Os países do terceiro-mundo espalhados por todos
os continentes sentem o peso da crise sistêmica
do capitalismo da terceira revolução industrial.
Os avanços da informática e a incessante
necessidade de adequar a produção industrial
local aos níveis de produtividade e concorrência
impostos pelas crescentes exigências de lucro
incompatibilizam o retorno social que deveria estar
na base de qualquer produção de bens.
Para alimentar o esquema de especulação
financeira internacional, base do financiamento em qualquer
parte do mundo, as empresas dos países periféricos
foram obrigados a assumir compromissos com um capital
irreal para que pudessem aplicar esses recursos na modernização
de sua estrutura produtiva, pensando que essa seria
a única maneira de se manter em um mercado cada
vez mais cruel com os pequenos. É claro que isso
não poderia dar certo.
Na virada do milênio, quando a Argentina viu esse
esquema ruir, a fragilidade das suas finanças
comprometidas colocou quase toda a população
em uma situação de caos econômico.
A economia parece que parou de existir de uma hora para
outra e as empresas começaram a desmoronar uma
a uma. E com a situação feia, queda de
governo e agitação nas ruas são
coisas mais do que previsíveis. O aumento brutal
da pobreza e o desmantelamento de uma classe-média
aristocrática formaram um quadro aterrador que
precisava de qualquer maneira ser pensado, estudado,
compreendido. Junto com grupos de ação
de trabalhadores sem emprego organizando tomadas de
fábricas, alguns intelectuais e artistas se viram
em meio a uma realidade que clamava por sua atenção
imediata.
Antes, mas não muito, quando a saúde financeira
e os indicadores sociais argentinos começavam,
junto com os outros países latino-americanos,
a degenerar a sua classe cinematográfica jovem
parece ter despertado para o que estava acontecendo
e lançou o aviso sob a forma de um novo cinema.
Esses filmes, mais comprometidos com o que se passava
em todos os níveis institucionais do país,
adotavam uma estética mais livre, às vezes
baseada no uso de câmeras digitais, tratando de
assuntos atuais e incômodos. Filmes como Pizza,
Cerveja e Cigarro e Do Outro Lado da Lei,
atualmente em cartaz no Rio de Janeiro, são apenas
duas mostras desse cinema que se preocupa com sua realidade
social e busca os meios que estão a mão
para falar dela. Ao acontecer o desastre total, o cinema
já estava preparado para esmiuçá-lo.
Ou pelo menos já tinha um aparato expressivo
capaz de colocar o assunto em questão. Vídeo,
telecinagem, produção barata, locações
simples são as bases de um cinema de crise que
pode ser realizado nas condições econômicas
mais desanimadoras.
PyMe (sitiados) é cria dessa realidade.
Filme feito em 2002, já quando a situação
começava a apresentar melhoras, segundo a opinião
dos economistas de plantão, ele se propõe
a fazer um levantamento pontual de todo o acontecido
com um forte sentimento de mágoa e alguma desorientação.
Afinal, o modelo econômico era apresentado como
correto. Ressentido e envolvido em um medo tenso, o
longa dá uma idéia do que pode ter sido
a vida à beira do abismo na época.
Pequenas e Médias Empresas. É isso que
o título que dizer. O filme mostra um negócio
de família, próspero, feliz, rentável,
até a crise começar a azucrinar o seu
dono com ameaça de falir. Sempre comprometido
com os credores e os bancos, aos quais deve os juros
dos empréstimos, ele já não paga
os funcionários há um tempo. Esse é
o seu pesadelo. Convencido de que necessitava tornar
o seu equipamento de produção mais moderno
e competitivo, o patrão negócio pega dinheiro
emprestado para financiar essa melhoria. Mas como a
economia era falsa, as vendas caíram, as máquinas
novas ficaram ociosas e os banqueiros começaram
a cobrar o que lhes é devido. PyMe usa
essa pequena fábrica como exemplo de algo que
estava se generalizando e obrigando todos a seguir um
comportamento antes impensável. Os empregados
discutem uma greve, pressionam o patrão. O patrão
se vê encurralado, não é mais um
bom empregador. E a estrutura social antes tida como
sólida e harmoniosa se desfaz deixando uma massa
de insatisfeitos.
PyMe fez parte da programação da
mostra competitiva do Cinesul deste ano e, se não
recebeu nenhum prêmio, foi ao menos um destaque.
No meio de filmes, cada um a sua maneira, políticos,
traço um tanto esperado de uma cinematografia
realizada no terceiro-mundo, esse longa se diferencia
por tentar estabelecer alguma forma de entendimento
sobre um problema maior, talvez gerador de toda as outras
mazelas sul-americanas, mas que parece só ter
sido notado no fim da década passada. Falando
da dificuldade dessa pequena empresa na Argentina coloca
a questão da fragilidade econômica continental.
E aí está sua característica interessante.
Feito com câmera digital, o filme se passa em
um dia. A empresa é o cenário para dramas
pessoais dos empregados e do patrão e seu filho,
tudo filmado com uma aparente busca incessante por um
realismo cotidiano. Isso funciona como uma forma de
simplificar a produção e concentrar o
interesse na questão da ruína econômica,
mas que é constantemente atrapalhada pelas colocações
narrativas equivocadas do diretor. Pois o caráter
racional que se deseja dar ao filme é quebrado
com os seguidos apelos às emoções
do público. Como se não bastasse a própria
realidade de penúria, o diretor ainda recorre
à música e outros subterfúgios
para manipular a nossa compreensão dos fatos.
E aí o seu filme deixa de ter um fundo político
válido, perdendo toda a capacidade de simplesmente
mostrar o problema e caindo em situações
onde se evidencia um certo ranço de classe. São
recursos que tentam validar um olhar pessoal e politicamente
pouco profundo para entender o que estava se passando
no país.
Existe em PyMe uma atmosfera de simples rejeição
do modelo econômico que levou a Argentina à
bancarrota. Mas críticas só são
feitas depois que seus resultados começam a gerar
desastre. O patrão continua sendo um homem em
quem se deve confiar para ajeitar as coisas e os funcionários
ainda se mostram dispostos a solucionar o problema sem
mudar as suas causas. Então a amargura, marca
maior do filme, passa a ser simples ressentimento de
um país que teve seus sonhos de mercado destruídos.
Culpa-se o capital financeiro por tê-los conduzido
ao buraco sem se lembrar que um dia solicitaram os serviços
desse tipo de financiamento. Desse modo, PyMe
joga a vida dos seus trabalhadores e patrões
em uma ciranda interminável onde a saída
é procurada justamente no que iniciou o colapso.
E o sopro de esperança do final do filme não
pode assim ser visto como salvação por
ser mais uma vez construído encima das mesmas
teorias econômicas desajustadas.
Como pode um filme se destacar com tantos aparentes
erros? PyMe, vendo desse forma, é um apanhado
de lugares comuns sobre as falhas da economia argentina
que mesmo assim é importante por ser exatamente
isso. Não só desnuda a verdade ideológica
usual de uma classe-média latino-americana, nos
destrinchando por completo, mas o faz em tempo real.
É mérito seu tratar de um assunto tão
quente, tão atual, ainda não ultrapassado
e em vias de piorar. PyMe é um filme corajoso
que mexe em um vespeiro e está disposto a ser
contestado. Pode ser um tanto catártico, mas
ninguém pode dizer que não esteja intimamente
relacionado com os acontecimentos mais significativos
de nossa atualidade. Esse é o cinema de agora,
feito no calor da refrega e tem a intenção
de cair como um soco no estômago dos acomodados.
João Mors Cabral
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