OS SUSPIROS LONGOS DOS VIOLÕES DO OUTONO
Resposta à pergunta "Por que você faz filmes?"

"Por que você faz filmes?"


Lisboa, 8 de setembro de 1991

Caro Jacques,
Respondo imediatamente à tua pergunta.

No momento, fico deitado na cama a olhar o teto branco, apesar de suas manchas de umidade. Eu imagino: um dia vai ser preciso tirar essas manchas e repintar o famoso teto. Sempre de branco, claro. Às vezes a minha mão direita, a que escreve, entra em meu campo de visão e, então, eu olho para ela, eu me deparo com ela. Ela está lá, diante de mim, e eu a vejo com muita nitidez, mesmo que eu não tenha nenhuma necessidade dessa onipresença: eu a conheço há muito tempo e tenho o privilégio de tocá-la ou de coçá-la, se tiver a vontade. É uma mão própria, delicada, sensitiva demais à flor dos dedos, mesmo que o menor dentre eles, aquele que chamamos cotidianamente de dedinho, seja torto, tendo se recuperado mal de uma antiga arruaça. Se ela carregasse em si um pouco mais de nervos ou de energia, poderíamos confundi-la com a de um pequeno músico ou de um pequeno ladrão. No entanto, é certo que apesar de tudo ela está um pouco velha e, sem querer mencionar certos sintomas artríticos, não muito bem cuidada. Mas isso não podemos dizer que seja por culpa dela. Fui eu que compreendi tarde demais que a tarefa primordial era precisamente a de cuidar direito dela. Eu compreendi isso quando vi um filme em que havia um senhor muito distinto que carregava desajeitadamente (a falta de jeito, sabemos, é sempre cômica) sobre suas costas algumas latas de película. Tarefa pesada, penosa, confessemos ou, ao menos, suspeitemos, mesmo que no fim o tal senhor tenha conseguido (por que, Sísifo?) entregar seu fardo (ou sua cruz) a um destinatário misterioso, incerto. Tão misterioso e tão incerto que podemos mesmo perguntar se haveria de fato um verdadeiro destinatário, pois o carregador das latas de película, a partir do momento em que ele chegou ao fim de sua via crucis, não tinha mais contas a nos prestar.

Voltando à minha mão direita, tudo que posso assim dizer a você é que ela ainda está aqui, diante de mim, e como tenho sempre por princípio não escrever com ela uma linha além dos dados de minha própria consciência, podemos deduzir que minha mão não é mais educada, que ela desaprendeu tudo, que em suma ela não sabe mais escrever.

É verdade que dediquei mais tempo, muito mais, a preparar meu assassinato do que a preparar meus filmes, e, o que é curioso é que continuo a pensar que meu assassinato é muito mais importante para mim, e por extensão para o cinema, do que meus filmes. Digamos, por fidelidade a uma velha crença socrática.

Outrora, pensava-se o cinema em comum. Eu sei que é discutível. Podemos dizer, como Baudelaire, que se pensamos em comum, não pensamos. Godard entendeu isso desde o começo, pois ele se matou ou tornou-se "críptico" como estratégia de sobrevivência. Evidentemente, ele não queria ser assassinado. Depois, ele logo encontrou uma saída genial: a de ser verdadeiramente genial. É preciso reconhecer que outrora havia pelo menos alguma circulação, nada desprezível, ao contrário, mesmo se em Lisboa tentava-se, em epígonos provincianos, um "remake", às vezes mal digerido, do filme que se fazia em Paris: o cinema de uma admirável geração crítica, que se abrigava em torno de uma revista chamada Cahiers du Cinéma. Ora, o que aconteceu foi que, por razões que me ultrapassam e que ultrapassam também a esfera de minha competência e de minha boa educação (eu cultivo de forma maníaca a polidez, e isso é novo), essa circulação foi curto-circuitada e a pequena ampola não funciona ou não existe mais. Eis o reino das trevas, ao menos para mim. Digamos que, a partir daí, todos viramos mutuamente as costas e, de uma forma semelhante, o olimpiano de um Olimpo aliás inexistente, sou sempre eu. Questão de estilo. Eu não faço o gênero choramingas ou "pleurnichon", mas é uma pena. I’m sorry por vocês, porque pra mim tudo bem. Aliás, eu nunca fui a sucursal. Eu era apenas uma orelha, uma pequena atenção pouco dedicada. Diria mais: finalmente, é quando nos damos conta que perdemos para sempre a confortável teta de sua bela – e talvez inteligente demais – ama de leite gaulesa que as coisas começam a tornar-se interessantes. É quando se é verdadeiramente órfão, o desprovido, face a face com seu extremo, nudez integral, uma nudez que tu percebes pela primeira vez, porque antes recusavas admitir a todo custo que tua nudez é o único bem que possuis na terra. Cayrol escreveu muito bem sobre isso. Terror. Pânico. Tudo que queres (é a pequena história íntima) mas é aí, nessa extremidade que se tem o pressentimento do ünico, que se ganha o direito sagrado de filmar.

Tivemos os cravos de 74. Se todo mundo pudesse filmar, eu poderia também. Na época eu queria minha camerinha. Hoje penso de forma diferente. Creio que para filmar eu nem mesmo preciso de uma camerinha: preciso de um pouco de luz em minha cabeça e pronto, mas, na época, quase todo mundo me dizia que os filmes que eu fazia eram uma merda, que eu não tinha qualquer talento e sobretudo (e isso eu não suportava) que era preferível que eu escrevesse, porque eu escrevia incrivelmente bem. Eu argumentava debilmente que eu adorava fazer merdas desde que elas fossem as minhas, que eu me lixava para o talento e não sei mais o quê, mas para ser franco eu comecei a ficar com inveja do escriba Monteiro, então eu decidi matá-lo para que o descendente pudesse filmar livremente.

Moro num país de pessoas céticas. Duvidam de tudo, inclusive da própria existência do país. Não imagino um francês capaz de colocar-se de forma séria a questão: a França existe? Entretanto, essa é uma pergunta que volta e meia aparece por aqui. O cinema português com seu cortejo grotesco e megalomaníaco de trinta gênios (eu entre eles) – uma desproporção em relação à história do cinema – existe? O fascismo português, no fundo, existiu? (Se, sobre esse assunto, eu começo a escrever que os verdadeiros intelectuais desse período eram os guardinhas da polícia política vão me internar num hospício.) Será que eu, que nunca nasci, vou morrer? Paradoxalmente, à guisa de consolo, nós nos tranqüilizamos. Fiqueis calmos: oito séculos de História vos contemplam. Contanto que se fale disso ou que se tenha falado, eis a prova de que tudo isso existe ou existiu. Sim, eu entendi, mas a reflexão portuguesa sobre essas questões nunca foi muito brilhante ou metódica. Todas as nossas dúvidas são um pouco selvagens. A desgraça começou quando a Inquisição teve o brutal apetite de colocar os pais de Spinoza na fogueira. Felizmente eles tomaram o caminho da fuga, mas o pensamento português se fodeu a partir dessa época. Que Spinoza possa ter crescido e organizado sistematicamente seu pensamento em um país onde as vacas caminham em toda impunidade pela paisagem campestre, eis uma coisa que nenhum português famélico jamais aceitará. E, no entanto, produzimos de tempos em tempos alguns exemplos... É surpreendente para todo mundo, mas eu sou uma caixinha de surpresas, se ouso dizer que a reflexão cinematográfica portuguesa mais profunda e mais original foi feita por dois poetas: Carlos de Oliveira e Herberto Helder. O primeiro morreu há dez anos; o segundo ainda está entre nós. Às vezes nos encontramos pra beber algumas canecas. Conversamos muito pouco. É preciso acrescentar que essa confissão e rigorosamente pessoal, mas já que eu acabo de emiti-la ela perde seu caráter confidencial. Curiosamente, eles jamais permitiram que se fizesse um retrato deles. Eles sempre acreditaram que o retrato é mundano e policial. Não estamos longe da crença dos índios, segundo a qual aquele que deixa que façam seu retrato entrega também sua alma. Eu, ao contrário, adoro os falsos retratos ou os retratos premonitórios, como o de Apollinaire. Digo isso só por dizer. Cada um é livre para fazer aquilo que lhe agrada, é o que dizem. Quanto à liberdade, estou pouco me fodendo. Até no cinema. Nunca fiz nenhuma reivindicação desse tipo. Da liberdade, eu gosto muito, mas para fazer alguma coisa com ela. De outra forma, me fodo tranqüilamente. Tomemos um hino, por exemplo, e eu te juro que é o meu preferido, aquele que começa "Allons enfants de la Patrie...". Eu desconfio: vamos aonde? Sinceramente, eu gostaria muito de ir, mas será que eu tenho o direito de não ir? Então, se é assim, fica um pouco tirânico, e eu não suporto a tirania da liberdade. Aliás, é gente como o Wenders que quer ser livre ("Arbeit macht frei"), não eu. Eu detesto o trabalho ("lavorare stanca") e eu não quero nada. Ah sim, eu quero dormir e eu durmo muito bem, talvez até demais. Graças a Deus, mas eu tenho realmente necessidade de dormir. Às vezes, vendo filmes, eu tenho problemas de metabolismo quando se passa repentinamente do dia à noite, só isso. Se eu fosse insone, num belo dia eu ficaria louco como Nietzsche, completamente louco. Dormir é um velho truque que eu aprendi com Tolstói mas também vendo Rossellini. Outro dia, li no Libération uma coisa aterrorizante. Um diretor francês reclamava que era um insone crônico. Então eu disse para mim mesmo: mas esse pobre senhor, quando ele chega no set de filmagem para fazer seu trabalho, deve morrer de sono, então é inumano que ele não possa pedir licença para repousar um pouquinho. É o que todo mundo faria em cirscunstâncias semelhantes. O ideal é conseguir chegar num set com o frescor de uma rosa e a agilidade de um verdadeiro caçador diante de sua presa. Para melhor poder saudar a beleza do mundo, claro. E a beleza do mundo, sabemos, é a beleza do cinema.

João César Monteiro
(publicado originalmente no catálogo dos Quintos Encontros Cinematográficos de Dunquerque, no quadro da primeira retrospectiva dedicada à obra de Monteiro, sob a tutela de Jacques Déniel. O texto foi republicado na edição nº50 de Trafic. O texto foi escrito diretamente no francês. A tradução é de Ruy Gardnier)