Finalmente, quase três anos
depois de sua exibição na Mostra de SP,
estréia comercialmente no Brasil este Plataforma.
Trata-se de um filme sobre a falência da arte,
sobre a incapacidade do sonho em manter-se frente aos
imperativos da vida econômica, da "realidade"
pairando acima de toda possibilidade de imaginação,
de vida diferenciada. Plataforma é um
canto fúnebre, um lamento diante da dificuldade
de seus personagens em conseguir viver de suas artes.
Um filme que, esse sim, teria todo o direito de chamar-se
"réquiem para um sonho", pois. A romaria
dos espectadores em direção à saída
da sala, quando visto o filme na Mostra, acrescentava,
ironicamente, a extrema crueldade (do destino? do sistema
social? o filme sabiamente insiste em não dizer)
que vemos na tela: soa como a negação
da assistência em querer acompanhar passo a passo
todos os momentos e interstícios da vida de cada
um dos personagens, negar um profundo respeito que o
filme dedica ao tempo de seus protagonistas, e um ritmo
necessariamente lento para acompanhar a passagem de
meses e anos onde a única regra geral é
a incerteza quanto ao futuro e a iminência do
fracasso.
A primeira cena nos entrega uma apresentação
do grupo cultural da cidade de Fenyang. Segundo a linha
geral do Partido Comunista Chinês a partir da
Revolução Cultural, os espetáculos
devem ter com função reforçar a
crença política dos cidadãos chineses.
Logo, qualquer peça montada por esse jovem grupo
deve apresentar características políticas.
Aquilo que vemos na tela é a representação
da vida do Camarada Mao, mas um contato inicial com
os personagens já nos mostra o quão desolcada
a arte deles está de suas vidas: são adolescentes
que querem falar sobre liberdade, que querem acompanhar
mesmo com dificuldades a música
pop feita nas grandes cidades, que desejam eles mesmos
serem artistas pop. Se esse desejo é cassado
pelo estado, ele o é sem melodrama, sem externação
visual ou falada, apenas pela constatação
da situação o que deixa qualquer
filme de Zhang Yimou ou Chen Kaige sobre a política
comunista chinesa no chinelo. Plataforma somente
acompanha a vida de quatro jovens, sem precisar em algum
instante remeter ou reduzir a intriga à dimensão
política. Nesse sentido, aproxima-se muito da
dimensão propriamente de memória coletiva
que existe no cinema de Hou Hsiao-hsien, especialmente
de A Cidade do Desencanto.
Mesmo que vários filmes recentes (N do E: texto
escrito em 2001) tenham um elo muito forte com a política,
sobretudo depois que ela foi recolocada em questão
a partir dos eventos de 11 de setembro (Promessas,
Kandahar) não resta a menor dúvida
em afirmar que Plataforma é o filme contemporâneo
que mais leva a História e a política
a sério, que é o único que tem
o apego e o tempo necessários para evoluir e
nos fazer perceber a vida e as transformações
da China nos anos 80. Com as mudanças na política
operadas por Deng Xiaoping, uma liberalização
e uma desestatização passam a ser lentamente
realizadas. Com o grupo jovem de Fenyang também:
inicialmente subvencionados pelo Estado em sua tarefa
"cívica" (na verdade propagandística)
de transmitir a palavra do Partido, com o novo modelo
eles devem se garantir por si mesmos, ser um grupo privatizado.
Em compensação, eles agora poderão
tocar rock e pop, dançar as músicas que
gostam sem risco de correr intervenção
do Estado. O tecido político em Plataforma
só aparece enquanto dentro das vidas
dos personagens, seja naquilo que ele afeta diretamente
suas existências seja pelo que aparece nos auto-falantes
e na rádio.
Inicialmente, temos quatro amigos: Cui Mingliang, jovem
de óculos e logo depois líder da trupe;
Yin Ruijuan, a menina que sonha em ser dançarina
e por quem Mingliang se apaixona; Chang Jun, o melhor
amigo de Mingliang, bonitão, com cabelo ocidentalizado
e calças boca-de-sino que já inauguram
o desejo de modernidade de uma juventude chinesa cansada
da ditadura cultural impingida pelo Partido; e Zhang
Pong, a namorada de Chang Jun. Plataforma será
o acompanhamento da triste debandada de cada um desses
personagens do sonho artístico, assim como a
passagem de um país transformado de uma utopia
revolucionária que acaba se demonstrando mais
uma ditadura à fria lógica do capitalismo,
onde a ditadura não é propriamente política,
mas se impõe de forma econômica e com a
dolorosa ideologia de que "não poderia ser
de outra forma". Não é mais um filme
que dança no cadáver do comunismo
dos quais o mais vagabundo é o Nenhum a Menos
de Zhang Yimou , e sim uma obra que deixa
perceber os diferentes graus de absurdo existentes em
ambos os sistemas.
A primeira metade do filme baseia-se na construção
dos personagens, nas relações dos dois
casais (o amor recusado de Ruijuan, o aborto de Zhang
Pong), e na construção do ambiente da
cidade de Fenyang, um triste vilarejo no meio do nada,
com uma geografia que parece expressar o tom geral de
seus habitantes (por conseguinte, um sentimento existencial
da China inteira): montanhas de cor bege, céus
cinzentos... A encenação de Jia Zhang-ke
é distante, preferencialmente de planos longos
e fluidos, sempre muito bem construídos (a cena
em que Mingliang declara seu amor, onde uma parede ocupa
toda a metade esquerda da tela enquanto os dois meninos
andam para dentro e fora de nosso campo de visão,
um após o outro, é surpreendentemente
bonita). A segunda parte de Plataforma é
composta de viagens: tendo que ganhar seu sustento unicamente
do dinheiro arrecadado com os espetáculos, o
grupo passa a viajar para as cidades vizinhas, e vai
lentamente perdendo seus membros, e ganhando alguns
outros. À medida que passa o filme, a trupe passa
a ser formada quase de párias, e todas as mudanças
realizadas (grupo pop, estética punk, dançarinas
uniformizadas) parecem tentativas patéticas de
chamar a atenção, advindas da necessidade
de permanecerem vivos enquanto grupo.
Essa parte tem ao menos dois momentos de uma força
incrível: num, a dançarina Ruijuan tornada
policial está no hall de uma chefatura e coloca
seu microsystem no máximo e, de uniforme, dança
uma música que gostaria de estar dançando
em outro lugar, com outra vestimenta. O outro momento
é a viagem à cidade de alguns parentes
de Mingliang. Ao se encontrar com sua família,
descobre que seu infortúnio como artista repete-se
também na vida daquela pequena cidade: com a
mudança do regime, o trabalho na mina de carvão,
única atividade econômica da região,
passa a ser regido pela lógica de lucro do novo
sistema, mais draconiana ainda do que a comunista (o
começo do contrato de emprego diz: "Vida
e morte são coisas do destino", onde a empresa
lava as mãos para quaisquer acidentes ocorridos
em trabalho). Um primo seu, com a sua mesma idade, terá
que adequar-se a esse regime, e na despedida entrega
a Mingliang algum dinheiro para que sua irmã
(que mora em Fenyang) jamais precise voltar para sua
aldeia nativa.
Mas a grande sabedoria de Jia Zhang-ke (jovem artista
de quem vimos - nos festivais -o seguinte e igualmente
essencial Prazeres Desconhecidos, que estréia
seu filme novo em Veneza 2004, e de quem esperamos até
hoje que passe também no Brasil seu primeiro
filme, Xiao Wu) reside no carinho e no tempo
que dedica a seus personagens para que eles existam,
na maneira como filma seus desejos e o espaço
onde vivem. Plataforma herda seu nome de uma
canção homônima, muito popular nos
anos 80, um rock que expressa em sua letra o caráter
sem muita esperança de toda uma geração.
Com muito carinho e no entanto demonstrando toda a crueldade
da situação, essa música é
tocada no filme quando o caminhão que leva a
trupe está enguiçado no meio de uma paisagem
desértica. Ao longe, ouve-se um barulho: é
um trem, algo que em Fenyang nunca existiu. Eles correm
o mais rápido possível para vê-lo
mais de perto, mas só conseguem chegar quando
ele já passou. Triste e ao mesmo tempo vigoroso,
Plataforma é um sopro de juventude e força,
de devoção ao mundo (mesmo que o mundo
não retribua) e de confiança nos poderes
instauradores de mundo do cinema.
Ruy Gardnier
|