No belo livro A Anarquia
da Fantasia, Rainer Werner Fassbinder explica, a
respeito da adaptação cinematográfica
do romance Effi Briest, não ter se preocupado
em contar a história da personagem, e sim em
mostrar como Fontaine, através do processo da
criação artística, pensa o século
XIX, uma vez que, ao se apropriar do escritor, ao se
colocar em seu lugar, é o próprio Fassbinder
quem reflete acerca do mundo em que vive.
No curta-metragem Sophia de Mello Breyner Andresen,
João César Monteiro não biografa
a poeta portuguesa (aliás recentemente falecida),
da mesma forma que Fassbinder não narra os percalços
de Effi Briest, pois Sophia de Mello – que o diz de
modo textual no filme – detesta biografias: mais importante
que a vida do artista são suas criações,
as quais possuem a capacidade de revelar a beleza do
mundo. Assim, com o cinema, João César
Monteiro procura, por meio da ode à liberdade,
a exuberância do real, busca que se encontra no
cerne da obra poética da homenageada.
Plano emblemático sobre a relação
entre arte e realidade, presente no filme: o travelling
que abandona o interior da gruta em direção
à praia, das trevas para a luz. Trata-se, por
conseguinte, da subversão da alegoria da caverna
platônica, na qual a arte é a ilusão
que condena os homens a não enxergar o mundo
das idéias transcendentes, atados que estão
aos enganadores sentidos corporais. Para João
César Monteiro, ao contrário, a arte é
verdadeira, visto que somente ela permite o contato
com o real, agora entendido, em oposição
a Platão, enquanto lugar privilegiado onde ocorre
a experiência sensível. Em Sophia de
Mello Breyner Andresen, a apreensão da realidade
passa, necessariamente, pela mediação
do corpo, seja fora da tela, na platéia que assiste
ao filme, seja dentro da tela, nos personagens que se
divertem na areia da praia ou no mar.
Se a arte expressa a verdade, o cinema, no entanto,
"mente a vinte e quatro quadros por segundo",
nas palavras de Brian De Palma, visto que está
confinado a convenções narrativas e a
clichês imagéticos determinados pela produção
industrial dominante, que sufoca as cinematografias
menores ao redor do planeta. A fim de vencer a camisa
de força do cinema hegemônico, João
César Monteiro não cessa de questionar
seu próprio filme, de colocá-lo em dúvida
permanente: nos créditos, lidos pela voz do cineasta
(que abandona a invisibilidade pressuposta pela forma
clássica), na narrativa episódica e fragmentada
(que acompanha Monteiro no restante da carreira), na
negação do mero relato biográfico
da personagem em favor da compreensão de sua
poética libertária, nas diversas brincadeiras
que envolvem Sophia de Mello e os filhos, quando se
contesta, inclusive, a leitura impostada que a artista
faz de um de seus poemas.
Assim como ironiza a seriedade e o formalismo nos quais
se enclausura a poesia, João César Monteiro
brinca com os códigos estabelecidos do cinema,
pois apenas através da liberdade dos sentidos,
ou seja, destas superfícies de contato com a
realidade ainda inocentes, não enrijecidas pelas
representações formuladas a priori, torna-se
possível captar a beleza do mundo que se apresenta
ao corpo. É a imagem do mar, recorrente tanto
no filme quanto na obra da poeta, e que encerra Sophia
de Mello Breyner Andresen: matéria amorfa,
que se confunde com o horizonte, as águas do
oceano são infinitamente transformáveis,
na medida em que não estão presas a forma
alguma.
Paulo Ricardo de Almeida
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