Esse segue aqui com três
filmes do final da década de 70, que recebem
aqui alguns breves comentários. observações
sobre três obras curtas que, se não despontam
como referências centrais na obra do diretor,
carregam em si elementos, ensaios de idéias,
obsessões, referências de um trajeto de
cinema ainda em sua primeira década de erupção.
A Mãe (1978)
Baseado num conto tradicional português, A
Mãe (ou Amor de Mãe) é
cinema de teatro mais-que-filmado, cantado com irônica
secura. Gestos extremos são narrados em implausível
naturalidade, praticando a ironia através de
um fingir-se. A narrativa dinâmica, em que cada
seqüência nos entrega um novo elemento/evento,
dá ao filme o tom parabolar das curtas narrativas
de cunho moral – numa seqüenciação
que varia entre tableaux-vivants e tempos mortos,
entrecortados por uma trilha sonora tragicômica,
tom de um cinema onde o humor e a acidez se misturam.
Se aqui não aparecem tão claramente as
falas-provérbios típicas de Monteiro ou
as marcas de seu pôr-em-cena em desarranjo, já
está seu tom de afronta, de provocação
da plausibilidade através de personagens que
não conhecem limites para seus atos. A narrativa
curta-e-grossa, do filho malquisto que mata a mãe
e passa a profanar seu túmulo em busca dos objetos
com ela enterrados a cada vez que a desenterra, nos
leva ao personagem da "ovelha negra", do homem mal-visto
e de atos improváveis, que ignora as diretrizes
da boa conduta e vive na contra corrente de toda boa
educação. Ladrão de vacas, fingido,
dissimulado, o clichê do anti-herói é
tratado por Monteiro com nobre simplicidade, dando de
comer a seus filhos, tramando seus pequenos atos com
sua mulher (uma espécie de corvo a grunhir idéias),
desenterrando o corpo da mãe, trocando a caça
alheia pelo cadáver. A adoração
ao resto humano, a sobra do humano, esse cuidado-fetiche
que sepulta corpos inertes em torno de lençóis
brancos e cobertores de renda. Uma veia a um só
tempo anticlerical e religiosa, marca da postura ambígua
que Monteiro imprime diante do divino, do sagrado (ainda
que sempre contrário a toda normatização
do que é divino). Há um ridículo,
um quê patético, onde Monteiro explora
os gestos e os rituais, transformando a narrativa folclórica
da mãe transformada em assombração,
numa provocação ao culto-ao-dejeto, ao
lugar da mãe como essa figura sagrada e perpetuada
como uma efígie da ordem. O plano final do filme,
um monge que se depara com o cadáver "montado"
num cavalo (e se põe de joelhos a rezar histericamente),
é o ponto final nessa brincadeira de genealogia
do mito, da fábula, do lugar do sagrado. A frugalidade
com que o filho comete seus pequenos "delitos" e as
conseqüências cumulativas de seus atos, a
forma como o mito se instaura pelo acúmulo de
necessidades materiais mal-resolvidas, faz desse A
Mãe um exemplar claro do olhar de Monteiro
sobre os cânones, e as formas como eles se fundam
numa narrativa de "peças pregadas", de enganos.
Imagens que partem do banal, ultrapassam o implausível
e repousam sobre a santidade patética-ingênua
da "boa ordem das coisas".
Amor das Três Romãs (1978)
Uma fábula da resistência do que se sente.
Após a imagem de uma romã aberta, vermelha
e úmida, referência direta ao sexo feminino,
o filme "começa" por um único plano externo-realista,
que abre o lugar para um cenário vazio, de farsa
e brincadeira. Um elenco de adolescentes para uma narrativa
juvenil, onde atores se mostram pintando, numa parede
branca, os cenários em que os personagens irão
habitar. Não há um espaço rígido/fixo
do pôr-se em cena, mas um lugar vazado por um
olhar que é, ao mesmo tempo, para a cena e para
a figura daquelas jovens atrizes que brincam de narrar.
Há um erotismo sutil na forma como Monteiro filma
as meninas trocando de roupas por trás de biombos,
uma malícia ingênua, entrecortada pelo
barroquismo da trilha sonora e interpretações
quase "desinteressadas". Há uma infantilidade
enérgica na forma como aqueles atores "inexperientes"
contam a história de amor de um jovem príncipe
por uma camponesa, e a forma como ele é enganado
por um espírito da floresta (a "preta") que seduz
a ambos, tomando seu lugar ao lado do príncipe.
A cenografia de teatro infantil (tanto nos figurinos
e nos cavalos de madeira) se completa pelas cartelas
de desenhos fixos que sintetizam/espelham algumas passagens
da narrativa – sobrepondo camadas de significantes.
Ao final da narrativa, Monteiro transforma o desfecho
clichê do "final feliz", num elogio ao sentimento
amoroso enquanto gesto e lugar absoluto, resistente,
forte diante das artimanhas, retomando uma fala do início
do filme ("Ele pensa, logo resiste") num misto de simplicidade
fabular e peso de espírito. O elenco se apresenta
ao final, como numa peça teatral, dizendo seus
nomes e curvando a cabeça. Os dois jovens que
representam os enamorados fecham o filme, primeiro saindo
cada um por um dos cantos do quadro, depois retornando
e se encontrando no centro da tela, novamente como os
"personagens": "Os amorosos nunca se separam" diz a
narração em tom proverbial. Um filme que
preza por um certo desleixo e uma experimentação
irregular, um exercício da improvisação-declamada,
de cenas marcadas e breves flagrantes de "bastidores"
(é impossível não lembrar de Julio
Bressane ao longo de todo o filme), em que a trilha
sonora frenética vêm e vai, nos convidando
a olhar as imagens numa distância (adoravelmente)
perdida entre a fruição do conto e a reflexão-de-cena,
onde a falsidade gritante de gestos e imagens é
meticulosamente desenhada para alcançar um lugar
verdadeiro e irrepresentável.
"O amor é uma coisa bastante embaraçosa.
Pelo menos da forma como eu o entendo: como algo de
absoluto. As coisas que aprendemos na vida podiam levar-nos
a relativizar o amor. Isso se eu tivesse algum bom senso
na cabeça. Não é o caso. Há
uma teimosia em entender o amor como coisa absoluta.
Sendo absoluta, não é possível.
Ficamos com a idéia." João César
Monteiro
Dois soldados (1979)
Um delírio seco, uma fábula de guerra.
O filme se inicia num perfil mascarado de um soldado
em meio à fumaça, a trilha sonora marchante
e debochada agita o plano estático. Seguimos
para planos de dois soldados solitários a caminhar
por terrenos desertos, cobertos de folhagem ressecada.
Aqui a edição de som é austera,
ouvindo-se passos e silêncios, numa seqüência
de caminhadas sem rumo, sob o som distante de disparos
de armas de fogo. São dois desertores, e um deles
sintetiza o motivo de sua deserção: "...o
que importa é estar vivo!". Seguem-se as caminhadas
desse realismo monotônico, para, logo adiante,
Monteiro nos trazer a ruptura: num gesto extremo, um
dos soldados aceita ter os olhos arrancados pelo outro
em troca de um "naco de pão". De referência
surrealista direta, misturando o absurdo-do-real da
guerra a esses arroubos de fantasia, inicia-se o perambular
do soldado cego, se arrastando sobre as pedras próximas
a um riacho, se alimentando dos restos de pão
que o outro lhe deixa. Diante da fome, do vazio do corpo,
os olhos são sacrificados. E, a partir daí,
o filme se encontra em verdadeiro delírio, fantasiando
o lugar desse país estrangeiro não identificado
(metáfora direta às guerras coloniais
portuguesas), onde um soldado cego encontra uma árvore
mágica, capaz de lhe devolver a visão
e torná-lo rico! Um tom de fábula obscura
toma o filme quando bonecos gigantes, música
e alegria, invadem as ruas da pequena cidade desse suporto
reino, comemorando a vitória sobre os "invasores"
e o retorno do rei doente (salvo por um certo estrangeiro...).
Os dois soldados se reencontram, e aquele que antes
havia cegado o parceiro agora quer ser rico e importante
como o soldado não-mais-cego (vestido de terno
e maleta yuppies...). Seguem-se as festividades que
anunciam a vitória desse "lugar distante" (que
se aparenta mais com Portugal do que com terras africanas...),
nos remetendo também à vitória
dos próprios portugueses sobre os invasores espanhóis
à época da fundação de Portugal,
séculos antes – misturando-se assim invasores
e invadidos num mesmo festejo. Cria-se esse enredamento,
um redemoinho, onde vitórias e derrotas portuguesas
marcadas na história parecem estar misturadas,
de ponta-cabeça, e não há referências
que justifiquem qualquer ação: seja a
guerra, seja a derrota, seja a vitória, seja
a festa. Ao ver seu ex-colega enriquecido, o outro soldado
sai em busca da árvore milagrosa, desse "El Dorado"
que resolveria todos os seus problemas, e acaba sendo
morto no lugar do amigo. Uma fábula ácida,
uma crítica poética às guerras
coloniais portuguesas e uma afronta direta às
supostas razões e espíritos nobres das
batalhas – transformadas aqui num delírio de
poder e dominação, encenada em tom de
teatro filmado e falas mais "citadas" do que ditas (os
atores, por vezes, nos lembram fantoches). Ao final
do filme, o que resta, é um quase nada que se
possa ser dito: voltamos a um close-up do soldado
por trás da máscara de gás, encarando
a câmera por um longo minuto (os olhos por trás
de visores embaçados), sob a trilha sonora marcial
e as nuvens de fumaça que tomam a imagem, vindos
daquele (e de tantos outros) campo de guerra. Talvez
o filme de discurso mais diretivo da obra de João
César Monteiro – ainda que bem distante de qualquer
"ideologismo" de prateleira, como bem convém
ao sentido de liberdade, presente em toda a sua obra.
Felipe Bragança
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