Uma investigação
sobre as raízes do que significaria "ser
português": este parece ser o espírito
do trabalho ao qual João César Monteiro
se entregara a partir de meados da década de
1970, ciclo este que se encerraria com Silvestre.
Não que essa questão viesse se esvaziar
nos filmes posteriores, muito pelo contrário.
Mas tanto no longa-metragem anterior, o soberbo Veredas,
como nos três cutras que se interpuseram, Monteiro
promove um retorno a um passado histórico e mítico,
partindo de contos ou histórias tradicionais,
muitas vezes transmitidos oralmente por anos a fio,
mas também de autores clássicos, como
Ésquilo, demarcando sua tão característica
faceta de mesclar o popular (ou muitas vezes até
mesmo o chulo) ao erudito.
Em Silvestre, Monteiro vai a um cenário
medieval para contar uma história, como anunciada
pela canção que abre o filme, de honra
e guerra. Estreando em cinema aos 15 anos, Maria de
Medeiros interpreta Sílvia, uma donzela prometida
em casamento a um rico proprietário de hábitos
grosseiros. Quando o pai se ausenta para convidar o
rei às bodas, recomendando a Sílvia e
sua irmã que não abrissem as portas, a
protagonosta se apieda de um peregrino e dá-lhe
pouso. Este se revela uma espécie de emissário
demoníaco que tenta seduzir Sílvia; ela
o afugenta, decepando sua mão direita. O estranho
retorna na noite do casamento, exigindo a mão
da jovem. Leva-a a seu castelo, donde ela foge, mas
o estranho sequestra o pai da moça, dando início
a uma guerra. Sílvia parte para o combate, fingindo-se
de homem, e, como pode parecer inevitável, apaixona-se
por seu comandante. Ao ser ferida em uma batalha e ter
sua identidade revelada, Sílvia é levada
à presença do rei, quando o estranho reaparece
para a conclusão da trama.
Temos, portanto, no roteiro de Monteiro uma espécie
de súmula ou compêndio de temas caros ao
imaginário medieval: a submissão aos códigos
sociais, seja nas relações familiares,
políticas ou amorosas, passando por um retrato
sobre a posição da mulher. As personagens
também podem todos ser identificados como arquétipos:
donzela, pai, estranho, comandante. Quanto às
situações de guerra, então, nem
se fala. Não falta sequer o combate contra um
dragão, que é morto pelo estranho. Mas
a figura mais forte é mesmo Sílvia/Silvestre
(sua identidade masculina), personagem depositária
de toda uma leva de mulheres guerreiras, seja de vultos
históricos ou literários presentes nas
mais diversas culturas, como Joana D’Arc, Diadorim ou
a Princesa Mononoke.
Todo este trabalho com uma temática arquetípica,
no entanto, acaba distanciando um pouco Silvestre
da linha mestra de Monteiro em retratar a alma portuguesa.
A temática é por demais geral, faltando
muitas vezes referências mais específicas
à cultura portuguesa, como o diretor houvera
feito anos antes na obra-prima Veredas, o que
contribui para que, na visão conjunta da obra
de Monteiro, Silvestre se posicione num patamar
mais baixo que seu antecessor. E é justamente
nos momentos em que essas referências portuguesas
se fazem presentes que Silvestre alcança
seus momentos de brilho, como quando são usadas
rimas e versos típicos: por exemplo, na seqüência
do canto das lavadeiras, que, de certo modo, prenuncia
toda a ação seguinte, ou no diálogo
entre Sílvia e sua irmã que antecede sua
partida para a guerra. Sem esquecer, também,
da belíssima cena, próxima ao final, em
que Sílvia e o estranho apresentam-se ao rei,
de quem se ouve uma voz (a do próprio Monteiro),
mas cuja figura não é vista, substituída
pela imagem do bobo, que parece, dissimuladamente debochar
de todos. É este talvez o momento em que o Monteiro
dos anos seguintes mais se anuncia.
É também singular o tratamento visual
proposto pelo diretor. Mantendo quase sempre sua marca
registrada de planos longos e distanciados, Monteiro
faz seus atores representarem de forma marcadamente
anti-naturalista em cenários pintados, antecipando
o efeito que, vinte anos depois, Eric Rohmer viria a
conseguir utilizando computação gráfica
em A Inglesa e o Duque. Consegue, assim, criar
imagens de uma intensa beleza plástica. Com Silvestre,
João César Monteiro realiza, deste modo,
aquele que talvez seja seu longa mais palatável
aos não iniciados em seu universo particular,
algo que indubitavelmente parece ter contribuído
para que esse fosse o primeiro trabalho a divulgar seu
nome além das fronteiras de Portugal, antes da
consagração definitiva, que viria com
Recordações da Casa Amarela.
Gilberto Silva Jr.
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