PYME (SITIADOS)
Alejandro Malowicki, Argentina, 2002

Os países do terceiro-mundo espalhados por todos os continentes sentem o peso da crise sistêmica do capitalismo da terceira revolução industrial. Os avanços da informática e a incessante necessidade de adequar a produção industrial local aos níveis de produtividade e concorrência impostos pelas crescentes exigências de lucro incompatibilizam o retorno social que deveria estar na base de qualquer produção de bens. Para alimentar o esquema de especulação financeira internacional, base do financiamento em qualquer parte do mundo, as empresas dos países periféricos foram obrigados a assumir compromissos com um capital irreal para que pudessem aplicar esses recursos na modernização de sua estrutura produtiva, pensando que essa seria a única maneira de se manter em um mercado cada vez mais cruel com os pequenos. É claro que isso não poderia dar certo.

Na virada do milênio, quando a Argentina viu esse esquema ruir, a fragilidade das suas finanças comprometidas colocou quase toda a população em uma situação de caos econômico. A economia parece que parou de existir de uma hora para outra e as empresas começaram a desmoronar uma a uma. E com a situação feia, queda de governo e agitação nas ruas são coisas mais do que previsíveis. O aumento brutal da pobreza e o desmantelamento de uma classe-média aristocrática formaram um quadro aterrador que precisava de qualquer maneira ser pensado, estudado, compreendido. Junto com grupos de ação de trabalhadores sem emprego organizando tomadas de fábricas, alguns intelectuais e artistas se viram em meio a uma realidade que clamava por sua atenção imediata.

Antes, mas não muito, quando a saúde financeira e os indicadores sociais argentinos começavam, junto com os outros países latino-americanos, a degenerar a sua classe cinematográfica jovem parece ter despertado para o que estava acontecendo e lançou o aviso sob a forma de um novo cinema. Esses filmes, mais comprometidos com o que se passava em todos os níveis institucionais do país, adotavam uma estética mais livre, às vezes baseada no uso de câmeras digitais, tratando de assuntos atuais e incômodos. Filmes como Pizza, Cerveja e Cigarro e Do Outro Lado da Lei, atualmente em cartaz no Rio de Janeiro, são apenas duas mostras desse cinema que se preocupa com sua realidade social e busca os meios que estão a mão para falar dela. Ao acontecer o desastre total, o cinema já estava preparado para esmiuçá-lo. Ou pelo menos já tinha um aparato expressivo capaz de colocar o assunto em questão. Vídeo, telecinagem, produção barata, locações simples são as bases de um cinema de crise que pode ser realizado nas condições econômicas mais desanimadoras.

PyMe (sitiados) é cria dessa realidade. Filme feito em 2002, já quando a situação começava a apresentar melhoras, segundo a opinião dos economistas de plantão, ele se propõe a fazer um levantamento pontual de todo o acontecido com um forte sentimento de mágoa e alguma desorientação. Afinal, o modelo econômico era apresentado como correto. Ressentido e envolvido em um medo tenso, o longa dá uma idéia do que pode ter sido a vida à beira do abismo na época.

Pequenas e Médias Empresas. É isso que o título que dizer. O filme mostra um negócio de família, próspero, feliz, rentável, até a crise começar a azucrinar o seu dono com ameaça de falir. Sempre comprometido com os credores e os bancos, aos quais deve os juros dos empréstimos, ele já não paga os funcionários há um tempo. Esse é o seu pesadelo. Convencido de que necessitava tornar o seu equipamento de produção mais moderno e competitivo, o patrão negócio pega dinheiro emprestado para financiar essa melhoria. Mas como a economia era falsa, as vendas caíram, as máquinas novas ficaram ociosas e os banqueiros começaram a cobrar o que lhes é devido. PyMe usa essa pequena fábrica como exemplo de algo que estava se generalizando e obrigando todos a seguir um comportamento antes impensável. Os empregados discutem uma greve, pressionam o patrão. O patrão se vê encurralado, não é mais um bom empregador. E a estrutura social antes tida como sólida e harmoniosa se desfaz deixando uma massa de insatisfeitos.

PyMe fez parte da programação da mostra competitiva do Cinesul deste ano e, se não recebeu nenhum prêmio, foi ao menos um destaque. No meio de filmes, cada um a sua maneira, políticos, traço um tanto esperado de uma cinematografia realizada no terceiro-mundo, esse longa se diferencia por tentar estabelecer alguma forma de entendimento sobre um problema maior, talvez gerador de toda as outras mazelas sul-americanas, mas que parece só ter sido notado no fim da década passada. Falando da dificuldade dessa pequena empresa na Argentina coloca a questão da fragilidade econômica continental. E aí está sua característica interessante. Feito com câmera digital, o filme se passa em um dia. A empresa é o cenário para dramas pessoais dos empregados e do patrão e seu filho, tudo filmado com uma aparente busca incessante por um realismo cotidiano. Isso funciona como uma forma de simplificar a produção e concentrar o interesse na questão da ruína econômica, mas que é constantemente atrapalhada pelas colocações narrativas equivocadas do diretor. Pois o caráter racional que se deseja dar ao filme é quebrado com os seguidos apelos às emoções do público. Como se não bastasse a própria realidade de penúria, o diretor ainda recorre à música e outros subterfúgios para manipular a nossa compreensão dos fatos. E aí o seu filme deixa de ter um fundo político válido, perdendo toda a capacidade de simplesmente mostrar o problema e caindo em situações onde se evidencia um certo ranço de classe. São recursos que tentam validar um olhar pessoal e politicamente pouco profundo para entender o que estava se passando no país.

Existe em PyMe uma atmosfera de simples rejeição do modelo econômico que levou a Argentina à bancarrota. Mas críticas só são feitas depois que seus resultados começam a gerar desastre. O patrão continua sendo um homem em quem se deve confiar para ajeitar as coisas e os funcionários ainda se mostram dispostos a solucionar o problema sem mudar as suas causas. Então a amargura, marca maior do filme, passa a ser simples ressentimento de um país que teve seus sonhos de mercado destruídos. Culpa-se o capital financeiro por tê-los conduzido ao buraco sem se lembrar que um dia solicitaram os serviços desse tipo de financiamento. Desse modo, PyMe joga a vida dos seus trabalhadores e patrões em uma ciranda interminável onde a saída é procurada justamente no que iniciou o colapso. E o sopro de esperança do final do filme não pode assim ser visto como salvação por ser mais uma vez construído encima das mesmas teorias econômicas desajustadas.

Como pode um filme se destacar com tantos aparentes erros? PyMe, vendo desse forma, é um apanhado de lugares comuns sobre as falhas da economia argentina que mesmo assim é importante por ser exatamente isso. Não só desnuda a verdade ideológica usual de uma classe-média latino-americana, nos destrinchando por completo, mas o faz em tempo real. É mérito seu tratar de um assunto tão quente, tão atual, ainda não ultrapassado e em vias de piorar. PyMe é um filme corajoso que mexe em um vespeiro e está disposto a ser contestado. Pode ser um tanto catártico, mas ninguém pode dizer que não esteja intimamente relacionado com os acontecimentos mais significativos de nossa atualidade. Esse é o cinema de agora, feito no calor da refrega e tem a intenção de cair como um soco no estômago dos acomodados.

João Mors Cabral