Existem duas leituras plenamente
possíveis de Tropas Estelares: a primeira
é a de que se trata de uma das mais corajosas
e inflexíveis sátiras sobre o poder de
um Estado-militar e a implantação de uma
cultura da violência e da sanitarização
do mundo a partir de um modelo determinado de "beleza
e ideais"; a segunda, está errada.
É impossível não tratar deste tema
logo no parágrafo de inicial de um texto sobre
este filme, assim como esta é a primeira coisa
que Verhoeven comenta na trilha alternativa de som que
acompanha o ótimo DVD existente no mercado brasileiro.
Isso porque, se as pessoas simplesmente usassem os olhos
e os ouvidos que Deus gentilmente nos deu, não
seria factível imaginar uma outra leitura do
filme que não aquela idealizada pelo cineasta
holandês. No entanto, como parece difícil
demais ver aquilo que está bem óbvio na
tela à sua frente, houve quem chamasse o filme
de "cinema de ação de terceira", criticasse
seus "personagens inverossímeis", ou pior ainda,
considerasse o filme "fascista".
Mas, pensando bem, faz todo sentido. Afinal, o filme
de Verhoeven não mereceria o adjetivo "corajoso"
se justamente não executasse esta que é
a operação que diferencia os grandes filmes
críticos: não apenas satirizar um sistema
(seja ele político, econômico, ou simplesmente
de produção ou estética cinematográfica)
de fora, mas ousar vestir suas roupas para poder criticá-lo
por dentro (Tropas Estelares só faz sentido
porque é um filme americano de um grande estúdio).
E faz ainda mais sentido porque, se estivesse inserido
num sistema sensato e capaz das mesmas leituras que
ele propõe, Tropas Estelares não
teria função. Portanto é imperativo
que o filme seja mal interpretado, que seja desprezado
pelo incômodo que ele representa: afinal ele deixa
nu tudo aquilo que mais se deseja varrer para debaixo
do tapete.
É especialmente assustador assistir o filme após
as desventuras americanas no Iraque. É fácil
imaginar um espectador algumas décadas adiante
na História do mundo, quando as datas atuais
estiverem um pouco mais confusas na memória,
acreditando que Tropas Estelares era uma sátira
direta à política externa do governo de
Bush Jr. Senão, vejamos: o filme apresenta uma
nação (pretensamente mundial, mas claramente
norte-americana) indo em guerra contra um coletivo,
caracterizado por ela como bárbaro e não-humano,
utilizando-se da noção de guerra preventiva,
após um atentado a seu território (e aqui
está uma das mais sutis e deliciosas piadas,
já que a cidade atacada é Buenos Aires,
onde todos falam inglês e parecem americanos).
Mais: uma vez que encontra inesperada resistência
dos bárbaros, começam a reagir não
apenas com o uso de desproporcional força bélica-tecnológica,
como também validando expedientes como a tortura
de prisioneiros. Hmmmm... Se soa familiar e quase premonitório,
Verhoeven explica na trilha de comentários o
que fica bem óbvio: todos os regimes autoritários
e imperiais são parecidos. Portanto, pode-se
dizer que o filme trata dos nazi-fascistas ou dos norte-americanos
no Vietnã com a mesma facilidade (e deve-se notar
a mais que proposital alusão aos primeiros, com
os figurinos semelhantes aos da Gestapo que usam os
oficiais do exército no filme).
Mas a força do filme de Verhoeven não
está apenas num possível discurso incisivo
contra este Estado bélico (nele, há os
civis e os "cidadãos" - que são apenas
os que se alistam no Exército): está,
acima de tudo, na forma de seu filme. Alternando momentos
inspirados nos filmes de "propaganda" da Segunda Guerra
(as passagens dos telejornais nunca são menos
do que antológicas com sua alusão ao fascínio
pelas armas ou à pena de morte) com referências
diretas a outros filmes críticos (o campo de
treinamento do Exército parece um Nascido
para Matar em viagem de ácido), o que Verhoeven
melhor consegue fazer é passar uma idéia
absurda de uma sociedade onde a violência e o
sangue são adorados, são a norma. Neste
sentido é especialmente assustador todo momento
após as batalhas (que são filmadas como
carnificinas sem sentido ao ponto do surrealismo), quando
os soldados aparecem sempre exultantes e sorridentes,
não importando o horror que possam ter passado
ou os companheiros que possam ter perdido.
Este assunto abre as portas para duas das mais despropositadas
críticas feitas ao filme: seus supostos "maus
atores" e seus "efeitos vagabundos". Ora, se o espectador/crítico
não tivesse percebido as subversivas intenções
de Verhoeven em mais nenhum aspecto do filme (difícil
de acreditar), na escalação do elenco
deveria estar a chave final. Com sua aparência
plastificada, com sua representação forçada
do "melting pot" norte-americano, o elenco de Tropas
Estelares é talvez o elemento mais satírico
do filme inteiro - e neste sentido suas atuações
são brilhantes. Não custa lembrar que,
para além das referências citadas acima,
Verhoeven faz questão de iniciar seu filme como
uma típica comédia romântica de
"high school", com direito a cenas de aulas (onde se
ensina aos alunos que civilização é
igual a violência), partidas esportivas, paqueras
e rivalidades amorosas. Já quanto aos efeitos,
Tropas Estelares faz referência direta
aos mais vagabundos filmes de invasão alienígena,
ao mesmo tempo que tem alguns efeitos muito bem cuidados
(nas naves, etc). E seus "bugs" são um dos melhores
achados do filme: completamente irracionais (com exceção
ao "brain-bug" e sua fronte em forma de vagina), implacáveis,
em tudo "desumanos". Para que um personagem possa dizer:
"você está tentando ser um herói?";
"Não, eu só quero matar alguns bugs".
Diálogo este que, aliás, prova que Tropas
Estelares não é só discurso
crítico: é diversão incessante.
Verhoeven nos choca e nos faz morrer de rir a cada cena,
e um dos aspectos mais impressionante do filme é
sua noção de ritmo, assim como seu roteiro
quase impecável onde cada cena cumpre uma função
específica e brilhante dentro do discurso do
filme. Cada detalhe de figurino e direção
de arte, cada frase e expressão usada nos diálogos,
tudo em suma parece possuir não uma nem duas,
mas infinitas camadas de leitura, sátira, subversão.
Tropas Estelares, não há medo em
dizer, é um dos grandes filmes americanos dos
anos 90. Sorte de quem entendeu.
Eduardo Valente
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