Por ocasião do Cinesul 2004 – 11º Festival Latino-Americano
de Cinema e Vídeo, o público brasileiro
possui a oportunidade de conhecer a obra de um cineasta
desconhecido para nós: Román Chalbaud.
Verdade seja dita, o cinema venezuelano, entre as cinematografias
latino-americanas, não goza de tanto prestígio.
Contudo, além de suas singularidades, é
possível encontrarmos nessa cinematografia gratas
surpresas.
O cinema venezuelano conheceu um extraordinário
boom nos anos setenta. Com a invasão de
petrodoláres, o Estado incentivou a produção
cinematográfica. Trata-se de um caso ímpar,
pois um país sem tradição cinematográfica
se viu, da noite para o dia, como o terceiro produtor
da América Latina, ficando atrás do México
e do Brasil. Porém, como em nossos "ciclos",
foi um breve resplendor.
Qual foi o saldo estético dessa era de ouro do
cinema venezuelano? Um forte diálogo com o público,
expresso nos sucessos de bilheteria e no uso das formas
tradicionais de narrativa. Talvez essa seja a principal
característica do cinema da Venezuela até
hoje: a utilização consciente de modelos
dramático-narrativos consolidados. Um juízo
apressado afirmaria que os cineastas desse país
possuem uma profunda aversão ao experimentalismo
de linguagem (sendo Diego Rísquez uma notória
exceção).
Uma vez posto tal raciocínio, faremos uma pausa
para uma reflexão. Uma ruptura somente é
possível a partir de um modelo, o que significa
a necessidade de uma tradição. Ora, se
na década de 70, os chamados "cinemas de
autor" se voltaram para os modelos clássicos
de narrativa, o "novo cinema venezuelano"
já nasceu "revisionista" (não
no sentido pejorativo do termo)1. Ou
seja, o que queremos dizer é que o "novo
cinema venezuelano", em sua objetividade de consolidar
uma indústria, buscou mais re-significar modelos
antigos do que defenestrá-los, e daí derivam
as suas qualidades e fraquezas. Assim, chegamos a uma
questão, extremamente atual: qual o valor essa
tradição deve adquirir? A ousadia de querer
romper com tudo não seria uma outra forma de
reverência? Como diz a célebre boutade,
se os espanhóis saboreiam tanto uma blasfêmia
é pelo fato de acreditarem excessivamente em
Deus.
O nome de Román Chalbaud antecede esse resplendor
dos anos 70, embora a maturidade de sua obra seja justamente
nesse período. Antes da criação
de fundos destinados à produção
fílmica, Chalbaud ingressa no cinema, criando
uma obra com um universo singular e de modo sistemático,
apesar das dificuldades de se realizar um filme na Venezuela.
O seu primeiro longa-metragem Caín adolescente
(1959) denota esse aspecto. Realizado em 58 dias, durante
dois anos, o tema abordado é o universo dos morros
caraqueños. O cenário das classes populares
da periferia da metrópole Caracas é uma
constante no cinema venezuelano. Portanto, essa não
é uma singularidade de Chalbaud. A sua obra se
destaca pelo tom pelo qual ele aborda tais personagens.
E o eixo principal é a via aberta pelo melodrama.
A miséria e a marginalidade urbanas estão
presentes no cinema clássico latino-americano
sobretudo pelo melodrama. A crítica feita pelo
cinema moderno a esses filmes se deve à idealização
da vida humilde e sofredora dos pobres. Porém,
a questão é mais complexa, e o melodrama,
em sua polarização entre essência
e aparência e no maniqueísmo entre o bem
e o mal, não é um modelo narrativo tão
simplista da realidade. Aqui encontramos a riqueza da
obra do cineasta venezuelano em seu diálogo com
a tradição do melodrama ao aflorar as
ambigüidades da "ética suburbana".
Chalbaud envereda no melodrama pelo subgênero
dos "filmes de cabaretera" que se aproxima
do gênero policial. Em suma, estamos em plena
presença da transgressão, e portanto,
da afirmação de certos valores por sua
negação. Contudo, em Chalbaud esses valores
podem às vezes ser bem definidos, mas a conduta
de seus personagens sofrem defasagens.
Analisaremos a sua obra mais importante: El pez que
fuma (1977). A disputa pelo poder colocam os homens
como títeres de La Garza, dona do bordel e do
destino de todos em seu estabelecimento. Apesar dos
chulos assumirem a posição de administradores
do negócio, é ela quem assume o papel
masculino, substituindo seus amantes ao seu gosto e
prazer. É lícito afirmar que La Garza
segue a linhagem de femmes fatales, como uma
sucedânea de Doña Bárbara,
"la devoradora de hombres". Seus apelos ao
sobrenatural também reforçam a aproximação
com a personagem de María Félix. Contudo,
ao se apaixonar por seu antagonista, "Doña
Bárbara no es más Doña Bárbara",
aflorando a contradição da personagem
e, por fim, a revelação de sua verdadeira
essência, i. e., Doña Bárbara não
é perversa por algum desvio de caráter
ou de natureza, mas como fruto da cobiça e luxúria
dos homens. Portanto, o melodrama clássico não
está isento de possíveis ambigüidades,
mas a personagem se desvanece quando perde a sua opacidade.
Porém, La Garza, por sua vez, possui uma diferença
fundamental em relação à Doña
Bárbara: ela já está decadente,
trata-se de uma "puta velha", mudando o tom
da personagem. Ela mesma não se sente tão
segura de seu poder, graças à solidão
e tristeza que a assola. É seu passado que a
sustenta mais do que a sua mão firme diante do
negócio. Por outro lado, ela delega poderes aos
homens, que, conforme um código patriarcal, fazem
a ponte entre a casa e a rua. No caso, entre o microcosmo
do bordel e a cidade de Caracas. Contudo, é um
falso patriarcalismo, pois é La Garza o "homem"
da casa.
Portanto, o que testemunhamos é uma extrema fragilidade
nas relações de poder. A figura do patriarca,
tão caro à cultura latino-americana, não
está presente em seu sentido pleno. A ascensão
do jovem Jairo se deve mais aos golpes da sorte do que
de um premeditado plano de conquista de poder. Semelhante
ao personagem de El bonaerense, Jairo também
é praticamente um arrivista malgré
lui. De cupincha de Tobías, e posteriormente
de Dimas, torna-se o braço direito de La Garza
até se tornar o chefe ao lado de La Coneja. Assim,
diante da transitoriedade desse universo, os personagens
estão em constante transformação,
deslocando a sua relação de adaptação
à de conflito. E assim como Dimas ou Tobías,
o futuro de Jairo também pode ser a queda. Portanto,
as funções nas relações
de poder nunca são inteiramente preenchidas,
o que designa uma defasagem entre o personagem e seu
objetivo dramático. Desse hiato abre-se o espaço
para a paródia, a ironia e o exagero, constituindo
o tom particular da obra de Chalbaud no tratamento moderno
aos personagens "frustrados" na estrutura
do melodrama.
Podemos afirmar que Luis Buñuel foi o primeiro,
no cinema latino-americano, a se apropriar do melodrama
nesse nível. A crueldade e o crime não
são fatores de transgressão à um
código objetivamente claro do que seja lícito
ou não. E como bem sublinhou Bazin, a crueldade
se converte em um ato de amor e piedade ao demonstrar
a perenidade da dignidade humana em sua decadência2.
Esse sentido trágico da existência humana,
que o crítico francês bem indicou como
algo próprio à cultura espanhola, se escancara
em Chalbaud tanto como algo metafísico como histórico.
Se a América Latina se industrializou graças
à uma "modernização conservadora",
a ordem patriarcal se dissolveu para dar lugar à
estruturas de poder trágicas por sua fragilidade.
A opressão derivada da usurpação,
e por conseguinte a perversão pelo excesso da
lei, é substituída por uma nova opressão:
a instabilidade do poder e a perversão oriunda
de uma norma vazia. Podemos constatar, por exemplo,
essa lógica na apropriação do melodrama
pelo mexicano Arturo Ripstein de seus filmes dos anos
70 Pós-Tlatelolco (El castillo de la pureza
e El santo oficio) aos dos anos 90 Pós-Guerra
Fria (sobretudo Principio y fin e Asi es la
vida). O venezuelano Román Chalbaud é
também um dos mestres desse "melodrama revisitado".
O tom exagerado e sinistro de La oveja negra (1987)
culmina no mórbido afresco urbano de Pandemonium,
la capital del infierno (1997).
Fabián Nuñez
1. Tal é a opinião de
Peter Schumann, aproximando o cinema venezuelano do
"Cinema Novo" brasileiro da Embrafilme. Contudo,
é significativo ressaltar a extrema simpatia,
por razões políticas, do estudioso alemão
pelos brasileiros em detrimento dos venezuelanos. Ver
SCHUMANN, P. Historia del cine latinoamericano.
Trad. Oscar Zambrano. Buenos Aires: Legasa, s.d., pp.
300-6
2. André Bazin, O cinema
da crueldade. São Paulo: Martins Fontes,
1989. pp. 49-55.
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