"Hipótese: o
cinema é uma vigarice (Godard) que pode ser superada."
J.C. Monteiro
Existência-filme, persistência em filme.
Rodado em 1965, Quem espera por sapatos de defunto
morre descalço foi o primeiro trabalho de
João César Monteiro, então com
25 anos. Sem orçamento, rodado às custas
de amigos e favores, o filme ficou emperrado por cinco
anos e só pôde ser finalizado em 1970.
Ainda assim, permaneceu sem conseguir circular pelas
salas de projeção, vítima das censuras
da ditadura salazarista (que ansiava por desfigurar
grande parte de seus 33 minutos). Guardado, assim, como
um filme-para-depois, ganhou sua tardia estréia
pública no ano de 1979, quase quinze anos após
ter sido rodado, com exibição aberta na
TV estatal portuguesa (RTP).
É de especial sabor saber assim do percursos
(atribulados) desse filme; e vê-los não
como problemas, obstáculos, mas como a construção
contaminada do espaço que Monteiro aos poucos
veio a cultivar enquanto marca estrutural de sua obra:
o cinema enquanto gesto de resistência, enquanto
uma espécie de órgão pulsátil,
pedaço de um corpo que faz do filme mais que
expressão, mas território e moradia. Como
nas grandes obras de Monteiro (e este está entre
os maiores, certamente), há muito pouca ou nenhuma
trama; não há trajeto a ser percorrido
a não ser um malicioso e melancólico perambular
por ruas, cenários, citações e
falas. Luís Miguel Cintra (em sua estréia
no cinema) vive o "lívido Lívio",
jovem filho de uma classe-média desencantada,
que vive a angústia de ver sua namorada abandoná-lo,
enquanto aplica pequenos golpes pela cidade, em busca
de algum dinheiro.
Estão aqui presentes as tiradas secas, as ironias,
as falas-citações de Monteiro, seu olhar
ao mesmo tempo apaixonado pela cidade e de total repulsa
a tudo aquilo que se esgueira entre as boas-condutas
e a boa-ordem das ruas de Lisboa. "Já estão
a cair baratas do teto?", pergunta Lívio
observando o inseto a se afogar num copo d'água,
enquanto planeja (com um amigo) a melhor forma de convencer
a viúva de um general a doar as roupas do finado
a "dois pobres estudantes".
Esse deboche acridoce diante dos rituais e do poder,
essa atração (seguida de total desprezo)
pelos signos e clichês da "grande pátria
portuguesa" (a imagem do mar revolto, a declamação
de Camões), marcam um sentimento extremo de presentificação
e contágio, de uma carnalidade particular, feita
de filme, que Monteiro transfigura em desejo de liberdade.
"Esse país é um cu donde não
se sai", diz a narração off
nos primeiros planos (projetados como um copião
mudo e re-filmados da tela).
Partindo do velho provérbio que lhe dá
título (um "provérvio cinematográfico"
como diz a rubrica da cartela-título), o filme
se apresenta num discurso ao mesmo tempo direto e fragmentado,
em que a aspereza cortante de falas abruptas e a ironia
do personagem são amalgamados com um ternura
latente, aventurosa, amargurada e alegre em toda a sua
inquietação.
Uma torrente de imagens de um filme-que-não-se-fez,
como a memória revisitada do presente, onde os
movimentos da narração são expressos
no embalar das imagens em perdição.
Uma poesia da pele exposta, de um cinema mais-do-que-lírico,
em que o verdadeiro se faz justamente onde se expõe
em artifícios. Cinema superficial, de imagens
em flutuação marcada, falas incompletas,
trilha sonora desarranjada e narrações
divagantes – imagens de um desencanto que não
se cabe na apatia simples e se agita na vivacidade do
olhar vidrado de Lívio (e não é
acaso se alguém lembrar de um certo João
de Deus).
O filme todo, errante, é como um ensaio: a procura
desse lugar de desajuste vivaz; essa provocação
que é mais do quer ser um contrário, é
ser um outro. Para quem pôde ver Vai-e-Vem,
reconhece-se lá um mesmo plano, do mesmo banquinho
de madeira, diante da grande figueira de uma praça
lisboeta (onde a derradeira imagem de Monteiro se fez
em 2003). Toda sua geografia de obsessões está
por ali anunciada, entre jogos de linguagem, cenários
e truques ("afinal, crimes são as coisas
que se repetem"), fazendo de Quem Espera por
Sapatos de Defunto Morre Descalço um filme
obrigatório e uma experiência contagiante.
A montagem de contrações e silêncios
percorre o breve fio de narração como
em passagens anotadas num caderno de idéias,
nunca se completando, sempre se insinuando em uma outra
camada; hesitando "entre o mundo grave e a gravidade
do mundo." Nunca sobre nada, o filme é
um através, um atravessamento de uma certa
juventude e um certo sentimento de desajuste que parte
do mundo (e se mistura com ele), mas que não
quer repeti-lo. Não esperar por sapatos de defunto,
não aguardar a herança do já-pôsto,
do já-pronto, do já-cômodo – do
passado... A espera pela repetição do
mesmo não lhe veste os pés, não
lhe cabe nos dedões (como os sapatos do general
só lhe apertam os calcanhares...).
A narração mítica sobres os seres
dos espelhos e sua imitação do real
("um dia eles irão se rebelar") lança
o gesto-filme (e essa narração é
feita sobre um plano frugal do casal conversando num
café) no abismo entre ser aquele que melhor pode
imitar o mundo ou aquele mais capaz de desfigurá-lo.
E é por aí se seguem esses namoros de
ruptura, esse cultivo da possibilidade de diferenciação
em uma paisagem de igualdades opressivas; esse sentimento
de que não há cabimento que possa limitar
a vida nesse ou naquele lugar (ou mesmo naquele plano).
Um verdadeiro sentimento de guerrilha das imagens. Mas
não uma guerrilha ferramental e objetiva, mas
uma guerrilha de cultivo e perpétua, sem fim,
de superação contínua dessas vigarices,
cus e limites que se impõe adiante. Desses cus
travestidos de condutas, boas normas, escrúpulos
e toda sorte de senis obediências.
Solitário num ambiente de repetições
e abandonado por seu amor juvenil ("que não
era como as outras"), resta-lhe, enfim, o último
plano: o rosto isolado de Lívio, encarando a
câmera por longos minutos, contorcendo levemente
os músculos da garganta sem palavras. Um cinema
que é quase um grito, uma imagem-pessoa (e transpirante)
que nada representa senão a si mesmo;
ultrapassando discursos e negando qualquer ideologismo
de ocasião. Para além dos discursos da
revolução, na defesa de um cinema de sentidos,
Monteiro faz um filme sentido. Um cinema que
se sente (e não re-sente).
E aí se chega ao ápice: em que a obra
de Monteiro impressiona (e tudo está aqui insinuado
nesse primeiro filme) pelo tom com que a sua insurreição
não se dá através da tristeza,
da amargura, do revanchismo indutivo ou de realismos
melancólicos... mas com uma celebração
possível de um desapego de reinvenção
(memória do novo?), gozo irônico de alteridade
e deboche raivoso por tudo aquilo que insista em lhe
pegar pelo braço e querer lhe mostrar,
de uma vez por todas, o lugar onde repousam os "bons
modos".
Um filme, enfim, sobre o fazer cinema num pequeno país
como Portugal (ou num grande país como o Brasil?).
Sobre jovens atores (e um jovem diretor) atiçados
por augustas ilusões...Vivendo em um velho e
cansado país, em tempos que insistiam (ou ainda
insistem?) a cheirar como as roupas de defuntos.
(...)
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário
de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir para o diabo!
Para que havermos de ir juntos? (...)
Álvaro de Campos, in Lisbon Revisited (1923)
Felipe Bragança
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