Plataforma
Jia Zhang-ke, Zhan tai, China/França/Japão, 2000

Finalmente, quase três anos depois de sua exibição na Mostra de SP, estréia comercialmente no Brasil este Plataforma. Trata-se de um filme sobre a falência da arte, sobre a incapacidade do sonho em manter-se frente aos imperativos da vida econômica, da "realidade" pairando acima de toda possibilidade de imaginação, de vida diferenciada. Plataforma é um canto fúnebre, um lamento diante da dificuldade de seus personagens em conseguir viver de suas artes. Um filme que, esse sim, teria todo o direito de chamar-se "réquiem para um sonho", pois. A romaria dos espectadores em direção à saída da sala, quando visto o filme na Mostra, acrescentava, ironicamente, a extrema crueldade (do destino? do sistema social? o filme sabiamente insiste em não dizer) que vemos na tela: soa como a negação da assistência em querer acompanhar passo a passo todos os momentos e interstícios da vida de cada um dos personagens, negar um profundo respeito que o filme dedica ao tempo de seus protagonistas, e um ritmo necessariamente lento para acompanhar a passagem de meses e anos onde a única regra geral é a incerteza quanto ao futuro e a iminência do fracasso.

A primeira cena nos entrega uma apresentação do grupo cultural da cidade de Fenyang. Segundo a linha geral do Partido Comunista Chinês a partir da Revolução Cultural, os espetáculos devem ter com função reforçar a crença política dos cidadãos chineses. Logo, qualquer peça montada por esse jovem grupo deve apresentar características políticas. Aquilo que vemos na tela é a representação da vida do Camarada Mao, mas um contato inicial com os personagens já nos mostra o quão desolcada a arte deles está de suas vidas: são adolescentes que querem falar sobre liberdade, que querem acompanhar – mesmo com dificuldades – a música pop feita nas grandes cidades, que desejam eles mesmos serem artistas pop. Se esse desejo é cassado pelo estado, ele o é sem melodrama, sem externação visual ou falada, apenas pela constatação da situação – o que deixa qualquer filme de Zhang Yimou ou Chen Kaige sobre a política comunista chinesa no chinelo. Plataforma somente acompanha a vida de quatro jovens, sem precisar em algum instante remeter ou reduzir a intriga à dimensão política. Nesse sentido, aproxima-se muito da dimensão propriamente de memória coletiva que existe no cinema de Hou Hsiao-hsien, especialmente de A Cidade do Desencanto.

Mesmo que vários filmes recentes (N do E: texto escrito em 2001) tenham um elo muito forte com a política, sobretudo depois que ela foi recolocada em questão a partir dos eventos de 11 de setembro (Promessas, Kandahar) não resta a menor dúvida em afirmar que Plataforma é o filme contemporâneo que mais leva a História e a política a sério, que é o único que tem o apego e o tempo necessários para evoluir e nos fazer perceber a vida e as transformações da China nos anos 80. Com as mudanças na política operadas por Deng Xiaoping, uma liberalização e uma desestatização passam a ser lentamente realizadas. Com o grupo jovem de Fenyang também: inicialmente subvencionados pelo Estado em sua tarefa "cívica" (na verdade propagandística) de transmitir a palavra do Partido, com o novo modelo eles devem se garantir por si mesmos, ser um grupo privatizado. Em compensação, eles agora poderão tocar rock e pop, dançar as músicas que gostam sem risco de correr intervenção do Estado. O tecido político em Plataforma só aparece enquanto dentro das vidas dos personagens, seja naquilo que ele afeta diretamente suas existências seja pelo que aparece nos auto-falantes e na rádio.

Inicialmente, temos quatro amigos: Cui Mingliang, jovem de óculos e logo depois líder da trupe; Yin Ruijuan, a menina que sonha em ser dançarina e por quem Mingliang se apaixona; Chang Jun, o melhor amigo de Mingliang, bonitão, com cabelo ocidentalizado e calças boca-de-sino que já inauguram o desejo de modernidade de uma juventude chinesa cansada da ditadura cultural impingida pelo Partido; e Zhang Pong, a namorada de Chang Jun. Plataforma será o acompanhamento da triste debandada de cada um desses personagens do sonho artístico, assim como a passagem de um país transformado de uma utopia revolucionária que acaba se demonstrando mais uma ditadura à fria lógica do capitalismo, onde a ditadura não é propriamente política, mas se impõe de forma econômica e com a dolorosa ideologia de que "não poderia ser de outra forma". Não é mais um filme que dança no cadáver do comunismo – dos quais o mais vagabundo é o Nenhum a Menos de Zhang Yimou –, e sim uma obra que deixa perceber os diferentes graus de absurdo existentes em ambos os sistemas.

A primeira metade do filme baseia-se na construção dos personagens, nas relações dos dois casais (o amor recusado de Ruijuan, o aborto de Zhang Pong), e na construção do ambiente da cidade de Fenyang, um triste vilarejo no meio do nada, com uma geografia que parece expressar o tom geral de seus habitantes (por conseguinte, um sentimento existencial da China inteira): montanhas de cor bege, céus cinzentos... A encenação de Jia Zhang-ke é distante, preferencialmente de planos longos e fluidos, sempre muito bem construídos (a cena em que Mingliang declara seu amor, onde uma parede ocupa toda a metade esquerda da tela enquanto os dois meninos andam para dentro e fora de nosso campo de visão, um após o outro, é surpreendentemente bonita). A segunda parte de Plataforma é composta de viagens: tendo que ganhar seu sustento unicamente do dinheiro arrecadado com os espetáculos, o grupo passa a viajar para as cidades vizinhas, e vai lentamente perdendo seus membros, e ganhando alguns outros. À medida que passa o filme, a trupe passa a ser formada quase de párias, e todas as mudanças realizadas (grupo pop, estética punk, dançarinas uniformizadas) parecem tentativas patéticas de chamar a atenção, advindas da necessidade de permanecerem vivos enquanto grupo.

Essa parte tem ao menos dois momentos de uma força incrível: num, a dançarina Ruijuan tornada policial está no hall de uma chefatura e coloca seu microsystem no máximo e, de uniforme, dança uma música que gostaria de estar dançando em outro lugar, com outra vestimenta. O outro momento é a viagem à cidade de alguns parentes de Mingliang. Ao se encontrar com sua família, descobre que seu infortúnio como artista repete-se também na vida daquela pequena cidade: com a mudança do regime, o trabalho na mina de carvão, única atividade econômica da região, passa a ser regido pela lógica de lucro do novo sistema, mais draconiana ainda do que a comunista (o começo do contrato de emprego diz: "Vida e morte são coisas do destino", onde a empresa lava as mãos para quaisquer acidentes ocorridos em trabalho). Um primo seu, com a sua mesma idade, terá que adequar-se a esse regime, e na despedida entrega a Mingliang algum dinheiro para que sua irmã (que mora em Fenyang) jamais precise voltar para sua aldeia nativa.

Mas a grande sabedoria de Jia Zhang-ke (jovem artista de quem vimos - nos festivais -o seguinte e igualmente essencial Prazeres Desconhecidos, que estréia seu filme novo em Veneza 2004, e de quem esperamos até hoje que passe também no Brasil seu primeiro filme, Xiao Wu) reside no carinho e no tempo que dedica a seus personagens para que eles existam, na maneira como filma seus desejos e o espaço onde vivem. Plataforma herda seu nome de uma canção homônima, muito popular nos anos 80, um rock que expressa em sua letra o caráter sem muita esperança de toda uma geração. Com muito carinho e no entanto demonstrando toda a crueldade da situação, essa música é tocada no filme quando o caminhão que leva a trupe está enguiçado no meio de uma paisagem desértica. Ao longe, ouve-se um barulho: é um trem, algo que em Fenyang nunca existiu. Eles correm o mais rápido possível para vê-lo mais de perto, mas só conseguem chegar quando ele já passou. Triste e ao mesmo tempo vigoroso, Plataforma é um sopro de juventude e força, de devoção ao mundo (mesmo que o mundo não retribua) e de confiança nos poderes instauradores de mundo do cinema.

Ruy Gardnier