Esboço de crítica
O plano-detalhe do olho azul-céu de João
César Monteiro foi o verdadeiro "último
mergulho" do diretor, uma imagem extremamente passional
e provocativa (e não poderia ser de outro jeito).
Monteiro deixou conosco não apenas o que
viu, mas também aquilo com o que viu:
o globo ocular reflete a imagem da praça a que
João Vuvu, seu personagem em Vai e Vem,
retorna em vários trechos do filme. Aquela imagem
congelada do olho foi sua transfixação
do mundo, e é curioso como ela nos devolve à
sua obra como um todo, nos faz recapitular rapidamente
toda a singularidade do universo por ele trazido ao
cinema. O contra-campo dessa imagem (em si mesma, absurdamente
concreta) é uma tela imaginária que projeta
a obra de Monteiro em forma de cachoeira. É uma
experiência análoga ao hiper-flashback
que as pessoas que já estiveram à beira
da morte dizem acontecer em questão de segundos,
no momento do perigo: toda a vida como que editada num
trailer. Mas proponho que interrompamos o fluxo vertiginoso
propagado pela imagem final de Vai e Vem e o
congelemos no momento em que atravessar a tal tela imaginária
o filme O Último Mergulho, que o antecede
em uma década. Feito isso, a sobre-impressão
que se forma no olho de Monteiro nos dá uma nova
idéia sobre a beleza desse filme que se fecha
justamente na mesma exclamação muda de
Vai e Vem: "Com vocês, a vida!".
A parte do olho em que a imagem da praça se reflete
visivelmente é a íris, a membrana circular
"furada" no centro pela pupila e responsável
pela cor dos olhos dos diferentes indivíduos.
A palavra íris tem ainda outros significados:
pode ser o espectro solar e seu arco-celeste, e também
um sinal de alegria, uma promessa de paz e felicidade
– sem esquecer, é claro, que Íris pode
ser nome de mulher. Essas variações de
cores e de significados, uma vez apropriadas por Monteiro,
são suas formas de matizar o mundo. De um lado
abstrato e, por assim dizer, puro, promessas dignas
de uma mãe bondosa. Do outro lado, físico
(e igualmente puro, se mudarmos os critérios),
um espectro que remete à efervescência
da vida, à volúpia feminina, às
variações de cores que se acham nos letreiros
luminosos dos bares e bordéis freqüentados
pelos personagens de O Último Mergulho.
Tudo que pode ser tomado por vida está complexamente
imbricado no cinema de João César Monteiro.
Na verdade, trata-se de um cinema – e O Último
Mergulho é excelente para exemplificar –
extremamente simples. A dificuldade, contudo, está
no fato de que quanto mais simples seus filmes são,
mais complexos se nos revelam em contrapartida.
O Último Mergulho tem muito de uma simplicidade
narrativa e conteudística, mas é permeado
por ilhas de reflexão existencial e experimentação
estética. O filme começa quando Eloi,
personagem do "velho safado" que em outros
filmes cabe ao próprio Monteiro interpretar,
encontra o jovem Samuel sentado à beira das docas,
com semblante taciturno. Eloi, que o observava por mais
de duas horas, aborda-lhe no momento em que se daria
o pulo suicida, dizendo que não é ainda
hora: antes é preciso "meter uns copinhos
no bucho". Na cena seguinte, num bar de típica
iconografia de região portuária, com decoração
altamente kitsch e um letreiro aceso na parede exibindo
o nome "York Burger", uma mulher enche canecas
de chope e as entrega aos dois recém-conhecidos,
expressando qual será a busca do filme: as mulheres,
a bebida, os passeios noturnos, os prazeres mundanos.
O que Eloi fez a Samuel foi tão-somente um convite
à vida – e esta desfilará sem medo ao
longo do filme, variando seu local e seu modo de acontecimento.
Eloi proporciona a Samuel uma noitada daquelas: vão
a um bordel, saem de lá com três putas,
passam pelo festejo popular nas ruas de Lisboa, terminam
num hotel com as meninas. Samuel, como jovem romântico
que se apresenta (ele começa o filme sob o signo
mor do ultra-romantismo: o suicídio), apaixona-se
por Esperança (Dominique Babe), a prostituta
muda que Eloi diz ser sua filha (a moral convencional
rui muito cedo nos filmes de Monteiro). Ao fim da noite
eles trocam carinhos infantis em frente à câmera;
a parte, digamos, adulta da relação dos
dois só nos é trazida através do
som, enquanto eles brincam diante da câmera –
cena que compõe, ao lado de outras que serão
descritas mais adiante, uma discussão acerca
do próprio cinema.
O modo como Monteiro filma essa noitada é bastante
caloroso e afetivo – tanto com os personagens quanto
com o espaço. A importância da presença
da população da cidade foi tamanha – não
só nessas cenas noturnas, mas também em
algumas diurnas – que os créditos finais agradecem
ao povo de Lisboa. O filme não existiria sem
aquele calor humano, sem aquele cordão de pessoas
a envolver e observar os casais (a exemplo de Samuel
e Esperança) que dançam no meio da praça
repleta de chafarizes, luminárias, imagens religiosas.
Mas o filme não se resume ao olhar direto (e
aparentemente curioso em relação a tudo)
impresso nessas cenas, que suscitam um certo ar de improviso.
Há um sentido de encenação e de
intertextualidade muito bem construído. À
semelhança de algumas pérolas de Manoel
de Oliveira, O Último Mergulho confunde
as fronteiras entre o espaço cênico do
teatro e o dispositivo cinematográfico. Se nas
cenas de rua imperaram a câmera na mão
e o corte liberto das regras de continuidade, na cena
em que um número de dança será
interpretado pela atriz de um espetáculo e depois
por Esperança, a câmera realizará
suntuosos e retilíneos movimentos no carrinho,
em plano-seqüência, alternando-se à
expressão corporal sinuosa das dançarinas.
Quando é a vez de Esperança se projetar
no papel da dançarina, o filme abafa a trilha
sonora não só para fazer jus à
mudez da personagem, mas principalmente para retornar
à lógica primitiva do "cinema de
atrações", e a cena se torna um espetáculo
com a simplicidade e a fascinação dos
filminhos de bailarinas do cinetoscópio de Edison.
Ao final da dança, contudo, as dançarinas
do filme de Monteiro tiram a roupa: até que ponto
a "inocência" da imagem e a sua transparência
pornográfica não se coadunam?
O Último Mergulho, portanto, é
evidentemente um filme que fala, entre tantas outras
coisas, do próprio cinema, e que, por conseguinte,
faz referências a outros filmes ou cineastas.
Há, por exemplo, a prostituta italiana nascida
em Stromboli, que numa cena aparece amamentando seu
bebê de colo e em outra, pouco depois, dança
a bordo de um navio observada por diversos marinheiros,
ao som de uma música rocambolesca, parecendo
uma personagem de Rossellini num filme de Fellini. Já
com uma companheira sua de trabalho se dá o inverso:
esta outra, cujo estilo está mais para uma personagem
de Fellini (ou até de Almodóvar), é
apanhada numa cena de pura deambulação
(Alemanha Ano Zero, Stromboli).
Se Monteiro chamou esse filme de O Último
Mergulho – Esboço de Filme, é porque
sabe que a vida de qualquer um é eterno rascunho
mesmo. Eloi instila vida em Samuel, mas a deixa somente
para o jovem, preferindo o suicídio ao final.
Um vampirismo às avessas, mas sem fazer do filme
uma mera fábula da sucessão de gerações.
As lindas imagens de girassóis e pássaros
ao final, embaladas pelos fragmentos de Hyperion
(Friedrich Hölderlin) lidos por Luís Miguel
Cintra, lembram que para toda a beleza do mundo existe
um outro lado tão agressivo quanto verdadeiro
(a crua discussão de Eloi com sua mulher reumática
no início do filme e suas constantes afirmações
de que o mundo está cheio de coisa errada já
nos haviam atentado para isso). Eloi parece querer dizer
que o mundo é uma ratoeira, mas cabe a nós
pegar o queijo.
Na personagem muda, de nome Esperança, temos
uma grande exposição da vontade de Monteiro
de não aderir a nenhum discurso pronto, de fugir
a tudo que diziam do mundo e que ele não conseguia
admitir por completo. Nada de apreensão intelectual
do mundo, e sim de percurso do olhar por todas as suas
coisas. Assim como todas as cores misturadas fornecem
o branco, é possível que os sons todos
do mundo se somem no silêncio. Mas não
faremos silêncio para homenagear João César
Monteiro: povoaremos as ruas e, principalmente, os cinemas
onde estiverem passando seus esboços de filmes.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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