Celebridade
Showgirls,
um dos piores filmes de todos os tempos. Showgirls,
a "framboesa de ouro" do ano de 1996, e pior
filme da década para o mesmo prêmio. Sim?
Ou não. Faz muito sentido que esse filme completamente
pessoal de Paul Verhoeven tenha uma reputação
dessas. A vulgaridade, o mau gosto, o arrivismo, a patifaria,
a completa amoralidade entranham completamente a visão
desse filme, fazendo com que assisti-lo esteja longe
de ser uma experiência gratificante ou agradável.
Além disso, a grosseria da violência, a
onipresença do sexo, a baixeza dos personagens
de todos , tudo isso transforma o espetáculo
de Showgirls numa fantasia grotesca que, no fim,
acaba comendo o próprio rabo. Sobre tudo isso
se concorda. Mas por que a simples utilização
de todos esses recursos aqui mencionados, sem que sequer
se questione a que propósito estético
elas servem no filme, serviriam para fazer de Showgirls
a coisa abominável que aparentemente todo mundo
julga ser?
Para começar a discutir
esse filme mais profundamente, é primeiro necessário
dizer que todos esses aspectos "desagradáveis"
são completamente voluntários. E que essa
feiúra moral dos personagens, refratada pela
geografia excessiva de Las Vegas e pelos interiores
de decoração ultra-cafona dos cassinos
e casas de show, é o coração do
filme. Essa concepção está tão
imbricada em seus trabalhos dos quais Showgirls
representa apenas a melhor concretização
que é difícil avaliá-los
com os simples conceitos que a crítica mais comum
utiliza. Roteiro elaborado? Aprofundamento psicológico?
Personagens verossímeis? Verhoeven nunca jogou
tudo isso às favas com tanta obstinação
quanto nesse filme. Seus personagens são tipos,
o psicologismo é raso ou inexistente, o roteiro
é um acavalamento de situações
dramáticas sem leveza ou matizes. Isso por si
só não faz um bom ou um mau filme: é
preciso considerar, sem prejulgamentos ou questão
de gosto (é bonito então é bom,
é feio então é ruim), o material
com o qual o diretor trabalha e verificar até
onde ele leva as propostas que lhe são caras.
Em Showgirls, há
muito tempo não se via um retrato tão
cáustico do mundo do espetáculo. Talvez
um exemplo anterior seja Les Girls, de George
Cukor, mas é preciso que se levante de início
algumas diferenças. As coristas, nos anos 60,
ainda são objeto de alguma mística, figuras
romantizadas cuja amoralidade é tratada de forma
leve e bem-humorada. Mas isso deve ser encarado do ponto
de vista de uma Hollywood poderosa, mas ainda não
completamente corporativa e mafiosa. A corista dos anos
90 parece com o seu tempo: turbinada (Gina Gershon falando
sobre suas operações), puro objeto sexual
(os seios à mostra onipresentes em quase todos
os momentos do filme), competitiva a ponto de cometer
crimes para conseguir o objetivo almejado (duas coristas
machucam intencionalmente as colegas, com diferentes
propósitos), ela está totalmente refletida
no espírito de seu tempo. Vemos nas relações
entre os personagens lobbies, dumpings,
informação falsa, favorecimento, oclutamento
de provas, prostituição, drogas, tudo
que faz o imaginário das grandes corporações.
Ao mesmo tempo, nada disso é denunciado, nem
por suas vítimas. Existe sempre uma lei da compensação,
e essas regras parecem funcionar muito bem dentro daquele
grupo, sem necessidade de um agente externo regulador
(a polícia) para intervir (Nomi que decide revidar
o estupro e espancamento de sua melhor amiga por um
rock star e seus capangas).
O filme começa de forma
maliciosa, se vendendo como uma espécie de A
Star Is Born das dançarinas de Las Vegas.
Por um momento, ele parece que vai descambar para a
historinha da personagem que flerta com o mal mas consegue
em tempo desfazer os erros que cometeu e por fim consegue
fazer valer sua moralidade intacta no seio de um ambiente
viciado. Naturalmente, isso só é construído
para ser logo derrubado: Nomi Malone, menina charmosa,
agressiva e autoconsciente de seus talentos como dançarina,
pega carona para Vegas a fim de seguir carreira. Passa
de stripper a corista e, por fim, a estrela principal,
a custo de muita auto-humilhação, sedução
e mau-caratismo. Sua frase preferida é: "I'm
not a whore", eu não sou uma puta, só
para descobrirmos, já com bastante tempo de filme,
que (oh!) seu passado secreto revelava uma vida de prostituição
barata em diversas cidades. A subtrama de descoberta
pessoal é quase renovada no final, quando a moça
abandona tudo e, tomando carona com o mesmo crápula
que a conduziu a Vegas, ela diz que ganhou a "si
mesma". Mas isso só para descobrirmos no
plano seguinte que ela não desistiu da vida do
espetáculo, mas que está mais uma vez
tentando subir alguns andares, quando o veículo
some no horizonte com destino a Los Angeles. Nomi não
é "a pura do sistema", apenas uma Poliana
(como é chamada diversas vezes ao longo do filme)
que ainda não percebeu que não importa
o quanto se suba, no seio daquele mundo ainda e sempre
se desempenha, em alguma medida, a mais velha profissão.
Tudo em Showgirls é questão
de pose e reiteração. Pouco importa que
mudem as peças do tabuleiro, o jogo é
sempre o mesmo. Cristal Conors ou Nomi Malone como deusa
(a show se chama "Goddess") num outdoor gigantesco
não muda muita coisa. Aliás, nada. Verhoeven
faz questão de filmar a estréia de Nomi
como estrela com os mesmos diálogos, os mesmos
personagens e o mesmo posicionamento de câmera
da cena originária que Nomi vê Cristal
fazer no começo do filme. Até as cenas
de sexo supostas autênticas de Nomi, primeiro
com dançarino e melandrão James Smih (Glenn
Plummer) e o diretor artístico (o mesmo que cafetão,
segundo James) Zack Carey, são mais continuação
de uma performance do que momentos de verdadeira entrega.
Rebolando para James, ela não faz nada além
da lap dance que está acostumada a fazer
na prmeira casa em que trabalha; na piscina com Zack,
os movimentos repetitivos ridículos de
tão excessivos que ela faz se jogando
para trás mais evocam o trabalho de uma profissional
do que o ápice sexual. O gozo é o espetáculo,
não o orgasmo.
Se há um diretor com
o qual a obra de Paul Verhoeven tenha mais semelhanças,
é sem dúvida Robert Aldrich. A mesma fascinação
por personagens de moral dúbia, pelo mau gosto,
por fazer da história que está sendo contada
um mero invólucro para a exposição
de uma visão de mundo. O que separa esses dois
realizadores, no entanto, da série de diretores
espertinhos que figuram pessoas amorais e/ou perdedores
em seus filmes Solondz, Haneke é
(1) a leveza com que a trama é tratada, o diretor
sentindo-se muito bem entre seus personagens e com a
maneira pela qual eles levam a vida; (2) nenhum prurido
moral pelo qual poder-se-ia esperar mais dos personagens
do que eles são; e por fim (3) a mestria em fazer
com que a forma cinematográfica não seja
por nenhum momento mais inteligente que seus personagens,
o que resultaria num nefasto olhar "de cima".
"It's showtime, estejam preparados para
isso", parece dizer Verhoeven a cada minuto. E
esse showtime inclui naturalmente e é
essa "parte maldita" que a maior parte das
pessoas de gosto apurado não está preparada
para aceitar a sujeira, a grosseria, o mau gosto.
Paul Verhoeven, ao contrário, chafurda nisso
tudo para talhar um belo objeto feito exclusivamente
de atrocidades. Quem nunca foi atroz, que atire a primeira
pedra. Faz melhor quem quiser regozijar-se com o melhor
pior filme do mundo. Pior pra eles.
Ruy Gardnier
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