Paul Verhoeven não é um pensador (ou ao
menos um bom pensador), e Deus o abençoe por
isto. Da mesma forma também não é
vanguardista, intelectual ou sutil. Existe nos seus
filmes um certo incômodo, uma certa incerteza
quanto a como nos posicionarmos diante do que nos é
mostrado. Paul Verhoeven, ele simplesmente é
o que é, e estaríamos muito mais pobres
se não o fosse.
Primeiramente as primeiras coisas. Verhoeven é
um dos poucos cineastas no cinema contemporâneo
que supõe e propõe a existência
de alguma confusão (ideológica, moral,
estética, cinematográfica) que
valha ainda ser posta em cena. Robocop, a crise da narrativa
em O Vingador do Futuro, Las Vegas e o espectro
do erotismo em Showgirls: todos são reflexos
de uma sociedade (a Norte América) apanhada e
projetada por um olhar de fora (o holandês
Verhoeven). A câmera de Verhoeven, o eixo que
organiza todos os seus recitos, será obrigatoriamente
os Estados Unidos, em tudo o que possui de mais atraente
e mais repugnante (este último constantemente
se confundindo com o primeiro). E portanto Robocop,
ou em outras palavras o cartão de entrada de
Verhoeven nos Estados Unidos.
Da carne putrefata de um mundo surgirá a armadura
reluzente de outro. O policial Murphy reencarnado como
Robocop, o abandono da Europa pelos Estados Unidos,
a textura da película (memória) substituída
pela definição carente do vídeo
(programa), a morte de Cristo e sua ressurreição,
Fritz Lang na UFA criando o monumento Metrópolis
e Verhoeven na Orion Pictures dirigindo o filme
B que Robocop é. É desta forma
que Verhoeven não só opera uma complexa
inversão de conceitos pela maneira como dramatiza
seu grande e exagerado policial/ficção-científica/emulação
de Metrópolis (a armadura reluzente acaba
se revelando nada mais que o resto frágil e a
mentira arrojada de um mundo outrora mais vivo, imperfeito
e interessante) como subverte e perverte com sua mise
en scène um certo imaginário yuppie
que por meados dos anos 80 (época de realização
deste filme) faz-se cada vez mais presente nos filmes
de gêneros norte-americanos.
É esta a fortuna de Verhoeven: a necessidade
de simplesmente olhar as coisas que estão ao
seu redor. Talvez a coerência de sua obra surja
desta urgência, desta capacidade de aceitar que
olhar é mais fácil (e interessante) que
pensar. Apropriar-se de contextos e realidades sociais
e políticas, de um sem-número de signos
contemporâneos, e não organizá-los,
não buscar dar a tudo isso uma lógica
e uma clareza que fora da câmera não possuem,
isso é fazer passar pelo cinema os Estados Unidos
de hoje (algo que Paul Thomas Anderson, Neil LaBute
e Todd Solondz, grandes pensadores que são, ainda
não conseguiram entender).
Como Fassbinder e Pasolini nos anos 60 e Scorsese e
Cimino nos 70, Verhoeven tenta apanhar uma imagem e
fazer dela um objeto histórico, um aparato de
compreensão do mundo; ao contrário de
Cimino e Scorsese (e, no fim das contas, do objeto de
culto Lang) e semelhantemente a Fassbinder e Pasolini,
Verhoeven é muito menos um "visualista" que um
autêntico e genial "visceralista". Suas imagens
são confusas e agressivas; a violência
não só existe naquilo que se filma como
na maneira da câmera se relacionar com o universo
hiper-codificado no qual Verhoeven situa todo o seu
cinema (existem poucas artes mais propositalmente assimétricas
que a de Verhoeven). Estes elementos se acumulam, não
parece que tão cedo surgirá um dispositivo
de encenação ou de conceito para articular
e mediar toda essa confusão, e a única
coisa que resta ao espectador é enfrentar isso
tudo. Difícil, sem dúvida, mas as recompensas
mais do que fazem valer as penúrias e os riscos.
É no casco do policial andróide que temos
a resposta para todo o caos que Verhoeven coloca e com
o qual nos confunde: toda a desordem sígnica
(e histórica) precisa encontrar um centro para
onde se precipitar, e para o diretor Robocop
será este centro. No meio deste amalgama de informações,
verdadeiro filme-palimpsesto do caos moderno (pois Verhoeven
sabe que essa imagem dos anos 80 que seu filme busca
registrar nada mais é que a projeção
de imagens passadas, uma imagem que jamais poderá
de fato ser futurista por ser tão-somente retrô),
encontramos justo uma imagem dos nossos tempos. Nem
Reagan nem Bush Jr., nem Metrópolis ou Alphaville
ou Detroit, mas apenas o mundo onde vivemos.
Bruno Andrade
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