SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Portugal, 1969

No belo livro A Anarquia da Fantasia, Rainer Werner Fassbinder explica, a respeito da adaptação cinematográfica do romance Effi Briest, não ter se preocupado em contar a história da personagem, e sim em mostrar como Fontaine, através do processo da criação artística, pensa o século XIX, uma vez que, ao se apropriar do escritor, ao se colocar em seu lugar, é o próprio Fassbinder quem reflete acerca do mundo em que vive.

No curta-metragem Sophia de Mello Breyner Andresen, João César Monteiro não biografa a poeta portuguesa (aliás recentemente falecida), da mesma forma que Fassbinder não narra os percalços de Effi Briest, pois Sophia de Mello – que o diz de modo textual no filme – detesta biografias: mais importante que a vida do artista são suas criações, as quais possuem a capacidade de revelar a beleza do mundo. Assim, com o cinema, João César Monteiro procura, por meio da ode à liberdade, a exuberância do real, busca que se encontra no cerne da obra poética da homenageada.

Plano emblemático sobre a relação entre arte e realidade, presente no filme: o travelling que abandona o interior da gruta em direção à praia, das trevas para a luz. Trata-se, por conseguinte, da subversão da alegoria da caverna platônica, na qual a arte é a ilusão que condena os homens a não enxergar o mundo das idéias transcendentes, atados que estão aos enganadores sentidos corporais. Para João César Monteiro, ao contrário, a arte é verdadeira, visto que somente ela permite o contato com o real, agora entendido, em oposição a Platão, enquanto lugar privilegiado onde ocorre a experiência sensível. Em Sophia de Mello Breyner Andresen, a apreensão da realidade passa, necessariamente, pela mediação do corpo, seja fora da tela, na platéia que assiste ao filme, seja dentro da tela, nos personagens que se divertem na areia da praia ou no mar.

Se a arte expressa a verdade, o cinema, no entanto, "mente a vinte e quatro quadros por segundo", nas palavras de Brian De Palma, visto que está confinado a convenções narrativas e a clichês imagéticos determinados pela produção industrial dominante, que sufoca as cinematografias menores ao redor do planeta. A fim de vencer a camisa de força do cinema hegemônico, João César Monteiro não cessa de questionar seu próprio filme, de colocá-lo em dúvida permanente: nos créditos, lidos pela voz do cineasta (que abandona a invisibilidade pressuposta pela forma clássica), na narrativa episódica e fragmentada (que acompanha Monteiro no restante da carreira), na negação do mero relato biográfico da personagem em favor da compreensão de sua poética libertária, nas diversas brincadeiras que envolvem Sophia de Mello e os filhos, quando se contesta, inclusive, a leitura impostada que a artista faz de um de seus poemas.

Assim como ironiza a seriedade e o formalismo nos quais se enclausura a poesia, João César Monteiro brinca com os códigos estabelecidos do cinema, pois apenas através da liberdade dos sentidos, ou seja, destas superfícies de contato com a realidade ainda inocentes, não enrijecidas pelas representações formuladas a priori, torna-se possível captar a beleza do mundo que se apresenta ao corpo. É a imagem do mar, recorrente tanto no filme quanto na obra da poeta, e que encerra Sophia de Mello Breyner Andresen: matéria amorfa, que se confunde com o horizonte, as águas do oceano são infinitamente transformáveis, na medida em que não estão presas a forma alguma.

Paulo Ricardo de Almeida