É
um tanto difícil falar de Veredas sem
apontar para as mudanças em Portugal a partir
da Revolução dos Cravos, e sobre a visão
própria que Monteiro desenha de filme a filme
sobre seu país. Veredas, o filme,
claro, se subtrai a isso tudo, mas é curioso
que um percurso sistemático de tamanha virulência
em relação ao país natal contenha,
quase como um impromptu, essa espécie de elogio
mitológico do solo, da paisagem e do território
português. Nada comum para um homem que diz num
de seus filmes: "Nasci português. Fui enganado."
Mas que se atribua esse instante de otimismo e de loa
mais a uma certa disposição nova por parte
da população do que a uma real entrada
de Portugal numa diferente era de prosperidade e liberdade
tampouco na criação de uma sociedade
não-conservadora , coisa em que Monteiro
jamais acreditou. Para celebrar o fim do salazarismo,
a saída de João César Monteiro
é recorrer a um Portugal mítico, imemorial
e atemporal, que reflete a imemorialidade jovial do
solo e das gentes do solo sem declarar efusões
deslumbradas à sociedade portuguesa como um todo.
É justamente na criação de uma
complexidade do olhar diante do país que nasce
na obra de Monteiro, com Veredas, uma nova etapa
em sua carreira.
Nesse seu terceiro longa-metragem,
João César Monteiro finalmente atinge
uma densidade de relato em imagens que foge do panfleto
e da provocação propriamente ditos (mesmo
que com esse material ele tenha realizado coisas notáveis)
e aponta para um aprofundamento mais nuançado
e rico em matizes do tema que dominará grande
parte de seus filmes, a saber, o "estar vivo em
Portugal". O recurso ao mito nos entrega um povo
português muito diferente daquele que o português
de classe média gostaria de ver exibido. É
um tipo que entoa cantigas chulas, pratica rituais em
que o ser humano parece animalizado, vive nos campos
a tocar cabras, etc. Orgulho nacional, sim, mas um orgulho
nacional que pouco tem a ver com os esforços
de modernização e de aplicação
da sociedade numa "nova ordem política e
econômica" que se esperaria ver.
Em Veredas, Monteiro
faz um caminho muito parecido com aquilo que Pier Paolo
Pasolini fez com sua "Trilogia da Vida" (Decameron,
Os Contos de Canterbury, As Mil e Uma Noites),
realizada na primeira metade da década de 70.
Nela, Pasolini recorre ao primitivismo como forma de
criticar a sociedade tecnológica e o nascimento
de uma cultura homogênea, "de massas",
em que a felicidade reside mais no consumo de bens do
que nos prazeres simples da convivialidade. Ora, em
certa medida esta é uma visão partilhada
por Monteiro não conciliar com uma visão
pró-burguesa ou pró-sociedade contemporânea
portuguesa mas, entretanto, existe também
o ensejo de fazer referência direta a Portugal
e coro a um certo espírito nacional que merece
consideração. A saída nada esquizofrênica
para isso é, ao contrário de tomar clássicos
estrangeiros da literatura, como Pasolini, o jeito é
tomar contos tradicionais portugueses e cantigas populares
e tratá-las um pouco à maneira da "Trilogia
da Vida", com ênfase na paisagem virgem,
numa certa frontalidade naif da câmera,
e em histórias independentes, ou quase, umas
das outras. No entanto, Veredas não é
apenas emulação pasoliniana: as composições
de plano, sempre distanciadas e no mais das vezes fixas,
substituem a sensualidade por um certo distanciamente
mais caro a um Oliveira ou um Straub.
A narrativa que se estabelece
é menos de personagens do que geográfica.
O filme começa na região de Trás-os-montes
e vai até o literal português. O foco do
filme paira mais sobre as cores da paisagem e a riqueza
dos dialetos do que na continuidade da ação,
totalmente fragmentada entre cantigas, panorâmicas
da relva, semblantes dos camponeses e narração
em off. Há duas narrações
principais: uma é o mito de Branca-Flor, filha
virtuosa de um pai-demônio, e outra é a
chegada de um casal na propriedade de um patriarca burguês,
momento em que Monteiro tem a oportunidade de colocar
na boca do padre um discurso vexatório sobre
grevistas que morreram "bem morridos". A sintonia
entre as duas é uma certa tentativa de destronar
o poder paterno: a primeira dá certo, a segunda
não.
Um interlúdio particularmente
curioso é o trecho encenado das Eumênides,
de Ésquilo, tida como a primeira tragédia
de conciliação não-fatal entre
os gregos. Nela, Atena persuade as coéforas,
espíritos da vingança, a abandonarem os
sentimentos de cólera e transformarem-se em eumênides,
espíritos benevolentes que encontrariam pouso
e honra na cidade de Atenas. Aqui, fincada no centro
de um filme como Veredas, a cena atinge um inequívoco
desejo de purgação dos sentimentos de
ódio, além de uma definitiva reconciliação
do artista com sua terra. E o que brota na película,
a despeito da irreverência mordaz com que ainda
são tratadas as instâncias de poder patriarcal,
é toda a fulgurância do cantar e do habitar
de pessoas simples tomadas em seu registro sensível.
A frase final de Pickpocket, de Robert Bresson,
posteriormente parodiada em As Bodas de Deus,
caberia aqui perfeitamente para exprimir o sentimento
de Monteiro com seu país em Veredas: "Que
caminho estranho tive que percorrer para chegar até
você". Uma bela vereda.
Ruy Gardnier
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