Pulp Fiction
"Nenhuma
surpresa você estar tendo pesadelos. Está
sempre vendo o noticiário" (Diálogo
do começo do filme)
Faz
muito sentido que O Vingador do Futuro, o maior
e mais popular entre os filmes de Paul Verhoeven – aquele
estrelado pelo maior astro (Arnold Schwarzenegger),
aquele onde as coisas não param de explodir de
forma espetacular (os efeitos eram tão bons à
época que os técnicos que votam no Oscar
decidiram suspender a categoria e lhe dar um prêmio
especial) –, calhe de ser também o mais perverso
que ele cometeu. Mesmo a nuvem de oxigênio que
deveria dar vida no clímax do filme surge como
uma onda de destruição. Adaptações
de Philip K. Dick existem aos montes (pelo menos desde
que Blade Runner foi elevado à condição
de cult), mas esta é a única que
funciona, em parte por ser a mais vulgar e vagabunda.
E por esta mesma razão a mais séria.
O que Verhoeven faz aqui é na verdade muito simples:
ele dá vida a uma fantasia popular. O Vingador
do Futuro tem um ritmo muito rápido, salta
de uma situação para a outra num fluxo
de consciência coletiva. O ponto é que
este filme não pertence a Verhoeven ou seus roteiristas
(entre eles Dan O’Bannon), mas a cada espectador na
platéia. É a nossa fantasia que está
ali representada. Que Arnold Schwarzenegger seja o ator
menos indicado para interpretar um homem absolutamente
normal que pudesse estar ali sentado no cinema é
só mais uma das piadas do filme (que como toda
a obra de Verhoeven não deixa de ser uma comédia
negra). Quentin Tarantino tentou fazer algo similar
com fantasias de vingança em Kill Bill,
mas o resultado final foi um tanto seguro e controlado
demais para ter o efeito que Verhoeven tira daqui.
O Vingador do Futuro é um filme malvado
e com orgulho disso. Numa das primeiras cenas de ação,
o nosso herói segura um sujeito inocente e o
usa de escudo enquanto os caras maus o fuzilam. Verhoeven
mostra aquele sujeito que estava simplesmente passando
por ali ter o corpo mutilado diversas vezes e isto não
significa nada. Pessoas inocentes seguem morrendo ao
longo de Total Recall, e o filme não tem
tempo para elas. Mas há um estranho efeito acumulativo
embutido aí: quanto mais o processo se repete,
mais prestamos atenção nele, e claro que
isto não significa que quando os violões
receberem o que merecem nos sentiremos mal ao comemorar:
muito pelo contrário (afinal, esta é a
nossa fantasia). Este é o segredo sobre Paul
Verhoeven: ele é um velho sujo e safado, mas
com consciência. Verhoeven se diverte muito com
seus sujeitos maus, com sua violência extrema,
com a nudez gratuita, com as piadas de péssimo
gosto, com a idéia de eliminar os inocentes e
não dar a mínima para isto, mas no fundo
ele é um grande moralista (e nisso ele é
muito parecido com Brian De Palma). O filme segue de
forma esquizofrênica e um tanto hipócrita.
Mas sua força em parte deriva justamente da forma
como Verhoeven atira em todas as direções,
se dispondo igualmente a dar espaço a seus impulsos
e a criticá-los.
Acima de tudo, este
é um filme profundamente perverso. Seu roteiro
é pensado de forma a permitir que o filme coma
a si próprio pelas beiradas até autodestruir-se
(um estruturalista lacaniano poderia ter uma ejaculação
analisando-o, isto se acreditasse que uma superprodução
com Schwarzenegger fosse merecedora de sua atenção).
Não é por nada que o filme, apesar de
todos os seus apetrechos sci-fi, seja no fundo
uma trama de espionagem à la John Le Carré
(nada de espionagem boa praça à
James Bond). Todos os nossos desejos numa fantasia dessas
seguem sendo preenchidos. Há até espaço
para uma loira e uma morena e nosso herói chega
a trocar sopapos com uma delas; O Vingador do Futuro
é um filme pronto para agradar a todos os gostos.
Se ele apenas parece um artefato pop inocente,
é porque Verhoeven sabe como chegar até
você: jogar com seu espectador é sua meta
final. Seus filmes estão lá para nós
dar prazer, mas também para nos atacar. A mente
de Verhoeven gosta de nos pregar peças de várias
formas. A certa altura, um destes coadjuvantes profissionais
que nós sempre vemos interpretando figuras de
autoridade dá as caras como um sujeito enviado
para fazer as vezes de médico e convencer o herói
de que tudo não passou de um sonho. Só
que o ator é péssimo; ele é péssimo
quando faz generais ou algo similar e é péssimo
aqui. Não há como Schwarzenegger acreditar
no pobre coitado. Chegamos a ter a impressão
de que Verhoeven deve detestar o sujeito, pois a única
coisa crível na cena é como ele está
nervoso ao final da mesma. O espectador, que adoraria
acreditar que o herói tem chances de acreditar
no falso médico, fica puto porque foi atirado
para fora de sua fantasia. O ator parece puto porque
suas limitações nunca foram tão
expostas. Os roteiristas também devem ter ficado
putos porque esta é a cena que eles escolheram
para fazer o subtexto virar o texto, mas Verhoeven a
arruinou ao colocar um péssimo emissário
para a mensagem. Se for verdade que tudo que um ator
faz é potencialmente interessante, este péssimo
ator finalmente encontrou um diretor adequado que soubesse
o que fazer com as suas limitações. É
uma das melhores seqüências do filme.
Peça do nosso inconsciente pop que é,
O Vingador do Futuro é um filme extremamente
artificial. Todo ele rodado em estúdio, quase
cada plano contendo algum tipo de efeito, sempre algum
detalhe, algum artifício para chamar a atenção
(a direção de arte é um primor
de excesso). Marte é uma sociedade fechada, a
grande forma de exploração do governo
é vender oxigênio.Verhoeven conduz a ação
quase como uma revista em quadrinhos. A violência
extrema tem sempre algo de cômico (quanto mais
sangue, menos real). E qual seria a meta final de um
filme tão fake? Claro! Permitir que a
realidade entre no plano. Nosso herói premia
Marte com uma atmosfera e a câmera abandona o
estúdio. Pela primeira vez em quase duas horas
tomamos contato com uma cena externa (há uma
externa no começo, mas a cena é filmada
de forma tão preguiçosa que nunca chega
a registrar). O céu realmente está lá,
o que não se pode dizer de quase nada do artifício
que nos conduziu até ali, com exceção
dos atores coadjuvantes (a maior qualidade de Schwarzenegger
é justamente parecer nunca estar de fato dentro
do plano). O herói beija a latina exótica
dos seus sonhos, mas de alguma forma aquele espaço
parece nos cortar dos nossos desejos e nos devolver
ao mundo dos noticiários. Os créditos
sobem e quase podemos ouvir as risadas de Paul Verhoeven.
Filipe Furtado.
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