Que Farei Eu Com Esta Espada
foi rodado em 1975, no ano seguinte à Revolução
dos Cravos (que enterrou o salazarismo em Portugal).
É um documentário que fala de um fato
da época, o uso dos portos portugueses pelos
navios de guerra da Organização do Tratado
do Atlântico Norte (OTAN nos livros de história
brasileiros, NATO na sigla em inglês conhecida
e usada em Portugal) – associação militar
entre governos europeus e norte-americano para deter
as guerras provocadas pela "ameaça comunista".
O filme não deixa dúvidas sobre sua primeira
opção: a OTAN, seu navio e seus soldados
são comparados através de uma montagem
paralela à chegada de Nosferatu, seu navio e
seus ratos no filme de Murnau. O barco da OTAN e sua
chegada em solo português são comparados
aos do clássico vampiro seguidas vezes. A OTAN
é o vampiro - e traz a peste. O estímulo
econômico que traz à região é
vergonhoso: sem aumento de produção, os
preços dos alimentos sobem e a população
empobrece. A única atividade estimulada é
a prostituição.
Isto aconteceu devido à ameaça vermelha.
O filme nos mostra longamente um discurso de um velho
comunista, mas é perceptível que seu discurso
é egocêntrico e confuso. Portugal precisava
conviver com uma população tremendamente
pobre e com a herança colonialista – Portugal
sempre teve esta ambigüidade em sua história:
império colonial, foi por sua vez colonizado
econômica e culturalmente, como depoimentos ressentidos
deixam perceber. Entre estes depoimentos, surge um que
põe em xeque o cerne da questão: dois
imigrantes de ex-colônias, negros, contam suas
experiências em Nova Guiné e em Cabo Verde.
Trazem ao filme um outro olhar, o olhar dos que vieram
das colônias da ex-metrópole agora decadente
– e seu depoimento começa com uma leitura que
logo define a questão do filme: a luta pela libertação
é sobretudo um ato cultural. Pouco menos de um
ano após a Revolução dos Cravos,
o governo firma compromissos com a OTAN, apesar dos
protestos de parte da população (como
vemos em dois longos planos que mostram uma exaltada
passeata de protesto). Que Farei Eu Com Esta Espada?,
é o que se pergunta um guerreiro de aparência
andrógina ao longo do filme.
Sendo uma realização de João César
Monteiro, podemos supor que a óbvia resposta
de baixo calão certamente é considerada
pelo diretor.
Estando em 2004, quase trinta anos depois da realização,
não há como evitar a comparação
com certos filmes recentes. Que Farei Eu Com Esta
Espada? surpreende e incomoda porque é veemente
– de forma despudorada. É um filme coercitivo,
que, mesmo trazendo dúvidas e problemas que não
se resolvem, impõe ao espectador "idéias
a golpes de martelo". Não é por acaso
o uso da expressão – estou citando artigo recente
de Pedro Butcher publicado na revista Bravo!. O assunto
era Fahrenheit 11/09, de Michael Moore.
No país dos filmes de Eduardo Coutinho, como
podemos nos relacionar com documentários "coercitivos"?
(Ainda que meu amigo Felipe Bragança já
tenha apontado num artigo recente como é bizarro
pretender juntar filmes tão diversos debaixo
do 'gênero' documentário, refiro-me
no caso justamente a uma compreensão mais ampla
dessas diferentes posturas de documentar o mundo
real em um filme).
"Será cinema?", perguntou-se
Pedro no artigo que citei, indo depois direto ao ponto
– este questionamento leva a ter que acreditar na existência
de um cinema puro. Atacar quem faz do cinema
uma peça de propaganda política não
é apenas uma restrição a alguns
filmes ou figuras – é uma restrição
a uma relação que o cinema pode estabelecer
com a vida das pessoas. É como não aceitar
como texto literário um ensaio
panfletário. Por trás do que pode aparentar
ser uma bela relação ética e política
com o cinema, o que há é seu esgoelamento,
sua limitação. Monteiro faz seu documentário
com o martelo, a foice e a espada, que em algum lugar
vai ter que ficar. Cada um se posiciona como acha melhor.
Não pretendo dizer aqui que este filme de Monteiro
é idêntico aos de Michael Moore (inclusive
porque Monteiro não aparece neste filme, nem
deve ter obtido ucro com ele) nem a outros documentários
"coercitivos" (para dar mais um exemplo, não
tão recente, Barra 68). O filme tem suas
características únicas, trazidas pelo
momento histórico em que foi feito e pelas crenças
do seu realizador na época, como fica evidente
pelo citado trecho dos imigrantes ou por toda a mobilização
que toma os depoimentos em geral. A compreensão
do papel duplo de Portugal, metrópole e colônia;
a gigantesca manifestação anti-OTAN mostrada
no início; a ironia em usar uma gravação
da ex-prostituta Billie Holiday ("I Cover The Waterfront",
com um duplo sentido inesperado para cover...)
ao mostrar os marinheiros em busca dos night-clubs;
ou mesmo o início e o final do filme – começando
com a visão de um canhão apontado para
o navio de guerra da OTAN, desde o primeiro momento
evidenciando sua opinião, e tendo como imagem
final a frase de Marx e Engels, "Proletários
de todo mundo, uni-vos" – todos estes trechos
não têm similar direto, têm uma força
que não se deixa esvaziar em comparações
vagas com filmes de proposta semelhante. São
momentos que tornam o filme realmente impressionante,
único.
Mas a questão que pretendo apontar é que
o não-posicionamento também é uma
tomada de posição – que em certas circunstâncias
pode se tornar covarde e mórbida. Um filme feito
de dúvidas e incertezas pode ser interessantíssimo
em certos casos, assim como um outro cheio de certezas
e imposições pode ser autoritário
e fascista – mas cada caso tem a sua história
específica, não há modelos superiores
e inferiores, há modelos vitais
ou mórbidos conforme as circunstâncias.
Em certos momentos, posicionar-se de forma claramente
contrária é a atitude vital – e não
observar o contexto geral quando se analisa estes filmes
é esvaziá-los do que pretendem que seja
sua razão de existir. Não se pode falar
de O Que Farei Eu Com Esta Espada? sem compreender
a OTAN e a Guerra Fria, assim como não se pode
falar de Fahrenheit 9/11 sem compreender a era
de George Bush. Não se trata de gostar ou desgostar
por razões políticas – é justamente
o contrário: eu não vejo mais consistência
alguma em desgostar destes por violar as regras da boa
educação cinematográfica, da boa
ética autoral. O cinema não é dependente
de boas maneiras. Não vejo mais nada de errado
a priori em um filme que toma suas posições
com clareza. Esta busca de uma preservação
da pureza cinematográfica em muito lembra
a atitude de uma vestal – é o vestalismo cinematográfico.
E nós já sabemos como Monteiro trata as
vestais em seus filmes.
Daniel Caetano
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