran) parece dominar Rapsódia em Agosto
e Madadayo, onde a essência nipônica
parece bem menos "for export" - a ligação
com Ozu chega a ser sufocante neste último filme.
Kurosawa lida com a poesia do prosaico, onde "a rotina
tem seu encanto", poderia-se dizer. Madadayo
trata disso com especial obsessão - a principal
linha dramática de suas duas horas e vinte minutos
de duração trata do sumiço de um
gato de estimação e seu efeito quase fatal
sobre o professor aposentado. Seguidamente o filme se
refere a grandes eventos, não só na vida
dos personagens (uma casa destruída em bombardeio),
mas na vida do Japão (a Segunda Guerra) - no
entanto estes acontecimentos sempre estão nas
elipses, no fora do quadro, quase como numa afirmação
de ideais de cinema por Kurosawa naquele momento: o
cinema dos pequenos gestos, dos pequenos afetos, que
seriam os principais. O final, então, é
de uma sutileza exemplar: a volta do velho professor
à sua infância, num sonho final do que
pode (ou não) ser o sono da morte que chega.
Impressionante imagem de fechamento de carreira de um
cineasta.
Mas, o mais bem sucedido filme deste final de carreira
parece mesmo ser Rapsódia em Agosto, e
aí precisamos voltar diretamente para a relação
citada entre Kurosawa (e na verdade, todo o Japão)
com os vizinhos de Oceano, os EUA. O filme começa
a ensaiar a posteriormente radicalizada opção
pela dinâmica das microrelações
familiares, se passando quase todo numa casa do interior,
onde quatro netos passam férias com uma idosa
avó. Kurosawa trata no filme não de um
conflito de gerações, mas exatamente da
possibilidade do entendimento entre elas. Como em Madadayo,
a relação com essa velha senhora (também
ela, aliás, uma professora aposentada) que a
câmera estabelece é a de uma solene admiração
por sua sabedoria, por sua resistência (o plano
da "conversa muda" com a outra senhora exemplifica isso
como nenhum outro), por seu apego à vida em face
de tragédias quase surreais - no caso a bomba
atômica em Nagasaki, que descobrimos ser a cidade
mais próxima da casa, e onde morreu o marido
dela.
É aí que Kurosawa introduz o outro foco
de seu ensaio sobre a possibilidade da aproximação,
senão entre opostos, entre pessoas distantes
(seja em anos, seja em continentes): as relações
Japão-EUA, sob o peso da Segunda Guerra, da bomba
atômica e da posterior "ocupação"
americana (fortemente econômica, mas não
só). Aí surge o personagem de Richard
Gere, um sobrinho até então desconhecido
pela velha senhora (seu irmão emigrara para os
EUA antes da Guerra, e ela nunca mais soube dele), que
vai representar o duplo nacional-geográfico do
papel que exercem os netos no quesito geracional: aquele
que permite a aproximação, a quebra das
barreiras culturais e históricas em troca do
entendimento humano (onde o plano em que os dois olham
a Lua marca o ideal proposto por Kurosawa).
As marcas norte-americanas abundam no filme desde o
início (principalmente nas camisetas que os netos
usam), mas vai mudando de significado após a
fortíssima (mesmo que algo didática) sequência
da ida das crianças à Nagasaki e a visita
aos monumentos da explosão da bomba - não
menos que impressionantes. A partir dali, o olhar delas
sobre os EUA muda, mas a avó será a personagem
que quebra as barreiras criadas pela mistura de constrangimento
hipócrita e inveja econômica subserviente
nas relações entre os países, representadas
pela geração intermediária, a dos
pais das crianças - que recebem olhar firmemente
negativo de Kurosawa.
Poderia-se dizer que os dois filmes finais de sua carreira
reafirmam para Kurosawa uma necessidade de manter viva
memória do passado ao mesmo tempo que não
se perca a urgência de seguir adiante não
importa o quê - idéia que está toda
ela incorporada numa das mais impressionantes imagens
finais do cinema, aquela que fecha Rapsódia
em Agosto com a caminhada da frágil velhinha
contra uma monumental tempestade de vento.
Eduardo Valente
(Sonhos,
VHS e DVD Warner;
Rapsódia em Agosto, VHS e DVD Versátil;
Madadayo, VHS
Look Filmes, DVD Continental)
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