SILVESTRE
Portugal, 1981

Uma investigação sobre as raízes do que significaria "ser português": este parece ser o espírito do trabalho ao qual João César Monteiro se entregara a partir de meados da década de 1970, ciclo este que se encerraria com Silvestre. Não que essa questão viesse se esvaziar nos filmes posteriores, muito pelo contrário. Mas tanto no longa-metragem anterior, o soberbo Veredas, como nos três cutras que se interpuseram, Monteiro promove um retorno a um passado histórico e mítico, partindo de contos ou histórias tradicionais, muitas vezes transmitidos oralmente por anos a fio, mas também de autores clássicos, como Ésquilo, demarcando sua tão característica faceta de mesclar o popular (ou muitas vezes até mesmo o chulo) ao erudito.

Em Silvestre, Monteiro vai a um cenário medieval para contar uma história, como anunciada pela canção que abre o filme, de honra e guerra. Estreando em cinema aos 15 anos, Maria de Medeiros interpreta Sílvia, uma donzela prometida em casamento a um rico proprietário de hábitos grosseiros. Quando o pai se ausenta para convidar o rei às bodas, recomendando a Sílvia e sua irmã que não abrissem as portas, a protagonosta se apieda de um peregrino e dá-lhe pouso. Este se revela uma espécie de emissário demoníaco que tenta seduzir Sílvia; ela o afugenta, decepando sua mão direita. O estranho retorna na noite do casamento, exigindo a mão da jovem. Leva-a a seu castelo, donde ela foge, mas o estranho sequestra o pai da moça, dando início a uma guerra. Sílvia parte para o combate, fingindo-se de homem, e, como pode parecer inevitável, apaixona-se por seu comandante. Ao ser ferida em uma batalha e ter sua identidade revelada, Sílvia é levada à presença do rei, quando o estranho reaparece para a conclusão da trama.

Temos, portanto, no roteiro de Monteiro uma espécie de súmula ou compêndio de temas caros ao imaginário medieval: a submissão aos códigos sociais, seja nas relações familiares, políticas ou amorosas, passando por um retrato sobre a posição da mulher. As personagens também podem todos ser identificados como arquétipos: donzela, pai, estranho, comandante. Quanto às situações de guerra, então, nem se fala. Não falta sequer o combate contra um dragão, que é morto pelo estranho. Mas a figura mais forte é mesmo Sílvia/Silvestre (sua identidade masculina), personagem depositária de toda uma leva de mulheres guerreiras, seja de vultos históricos ou literários presentes nas mais diversas culturas, como Joana D’Arc, Diadorim ou a Princesa Mononoke.

Todo este trabalho com uma temática arquetípica, no entanto, acaba distanciando um pouco Silvestre da linha mestra de Monteiro em retratar a alma portuguesa. A temática é por demais geral, faltando muitas vezes referências mais específicas à cultura portuguesa, como o diretor houvera feito anos antes na obra-prima Veredas, o que contribui para que, na visão conjunta da obra de Monteiro, Silvestre se posicione num patamar mais baixo que seu antecessor. E é justamente nos momentos em que essas referências portuguesas se fazem presentes que Silvestre alcança seus momentos de brilho, como quando são usadas rimas e versos típicos: por exemplo, na seqüência do canto das lavadeiras, que, de certo modo, prenuncia toda a ação seguinte, ou no diálogo entre Sílvia e sua irmã que antecede sua partida para a guerra. Sem esquecer, também, da belíssima cena, próxima ao final, em que Sílvia e o estranho apresentam-se ao rei, de quem se ouve uma voz (a do próprio Monteiro), mas cuja figura não é vista, substituída pela imagem do bobo, que parece, dissimuladamente debochar de todos. É este talvez o momento em que o Monteiro dos anos seguintes mais se anuncia.

É também singular o tratamento visual proposto pelo diretor. Mantendo quase sempre sua marca registrada de planos longos e distanciados, Monteiro faz seus atores representarem de forma marcadamente anti-naturalista em cenários pintados, antecipando o efeito que, vinte anos depois, Eric Rohmer viria a conseguir utilizando computação gráfica em A Inglesa e o Duque. Consegue, assim, criar imagens de uma intensa beleza plástica. Com Silvestre, João César Monteiro realiza, deste modo, aquele que talvez seja seu longa mais palatável aos não iniciados em seu universo particular, algo que indubitavelmente parece ter contribuído para que esse fosse o primeiro trabalho a divulgar seu nome além das fronteiras de Portugal, antes da consagração definitiva, que viria com Recordações da Casa Amarela.

Gilberto Silva Jr.

 

 




Luís Miguel Cintra em Silvestre