O VINGADOR DO FUTURO
Paul Verhoeven, Total Recall, EUA, 1990

Pulp Fiction

"Nenhuma surpresa você estar tendo pesadelos. Está sempre vendo o noticiário" (Diálogo do começo do filme)

Faz muito sentido que O Vingador do Futuro, o maior e mais popular entre os filmes de Paul Verhoeven – aquele estrelado pelo maior astro (Arnold Schwarzenegger), aquele onde as coisas não param de explodir de forma espetacular (os efeitos eram tão bons à época que os técnicos que votam no Oscar decidiram suspender a categoria e lhe dar um prêmio especial) –, calhe de ser também o mais perverso que ele cometeu. Mesmo a nuvem de oxigênio que deveria dar vida no clímax do filme surge como uma onda de destruição. Adaptações de Philip K. Dick existem aos montes (pelo menos desde que Blade Runner foi elevado à condição de cult), mas esta é a única que funciona, em parte por ser a mais vulgar e vagabunda. E por esta mesma razão a mais séria.

O que Verhoeven faz aqui é na verdade muito simples: ele dá vida a uma fantasia popular. O Vingador do Futuro tem um ritmo muito rápido, salta de uma situação para a outra num fluxo de consciência coletiva. O ponto é que este filme não pertence a Verhoeven ou seus roteiristas (entre eles Dan O’Bannon), mas a cada espectador na platéia. É a nossa fantasia que está ali representada. Que Arnold Schwarzenegger seja o ator menos indicado para interpretar um homem absolutamente normal que pudesse estar ali sentado no cinema é só mais uma das piadas do filme (que como toda a obra de Verhoeven não deixa de ser uma comédia negra). Quentin Tarantino tentou fazer algo similar com fantasias de vingança em Kill Bill, mas o resultado final foi um tanto seguro e controlado demais para ter o efeito que Verhoeven tira daqui.

O Vingador do Futuro é um filme malvado e com orgulho disso. Numa das primeiras cenas de ação, o nosso herói segura um sujeito inocente e o usa de escudo enquanto os caras maus o fuzilam. Verhoeven mostra aquele sujeito que estava simplesmente passando por ali ter o corpo mutilado diversas vezes e isto não significa nada. Pessoas inocentes seguem morrendo ao longo de Total Recall, e o filme não tem tempo para elas. Mas há um estranho efeito acumulativo embutido aí: quanto mais o processo se repete, mais prestamos atenção nele, e claro que isto não significa que quando os violões receberem o que merecem nos sentiremos mal ao comemorar: muito pelo contrário (afinal, esta é a nossa fantasia). Este é o segredo sobre Paul Verhoeven: ele é um velho sujo e safado, mas com consciência. Verhoeven se diverte muito com seus sujeitos maus, com sua violência extrema, com a nudez gratuita, com as piadas de péssimo gosto, com a idéia de eliminar os inocentes e não dar a mínima para isto, mas no fundo ele é um grande moralista (e nisso ele é muito parecido com Brian De Palma). O filme segue de forma esquizofrênica e um tanto hipócrita. Mas sua força em parte deriva justamente da forma como Verhoeven atira em todas as direções, se dispondo igualmente a dar espaço a seus impulsos e a criticá-los.

Acima de tudo, este é um filme profundamente perverso. Seu roteiro é pensado de forma a permitir que o filme coma a si próprio pelas beiradas até autodestruir-se (um estruturalista lacaniano poderia ter uma ejaculação analisando-o, isto se acreditasse que uma superprodução com Schwarzenegger fosse merecedora de sua atenção). Não é por nada que o filme, apesar de todos os seus apetrechos sci-fi, seja no fundo uma trama de espionagem à la John Le Carré (nada de espionagem boa praça à James Bond). Todos os nossos desejos numa fantasia dessas seguem sendo preenchidos. Há até espaço para uma loira e uma morena e nosso herói chega a trocar sopapos com uma delas; O Vingador do Futuro é um filme pronto para agradar a todos os gostos. Se ele apenas parece um artefato pop inocente, é porque Verhoeven sabe como chegar até você: jogar com seu espectador é sua meta final. Seus filmes estão lá para nós dar prazer, mas também para nos atacar. A mente de Verhoeven gosta de nos pregar peças de várias formas. A certa altura, um destes coadjuvantes profissionais que nós sempre vemos interpretando figuras de autoridade dá as caras como um sujeito enviado para fazer as vezes de médico e convencer o herói de que tudo não passou de um sonho. Só que o ator é péssimo; ele é péssimo quando faz generais ou algo similar e é péssimo aqui. Não há como Schwarzenegger acreditar no pobre coitado. Chegamos a ter a impressão de que Verhoeven deve detestar o sujeito, pois a única coisa crível na cena é como ele está nervoso ao final da mesma. O espectador, que adoraria acreditar que o herói tem chances de acreditar no falso médico, fica puto porque foi atirado para fora de sua fantasia. O ator parece puto porque suas limitações nunca foram tão expostas. Os roteiristas também devem ter ficado putos porque esta é a cena que eles escolheram para fazer o subtexto virar o texto, mas Verhoeven a arruinou ao colocar um péssimo emissário para a mensagem. Se for verdade que tudo que um ator faz é potencialmente interessante, este péssimo ator finalmente encontrou um diretor adequado que soubesse o que fazer com as suas limitações. É uma das melhores seqüências do filme.

Peça do nosso inconsciente pop que é, O Vingador do Futuro é um filme extremamente artificial. Todo ele rodado em estúdio, quase cada plano contendo algum tipo de efeito, sempre algum detalhe, algum artifício para chamar a atenção (a direção de arte é um primor de excesso). Marte é uma sociedade fechada, a grande forma de exploração do governo é vender oxigênio.Verhoeven conduz a ação quase como uma revista em quadrinhos. A violência extrema tem sempre algo de cômico (quanto mais sangue, menos real). E qual seria a meta final de um filme tão fake? Claro! Permitir que a realidade entre no plano. Nosso herói premia Marte com uma atmosfera e a câmera abandona o estúdio. Pela primeira vez em quase duas horas tomamos contato com uma cena externa (há uma externa no começo, mas a cena é filmada de forma tão preguiçosa que nunca chega a registrar). O céu realmente está lá, o que não se pode dizer de quase nada do artifício que nos conduziu até ali, com exceção dos atores coadjuvantes (a maior qualidade de Schwarzenegger é justamente parecer nunca estar de fato dentro do plano). O herói beija a latina exótica dos seus sonhos, mas de alguma forma aquele espaço parece nos cortar dos nossos desejos e nos devolver ao mundo dos noticiários. Os créditos sobem e quase podemos ouvir as risadas de Paul Verhoeven.


Filipe Furtado.