A
segunda vez em que me apaixonei
O conceito do "filme favorito" ou "filme
da nossa vida" costuma estar associado a fitas
assistidas em um período de formação
e descobertas no âmbito da cinefilia. Após
algum tempo e no meu caso já se vai tempo
nisso... a tendência é assistir
a novos filmes, e, se for o caso, merecidamente amá-los,
mas descobrir após um certo tempo um filme que
nos proporcione uma revisão de conceitos e idéias
pessoais já mais que estabelecidos é um
fenômeno a meu ver sui generis para um
cinéfilo, por assim dizer, veterano. Bom, foi
justamente isso que me aconteceu ao assistir, em 25
de outubro passado, Vai-e-Vem pela primeira vez.
Em edições antigas aqui na Contracampo
já tivemos oportunidade de divagar sobre uma
sessão de cinema que nos proporcionou algum momento
de descoberta em especial ou sobre o filme que, algum
dia, gostaríamos de ter feito. Hoje, sem qualquer
constrangimento, digo que tais textos poderiam ser reescritos:
Vai-e-Vem é o filme que mais gostaria
de ter feito e aquela sessão no Cinearte 1 durante
a Mostra de São Paulo tornou-se igualmente inesquecível.
Inesquecível por uma série de fatores,
entre eles por ser como começou minha primeira
(e tardia) incursão pela Mostra de São
Paulo.
Partiríamos eu e o companheiro Luiz Carlos Junior
da rodoviária no Rio num sábado às
6 e tal da manhã, pretendendo chegar em Sampa
a tempo de iniciar nossa maratona às 13:00. Maratona
apressada para mim, pois eu só dispunha de dois
dias para assistir o que fosse possível, e Vai-e-Vem era obrigatório. Seria o único
Monteiro que se encaixaria em minha apertada agenda
quando a mostra apresentava uma retrospectiva completa
de seus longas. Pois bem, não lembro por que
razão o ônibus atrasou e saiu mais de uma
hora depois do previsto, o que inviabilizou o filme
das 13:00. Meio putos, chegamos na Augusta, almoçamos,
compramos os ingressos do dia e, após um hilário
episódio na bilheteria do Cineclube Directv que
não cabe aqui contar, finalmente, às 15:50,
Vai-e-Vem. Na sala de projeção
lotada, pura festa, já sentamos junto com o Ruy
e encontramos vários membros da nossa grande
família cinéfila. Tela preta. Paulo Branco
apresenta: Vai-e-Vem. Com menos de 30 minutos
de projeção, se não me falha a
memória após a seqüência do
"Bella Ciao", me virei para o Junior e falei:
"Já valeu tudo o que rolou e o que possa
vir a rolar." Estava em estado de completo êxtase
e deslumbramento.
Eu e Monteiro, Monteiro e eu
E aqui, penso eu, estou falando demais. Mas demais
também fala João Monteiro-De Deus-Vuvu.
Sem pressa, querendo expressar detalhadamente seu rico
pensamento, principalmente quando faz digressões
sobre seus ideais e opiniões diversas. Daí
parte muito de meu fascínio por Monteiro, principalmente
com o Monteiro dos filmes a partir de Recordações
da Casa Amarela: uma quase completa identificação.
O que havia se iniciado como uma admiração
pelo lado um tanto exótico do cineasta-personagem,
que vinha das experiências com A Comédia
de Deus e As Bodas de Deus (e era só
isso que eu conhecia de Monteiro até aquela sessão
de Vai-e-Vem), se transmutou na descoberta de
uma figura extremamente lúcida, coerente e cujas
diversas idéias, gostos e visões de mundo
eram em vários aspectos semelhantes às
minhas. Sustenta-se ainda um mais absoluto respeito
por quem não arreda o pé de tais idéias
e convicções, independente destas poderem
não agradar ou não aos indivíduos
e a sociedade. Uma espécie de "É
isso aí mesmo o que sou, penso e tenho a dizer,
e quem não gostar, foda-se!", já
expresso desde os créditos de seu primeiro longa,
Fragmentos de um Filme-Esmola, em que Monteiro
se apresenta fazendo para a câmera o clássico
gesto obsceno com o dedo médio em riste.
Vale destacar que toda essa aparente agressividade inerente
a Monteiro nada tem de gratuita, do simples, impulsivo
e puro ato de negar de um jovem punk que pouco
conhece do mundo. Mais certeiro seria nem chamar tal
atitude de agressividade, mas sim de uma iconoclastia
intensa de quem muito aprendeu, muito viveu, muito questionou
e concluiu que nessa vida nada existe de sagrado ou
intocável. Monteiro é antes de tudo um
provocador e seus alvos principais parecem ser o conformismo,
a mediocridade e a irracionalidade.
A visão quase completa de sua obra, coisa que
tive a oportunidade de realizar ao longo do último
mês, não faz outra coisa se não
tornar mais claras essas idéias, com as quais,
ressalto, confesso identificar-me sobremaneira. Assim
como também me identifico com sua admiração
pelao binômio indissociável beleza-juventude
feminina e João de Deus ou João
Vuvu, mesmo velhos e nada atraentes, jamais dirigem
sua, digamos, atenção para mulheres feias
ou com mais de 25 anos e também com seu
descaramento ao não ter vergonha de usar com
freqüência um discurso grosseiro ou mesmo
vulgar entremeado a sua notória erudição,
como se ambos fossem antes de tudo complementares. Figuras
assim como Monteiro são espécie em extinção,
daí que, ao saber de sua morte, em fevereiro
de 2003, mesmo ainda não conhecedor de toda sua
grandeza, ter feito na lista interna de e-mails desta
revista o seguinte comentário: "Mas com
tanto filha-da-puta pra morrer!".
Um filme de amor
Voltando então específicamente a
Vai-e-Vem, por que este passou a ser o filme
de minha vida, o filme que gostaria de ter feito? Bem,
acredito ser essencial que um artista, ao construir
uma obra pessoal, consiga colocar nessa obra de forma
clara todas suas intenções e seu íntimo,
no caso do cinema, fazendo chegar às telas um
filme exatamente idêntico àquele que planejara,
o que, sabemos, raramente é possível.
Ora, nesse caso estou apenas supondo, mas, tendo visto
filmes e mais filmes ao longo dos anos, foi Monteiro
com Vai-e-Vem quem me pareceu melhor ter concluído
tal intento. Já sabendo ser ele um radical mantenedor
de suas convicções, ao ver a morte se
aproximar, parece ter tentado e conseguido –
pôr na tela o máximo daquilo que ainda
teria a mostrar ou a dizer. E isso já fica bem
claro na primeira seqüência na praça,
quando João, agora Vuvu, atira um pedaço
de fígado aos passarinhos e, ao ser criticado,
rebate: "Não te metas na vida alheia se
não quiseres lá ficar."
Ainda mais impressionante torna-se o fato de que, mesmo
sabedor de seu destino, Vai-e-Vem é um
completo ato de amor à vida. Nas longas e belísssimas
cenas de viagens de ônibus por Lisboa, vemos o
profundo afeto de João Vuvu por sua cidade, por
seu povo, por uma rotina que não tardará
a ficar para trás. Em suas passagens por praças
e árvores, um lirismo nostálgico, mas
que, como era de esperar em seu autor, nem de longe
tangencia um sentimentalismo fácil. E Monteiro
filma estes momentos como sempre gostou de fazê-lo,
com planos longos e distanciados, mas que nos transmitem
uma intimidade e uma proximidade poucas vezes vistas.
Quanto ao amor pelas atraentes raparigas, neste quesito
João Vuvu mostra-se insuperável. Um certo
conhecido, não admirador de Vai-e-Vem,
definiu o filme como "uma série de papos
intermináveis para tentar comer as mulheres-a-dias".
Sem sombra de dúvida, isso não deixa de
ser verdade, mas nas infinitas situações
que monta para seduzir as várias empregadas domésticas
("mulheres-a-dias" em Portugal) que contrata,
João revela mais e mais seu pensamento e sua
personalidade. Quem mais seria capaz de, mesmo envelhecido,
fraco e adoentado, escovar o chão enquanto a
empregada espreguiça-se sorrateiramente num divã,
ao som do hino anarquista "Bella Ciao",
na mais antológica das seqüências
de um filme que por si só já configura
uma antologia? Qual outro, se não Deus/Vuvu para
atirar pelas janelas, gritando "Antigone with the
wind", as roupas mal-passadas por uma empregada
que nem sabe ligar o ferro, mas trabalha semi-nua, ou
então alimentar outra moça com papas de
milho para compartilhar com ela suas "doces peidocas".
Além do transparente amor, Vai-e-Vem é
um filme, como era de se esperar em Monteiro, banhado
em muito humor e deboche. Em suas quase três horas,
Monteiro direciona sua metralhadora giratória
contra tudo que lhe é possível. Seus longos
monólogos criticam a indústria do cinema,
políticos (de direita ou esquerda), igreja, polícia,
instituições familiares, com um misto
de sutileza e grosseria tão característicos
e aqui melhor explorados que nunca. Apesar de Vai-e-Vem estar longe de ser um filme rancoroso, o autor
não perde a oportunidade de apontar se desprezo
aos medíocres (o filho), os irracionais (o velho
saudoso do imperialismo português que esbraveja
numa das viagens de ônibus) ou mesmo quanto ao
quadro político internacional. Não faltam
até piadas de americano e afegão. Os poucos
minutos em que a foto de George Bush aparece ao fundo
do quarto de hospital são muito mais expressivos
que tudo que o presepeiro Michael Moore já tenha
feito ou venha a fazer.
Mais motivos por que Vai-e-Vem mexeu tanto comigo:
quando João Vuvu, ao contratar uma empregada
comunista, é indagado quanto ao salário
e responde: "Pago pouco para manter acesa a consciência
revolucionária", dei a mais franca gargalhada
desde Quém Vai Ficar Com Mary. E tem também
João Vuvu descrevendo à amiga Fausta sua
versão sobre a vida de Cristo, com toda a irreverência
e iconoclastia a que se tem direito; tem a menina circundando
a praça de bicicleta; tem todos os diálogos
banhados em duplo sentido; tem Urraca, a empregada cabeluda;
tem João Vuvu narrando ao som de um realejo e
num plano de cerca de 15 minutos a história do
filho à policial; tem todas as viagens de ônibus.
E tem os fantásticos 40 minutos finais, melancólicos,
mas nem por isso deprimentes, muito pelo contrário.
Após uma viagem no ônibus onde todos, inclusive
o frágil João Vuvu dançam uma música
ucraniana, o protagonista vê o anoitecer em uma
praça, e regressa no ônibus de sempre em
companhia de um garoto que toca sanfona com um cachorro
pousado sobre ela, em momentos de um beleza indescritível.
Ao despedir-se do garoto, este diz a João Vuvu
que completará 11 anos no dia seguinte, ao que
João responde: "Pode ser que sim, pode ser
que não." É quando João vê
chegar em sua vida a doença de forma definitiva,
e, para um amante da vida como Monteiro, a proximidade
da morte só pode ser retratada pela nada sutil
metáfora de ser enrabado por um caralho gigantesco.
Mas mesmo ao sair do hospital antes da alta e ciente
de sua condição "É
um viver do olho-do-cu desgraçado", diz
João Vuvu o autor/personagem não
se entrega e deseja continuar vivendo enquanto for possível,
não partindo sem antes seduzir a bela enfermeira.
E volta à praça para despejar sobre nós
o seu derradeiro olhar. Só que, mais que o longo
(quase 5 minutos) plano final do olho de Monteiro em
close-up, sobre o qual muito tem sido escrito,
talvez fosse necessário que eu tivesse a oportunidade
de vislumbrar meu próprio olho neste momento,
imerso no fascínio e emoção da
descoberta de um filme mais que marcante.
Gilberto Silva Jr.
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