Há
um verdadeiro inventário a fazer sobre as diferentes
espécies de humor e de significação
do humor nos filmes de João César Monteiro.
Há, desde seus filmes mais antigos, um humor
conceitual, beckettiano (colocar o custo do filme e
sua duração nos créditos em Veredas);
um humor de deslocamentos, com veemência político-social
(Nosferatu X Otan em Que Farei Eu Com Esta Espada?,
o padre inserindo o "to be or not to be" e
palavras em alemão quando lê a Bíblia,
ainda em Veredas), ou situações
que bem poderiam estar em narrativas surrealistas ou
em esquetes do grupo inglês Monty Python. Ainda
assim, não se pode dizer propriamente que nenhum
de seus filmes é uma comédia, nem o que
leva esse nome (A Comédia de Deus), nem o filme
que provavelmente carrega a taxa mais pronunciada de
piadas por tempo de projeção, Recordações
da Casa Amarela. Este filme marca o nascimento do
personagem que redimensionará a carreira e a
fama internacional de João César Monteiro:
João de Deus. Através desse personagem,
alter ego de conformes um tanto exagerados, Monteiro
poderá finalmente dar completa vazão ao
sarcasmo e à acidez que caracterizaram boa parte
de sua obra. Até então, seus filmes não
têm a bem dizer heróis positivos: Laura
Morante em À Flor do Mar é possivelmente
a que mais se aproxima, mas à maneira de uma
heroína rosselliniana, Ingrid Bergman em Stromboli
ou Europa 51 ou Joana d'Arc (não
à toa, ela leva o sobrenome do diretor que inspirou
a personagem). Com João de Deus, Monteiro parece
recuperar sinteticamente na boca de um único
personagem toda a mordacidade que existia nos comentários
esparsos o jovem mórbido de Quem Espera
por Sapatos de Defunto, as cantigas de tradição
popular de Veredas. Com isso, instaura em seu cinema
uma espécie de ontologia da subversão:
é preciso renegar sistematicamente os bons costumes,
a família, a fé, o país, a propriedade,
o trabalho. Insubmisso a tudo isso, João de Deus
é uma espécie de pária, elemento
vagabundo no sentido literal do termo: ele vai de um
lugar para outro, não tem pouso certo, deambula
de sítio a sitio sem que um valha mais que o
outro (ele desfaz-se do dinheiro e dos lugares com a
mesma simplicidade).
"Casa amarela", nos
avisa uma legenda no início do filme, é
como se chamava à juventude de Monteiro as prisões
onde se deixavam os negros. O título do filme,
então, é uma espécie de paródia
ou de trocadilho com o livro de Dostoiévski que
narra, também um tanto autobiograficamente, a
passagem do escritor pela prisão: Recordações
da Casa dos Mortos. No entanto, não há
nessas Recordações da Casa Amarela
nenhuma passagem por penitenciária: nosso herói
começa numa casa de pensão, posteriormente
fica ao relento (imagina-se que durma num abrigo) e,
por fim, chega ao hospício. O que seria então
essa casa amarela que dá título ao filme?
Um espaço metafórico que, codificado ao
extremo, limita as ações do personagem
e reduz seus comportamentos a uma prática tutelar
e disciplinar típica dos sistemas de encarceramento?
Isso nos parece claro, sem dúvida, na maneira
como a economia de gestos e atitudes parece se comunicar
de uma pensão a um hospício: há
gente para dizer como se comportar, como agir, qual
é a hora de dormir, os limites que se deve manter,
os protocolos necessários até para um
mendigo conseguir um prato de comida junto à
ajuda pública. Mas aqui é que o talento
de Monteiro chega a uma sutileza muito fina e muito
pouco comentada: não é uma passagem de
prisão a prisão que se opera na caminhada
de Monteiro, mas uma casa amarela unívoca e abstrata
disseminada e expressa da mesma forma em lugares físicos
concretos diferentes. Essa prisão
é menos um lugar do que um estado de espírito.
Há sempre uma voz transcendente, incorporal que
diz que é preciso conter seus apetites, respeitar
os códigos, submeter-se aos valores partilhados,
ser produtivo, e assim por diante. Essa voz ultrapassa
o chefe da instituição, o homem da chefatura
de polícia e a dona de pensão porque tem
uma anterioridade de natureza social, ou cósmica:
a voz da ordem, o desejo impessoal mas nada anônimo,
talvez plurinômico até de aceitar
as coisas como estão e mantê-las em seu
devido lugar. Também devido à fina ironia
de Monteiro, essas falas de autoridade se partilham
e só comunicam com os outros através de
lugares comuns e máximas de boa conduta.
João de Deus é,
então, uma sistemática irrupção
contra tudo que essa voz representa. Voz da moral, voz
da ordem, voz da boa medida e dos valores comuns, trata-se
de subvertê-las, de fazer pouco delas, de mostrar
como elas só são evocadas para significar
um mesmo. A contravoz de Deus, não do Magnânimo
mas do João personagem, só existe na medida
em que possa submeter essa voz disseminada a uma política
de terra arrasada. Essa é a fonte de todo humor
de Monteiro ao fazer com que o chefe de polícia,
prestes a meter nosso herói atrás das
grades por vestir uniforme oficial, ao tomar um livro
de suas mãos, pergunte o gênero literário:
"É policial?". Imbuído de uma
religiosidade atéia, Deus responde, tratando-se
da peça inacabada de Hölderlin A Morte
de Empédocles, "É celestial."
Humor anárquico, a verve de Monteiro tem similares
em Buñuel (o riso corrosivo destinado a desautorizar
os comportamentos hipócritas e/ou cheios de si)
e nos irmãos Marx (os jogos de palavras que criam
nonsense a partir de conteúdos de sentido
do linguajar costumeiro). Mas há também
muito de Tati na maneira como, a partir da autenticidade
de um protagonista, a inaparente falsidade dos comportamentos
de todos os outros personagens é de imediato
catapultada em primeiro plano. Na cena de rua em que
a dona de pensão tenta se justificar por ter
aceito em sua casa um cafetão que acaba de ser
levado pela polícia, Monteiro compõe um
quadro em que nenhum personagem se movimenta, exceto
pelo de João de Deus, que chega atrasado ao teatrinho
e, alheio ao ambiente de fofoca desencadeado pelas vizinhas
histéricas todas elas também representantes
do chamado à ordem , caminha entre as pessoas
imóveis, brinca com um bebê, pára,
e por fim toma seu próprio caminho. Se houvesse
um bocado de libertinagem em Monsieur Hulot, esse seria
um primo próximo do herói último
de Monteiro.
O fluxo de dinheiro, mesmo que
não seja o fio condutor do roteiro, perpassa
todos os instantes do filme, criando um diagrama muito
mais acompanhável do que as deambulações
do personagem. Assim, o dinheiro aparece (1) como coisa
a se guardar e administrar a ferro e fogo pela dona
da pensão; (2) depois, como coisa a se ganhar
por um trabalho que o espectador sequer sabe se será
concretizado, pelo próprio João; (3) ainda
com João, como coisa a se pedir impiedosamente
a uma mãe idosa, associada aqui à pátria
(a bandeira portuguesa postada no corredor do prédio),
fazendo trabalhos braçais e sustentando a vagabundagem
do filho; (4) como coisa a se roubar de uma prostituta
defunta; (5) e depois se desfazer dele com a mesma facilidade,
tentando deflorar a clarinetista filha da avara anfitriã
(que, surpreendendo a cena, prefere avançar para
o dinheiro a prestar assistência à filha).
A circulação monetária não
se dá através da produção
de valores ou de bens, mas de conluios e expropriações,
em que vale mais ser o explorador do que o explorado
o que, em certo aspecto, é a moral do
capitalismo por excelência, ainda que não
seja a moral que o capitalismo prega (o esforço,
o trabalho).
Perverso, libertino e libertário,
vagabundo, João de Deus não prega sua
filosofia. Seu comportamento é só seu,
sua busca é pessoal. É nesse momento que
mais uma vez Monteiro dá um golpe de sutileza
e prega uma peça no espectador que espera uma
recepção "fácil" do filme,
uma simples "comédia". A moral da história
dos filmes de João de Deus não é
o "salve-se quem puder", mas o elogio de uma
construção de si mesmo que passa por uma
pauperização, uma austeridade, uma economia
de hábitos e contatos pessoais que pouco tem
a ver com a ideologia "malandra" do vai-o-que-der
que, profundamente plebéia e mesquinha, está
disseminada no seio do grupo que Monteiro ridiculariza.
Quando questionado pelo chefe de polícia sobre
o porquê de vestir uma farda da tropa, João
de Deus replica: "Oficial da guarda! É uma
arma aristocrática". Pode passar por simples
gracejo, mas essa resposta atesta à maravilha
o comportamento de nosso protagonista e sua relação
com a vida. Uma moral aristocrática não
passa pela posse de bens ou propriedade, mas por um
controle de si. Não é uma moral bufona
do excesso à maneira de Ferreri que, em
sua chave, também soube ser anti-burguês
e, em geral, anti-cconvencional e extrair também
uma moral de vida e imagem que contrastava com a moral
burguesa , mas um devir-raquítico, uma
escolha de poucos desejos, mas desejos que digam
muito àquele que os escolhe.
Uma tal moral, um grande cineasta
sabe fazer dela não apenas o tema de seus filmes,
mas também convertê-la em imagens. E esse
privilégio da austeridade também se faz
sentir quando Monteiro deliberadamente obstrui nossa
visibilidade de diversas maneiras. Vários planos
de Recordações da Casa Amarela
apresentam apenas uma imagem parcial da cena que transcorre.
Paredes, portas, janelas, móveis, todos são
chamados a impedir o livre fluxo da imagem entregue
ao gozo narcisista (e, podemos acrescentar, um tanto
pornográfico) do espetáculo. Assim, abundam
vozes sem referente na imagem, imagens barradas, contornos
sem conteúdo, movimentos para fora do plano,
espelhos que desintegram o espaço. A profusão
de elementos retangulares (a veneziana do quarto da
menina Julieta, a janela em que vemos João de
Deus profanando o quarto da finada Mimi) inclusive permite
pensar num cinema-dentro-do-cinema, que por si só
já problematiza aquilo que vemos. Esse desejo
paradoxal de mostrar mas também de não
mostrar, de ser aristocrata e ser lúmpen, se
inscreve no seio das preocupações de um
cineasta que crê na dificuldade da imagem, na
opacidade fundamental (de leitura, de recorte, de concepção)
de uma arte que tenta perscrutar um objeto em si mesmo
opaco (ainda está a ser respondida a pergunta
que quiestiona para que serve um corpo). A hipótese
radical de Monteiro é que esse objeto opaco é
risível, paródico, e só atinge
o sublime por vias do ridículo. Assim, um primeiro
tijolinho a colocar nessa comprida construção
é orgulhar-se de exibir inclusivamente o notável
e o infame, o exemplo e o inaceitável, Schubert
e Quim Barreiros, Empédocles e pentelhos. Ao
fim, resta João de Deus como fantasma, como vampiro,
Nosferatu (citação recorrente, apropriada
ao corpo do cineasta) subindo de seu porão para
assombrar uma gente muito cheia de certezas, e enfim
desaparecendo em fade dentro do plano. "Vai e dá-lhes
trabalho", diz o companheiro de hospício
quando João de Deus é finalmente liberado.
Não é menos que isso o que João
César Monteiro faz com o espectador de seus filmes.
Um trabalho exaustivo e hilário.
Ruy Gardnier
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