RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA
Portugal, 1989
 

Há um verdadeiro inventário a fazer sobre as diferentes espécies de humor e de significação do humor nos filmes de João César Monteiro. Há, desde seus filmes mais antigos, um humor conceitual, beckettiano (colocar o custo do filme e sua duração nos créditos em Veredas); um humor de deslocamentos, com veemência político-social (Nosferatu X Otan em Que Farei Eu Com Esta Espada?, o padre inserindo o "to be or not to be" e palavras em alemão quando lê a Bíblia, ainda em Veredas), ou situações que bem poderiam estar em narrativas surrealistas ou em esquetes do grupo inglês Monty Python. Ainda assim, não se pode dizer propriamente que nenhum de seus filmes é uma comédia, nem o que leva esse nome (A Comédia de Deus), nem o filme que provavelmente carrega a taxa mais pronunciada de piadas por tempo de projeção, Recordações da Casa Amarela. Este filme marca o nascimento do personagem que redimensionará a carreira e a fama internacional de João César Monteiro: João de Deus. Através desse personagem, alter ego de conformes um tanto exagerados, Monteiro poderá finalmente dar completa vazão ao sarcasmo e à acidez que caracterizaram boa parte de sua obra. Até então, seus filmes não têm a bem dizer heróis positivos: Laura Morante em À Flor do Mar é possivelmente a que mais se aproxima, mas à maneira de uma heroína rosselliniana, Ingrid Bergman em Stromboli ou Europa 51 ou Joana d'Arc (não à toa, ela leva o sobrenome do diretor que inspirou a personagem). Com João de Deus, Monteiro parece recuperar sinteticamente na boca de um único personagem toda a mordacidade que existia nos comentários esparsos – o jovem mórbido de Quem Espera por Sapatos de Defunto, as cantigas de tradição popular de Veredas. Com isso, instaura em seu cinema uma espécie de ontologia da subversão: é preciso renegar sistematicamente os bons costumes, a família, a fé, o país, a propriedade, o trabalho. Insubmisso a tudo isso, João de Deus é uma espécie de pária, elemento vagabundo no sentido literal do termo: ele vai de um lugar para outro, não tem pouso certo, deambula de sítio a sitio sem que um valha mais que o outro (ele desfaz-se do dinheiro e dos lugares com a mesma simplicidade).

"Casa amarela", nos avisa uma legenda no início do filme, é como se chamava à juventude de Monteiro as prisões onde se deixavam os negros. O título do filme, então, é uma espécie de paródia ou de trocadilho com o livro de Dostoiévski que narra, também um tanto autobiograficamente, a passagem do escritor pela prisão: Recordações da Casa dos Mortos. No entanto, não há nessas Recordações da Casa Amarela nenhuma passagem por penitenciária: nosso herói começa numa casa de pensão, posteriormente fica ao relento (imagina-se que durma num abrigo) e, por fim, chega ao hospício. O que seria então essa casa amarela que dá título ao filme? Um espaço metafórico que, codificado ao extremo, limita as ações do personagem e reduz seus comportamentos a uma prática tutelar e disciplinar típica dos sistemas de encarceramento? Isso nos parece claro, sem dúvida, na maneira como a economia de gestos e atitudes parece se comunicar de uma pensão a um hospício: há gente para dizer como se comportar, como agir, qual é a hora de dormir, os limites que se deve manter, os protocolos necessários até para um mendigo conseguir um prato de comida junto à ajuda pública. Mas aqui é que o talento de Monteiro chega a uma sutileza muito fina e muito pouco comentada: não é uma passagem de prisão a prisão que se opera na caminhada de Monteiro, mas uma casa amarela unívoca e abstrata disseminada e expressa da mesma forma em lugares físicos – concretos – diferentes. Essa prisão é menos um lugar do que um estado de espírito. Há sempre uma voz transcendente, incorporal que diz que é preciso conter seus apetites, respeitar os códigos, submeter-se aos valores partilhados, ser produtivo, e assim por diante. Essa voz ultrapassa o chefe da instituição, o homem da chefatura de polícia e a dona de pensão porque tem uma anterioridade de natureza social, ou cósmica: a voz da ordem, o desejo impessoal – mas nada anônimo, talvez plurinômico até – de aceitar as coisas como estão e mantê-las em seu devido lugar. Também devido à fina ironia de Monteiro, essas falas de autoridade se partilham e só comunicam com os outros através de lugares comuns e máximas de boa conduta.

João de Deus é, então, uma sistemática irrupção contra tudo que essa voz representa. Voz da moral, voz da ordem, voz da boa medida e dos valores comuns, trata-se de subvertê-las, de fazer pouco delas, de mostrar como elas só são evocadas para significar um mesmo. A contravoz de Deus, não do Magnânimo mas do João personagem, só existe na medida em que possa submeter essa voz disseminada a uma política de terra arrasada. Essa é a fonte de todo humor de Monteiro ao fazer com que o chefe de polícia, prestes a meter nosso herói atrás das grades por vestir uniforme oficial, ao tomar um livro de suas mãos, pergunte o gênero literário: "É policial?". Imbuído de uma religiosidade atéia, Deus responde, tratando-se da peça inacabada de Hölderlin A Morte de Empédocles, "É celestial." Humor anárquico, a verve de Monteiro tem similares em Buñuel (o riso corrosivo destinado a desautorizar os comportamentos hipócritas e/ou cheios de si) e nos irmãos Marx (os jogos de palavras que criam nonsense a partir de conteúdos de sentido do linguajar costumeiro). Mas há também muito de Tati na maneira como, a partir da autenticidade de um protagonista, a inaparente falsidade dos comportamentos de todos os outros personagens é de imediato catapultada em primeiro plano. Na cena de rua em que a dona de pensão tenta se justificar por ter aceito em sua casa um cafetão que acaba de ser levado pela polícia, Monteiro compõe um quadro em que nenhum personagem se movimenta, exceto pelo de João de Deus, que chega atrasado ao teatrinho e, alheio ao ambiente de fofoca desencadeado pelas vizinhas histéricas – todas elas também representantes do chamado à ordem –, caminha entre as pessoas imóveis, brinca com um bebê, pára, e por fim toma seu próprio caminho. Se houvesse um bocado de libertinagem em Monsieur Hulot, esse seria um primo próximo do herói último de Monteiro.

O fluxo de dinheiro, mesmo que não seja o fio condutor do roteiro, perpassa todos os instantes do filme, criando um diagrama muito mais acompanhável do que as deambulações do personagem. Assim, o dinheiro aparece (1) como coisa a se guardar e administrar a ferro e fogo pela dona da pensão; (2) depois, como coisa a se ganhar por um trabalho que o espectador sequer sabe se será concretizado, pelo próprio João; (3) ainda com João, como coisa a se pedir impiedosamente a uma mãe idosa, associada aqui à pátria (a bandeira portuguesa postada no corredor do prédio), fazendo trabalhos braçais e sustentando a vagabundagem do filho; (4) como coisa a se roubar de uma prostituta defunta; (5) e depois se desfazer dele com a mesma facilidade, tentando deflorar a clarinetista filha da avara anfitriã (que, surpreendendo a cena, prefere avançar para o dinheiro a prestar assistência à filha). A circulação monetária não se dá através da produção de valores ou de bens, mas de conluios e expropriações, em que vale mais ser o explorador do que o explorado – o que, em certo aspecto, é a moral do capitalismo por excelência, ainda que não seja a moral que o capitalismo prega (o esforço, o trabalho).

Perverso, libertino e libertário, vagabundo, João de Deus não prega sua filosofia. Seu comportamento é só seu, sua busca é pessoal. É nesse momento que mais uma vez Monteiro dá um golpe de sutileza e prega uma peça no espectador que espera uma recepção "fácil" do filme, uma simples "comédia". A moral da história dos filmes de João de Deus não é o "salve-se quem puder", mas o elogio de uma construção de si mesmo que passa por uma pauperização, uma austeridade, uma economia de hábitos e contatos pessoais que pouco tem a ver com a ideologia "malandra" do vai-o-que-der que, profundamente plebéia e mesquinha, está disseminada no seio do grupo que Monteiro ridiculariza. Quando questionado pelo chefe de polícia sobre o porquê de vestir uma farda da tropa, João de Deus replica: "Oficial da guarda! É uma arma aristocrática". Pode passar por simples gracejo, mas essa resposta atesta à maravilha o comportamento de nosso protagonista e sua relação com a vida. Uma moral aristocrática não passa pela posse de bens ou propriedade, mas por um controle de si. Não é uma moral bufona do excesso à maneira de Ferreri – que, em sua chave, também soube ser anti-burguês e, em geral, anti-cconvencional e extrair também uma moral de vida e imagem que contrastava com a moral burguesa –, mas um devir-raquítico, uma escolha de poucos desejos, mas desejos que digam muito àquele que os escolhe.

Uma tal moral, um grande cineasta sabe fazer dela não apenas o tema de seus filmes, mas também convertê-la em imagens. E esse privilégio da austeridade também se faz sentir quando Monteiro deliberadamente obstrui nossa visibilidade de diversas maneiras. Vários planos de Recordações da Casa Amarela apresentam apenas uma imagem parcial da cena que transcorre. Paredes, portas, janelas, móveis, todos são chamados a impedir o livre fluxo da imagem entregue ao gozo narcisista (e, podemos acrescentar, um tanto pornográfico) do espetáculo. Assim, abundam vozes sem referente na imagem, imagens barradas, contornos sem conteúdo, movimentos para fora do plano, espelhos que desintegram o espaço. A profusão de elementos retangulares (a veneziana do quarto da menina Julieta, a janela em que vemos João de Deus profanando o quarto da finada Mimi) inclusive permite pensar num cinema-dentro-do-cinema, que por si só já problematiza aquilo que vemos. Esse desejo paradoxal de mostrar mas também de não mostrar, de ser aristocrata e ser lúmpen, se inscreve no seio das preocupações de um cineasta que crê na dificuldade da imagem, na opacidade fundamental (de leitura, de recorte, de concepção) de uma arte que tenta perscrutar um objeto em si mesmo opaco (ainda está a ser respondida a pergunta que quiestiona para que serve um corpo). A hipótese radical de Monteiro é que esse objeto opaco é risível, paródico, e só atinge o sublime por vias do ridículo. Assim, um primeiro tijolinho a colocar nessa comprida construção é orgulhar-se de exibir inclusivamente o notável e o infame, o exemplo e o inaceitável, Schubert e Quim Barreiros, Empédocles e pentelhos. Ao fim, resta João de Deus como fantasma, como vampiro, Nosferatu (citação recorrente, apropriada ao corpo do cineasta) subindo de seu porão para assombrar uma gente muito cheia de certezas, e enfim desaparecendo em fade dentro do plano. "Vai e dá-lhes trabalho", diz o companheiro de hospício quando João de Deus é finalmente liberado. Não é menos que isso o que João César Monteiro faz com o espectador de seus filmes. Um trabalho exaustivo e hilário.

Ruy Gardnier

 

 




Monteiro (à esquerda) como João de Deus