O ÚLTIMO MERGULHO
Portugal, 1992

Esboço de crítica

O plano-detalhe do olho azul-céu de João César Monteiro foi o verdadeiro "último mergulho" do diretor, uma imagem extremamente passional e provocativa (e não poderia ser de outro jeito). Monteiro deixou conosco não apenas o que viu, mas também aquilo com o que viu: o globo ocular reflete a imagem da praça a que João Vuvu, seu personagem em Vai e Vem, retorna em vários trechos do filme. Aquela imagem congelada do olho foi sua transfixação do mundo, e é curioso como ela nos devolve à sua obra como um todo, nos faz recapitular rapidamente toda a singularidade do universo por ele trazido ao cinema. O contra-campo dessa imagem (em si mesma, absurdamente concreta) é uma tela imaginária que projeta a obra de Monteiro em forma de cachoeira. É uma experiência análoga ao hiper-flashback que as pessoas que já estiveram à beira da morte dizem acontecer em questão de segundos, no momento do perigo: toda a vida como que editada num trailer. Mas proponho que interrompamos o fluxo vertiginoso propagado pela imagem final de Vai e Vem e o congelemos no momento em que atravessar a tal tela imaginária o filme O Último Mergulho, que o antecede em uma década. Feito isso, a sobre-impressão que se forma no olho de Monteiro nos dá uma nova idéia sobre a beleza desse filme que se fecha justamente na mesma exclamação muda de Vai e Vem: "Com vocês, a vida!".

A parte do olho em que a imagem da praça se reflete visivelmente é a íris, a membrana circular "furada" no centro pela pupila e responsável pela cor dos olhos dos diferentes indivíduos. A palavra íris tem ainda outros significados: pode ser o espectro solar e seu arco-celeste, e também um sinal de alegria, uma promessa de paz e felicidade – sem esquecer, é claro, que Íris pode ser nome de mulher. Essas variações de cores e de significados, uma vez apropriadas por Monteiro, são suas formas de matizar o mundo. De um lado abstrato e, por assim dizer, puro, promessas dignas de uma mãe bondosa. Do outro lado, físico (e igualmente puro, se mudarmos os critérios), um espectro que remete à efervescência da vida, à volúpia feminina, às variações de cores que se acham nos letreiros luminosos dos bares e bordéis freqüentados pelos personagens de O Último Mergulho. Tudo que pode ser tomado por vida está complexamente imbricado no cinema de João César Monteiro. Na verdade, trata-se de um cinema – e O Último Mergulho é excelente para exemplificar – extremamente simples. A dificuldade, contudo, está no fato de que quanto mais simples seus filmes são, mais complexos se nos revelam em contrapartida.

O Último Mergulho tem muito de uma simplicidade narrativa e conteudística, mas é permeado por ilhas de reflexão existencial e experimentação estética. O filme começa quando Eloi, personagem do "velho safado" que em outros filmes cabe ao próprio Monteiro interpretar, encontra o jovem Samuel sentado à beira das docas, com semblante taciturno. Eloi, que o observava por mais de duas horas, aborda-lhe no momento em que se daria o pulo suicida, dizendo que não é ainda hora: antes é preciso "meter uns copinhos no bucho". Na cena seguinte, num bar de típica iconografia de região portuária, com decoração altamente kitsch e um letreiro aceso na parede exibindo o nome "York Burger", uma mulher enche canecas de chope e as entrega aos dois recém-conhecidos, expressando qual será a busca do filme: as mulheres, a bebida, os passeios noturnos, os prazeres mundanos. O que Eloi fez a Samuel foi tão-somente um convite à vida – e esta desfilará sem medo ao longo do filme, variando seu local e seu modo de acontecimento. Eloi proporciona a Samuel uma noitada daquelas: vão a um bordel, saem de lá com três putas, passam pelo festejo popular nas ruas de Lisboa, terminam num hotel com as meninas. Samuel, como jovem romântico que se apresenta (ele começa o filme sob o signo mor do ultra-romantismo: o suicídio), apaixona-se por Esperança (Dominique Babe), a prostituta muda que Eloi diz ser sua filha (a moral convencional rui muito cedo nos filmes de Monteiro). Ao fim da noite eles trocam carinhos infantis em frente à câmera; a parte, digamos, adulta da relação dos dois só nos é trazida através do som, enquanto eles brincam diante da câmera – cena que compõe, ao lado de outras que serão descritas mais adiante, uma discussão acerca do próprio cinema.

O modo como Monteiro filma essa noitada é bastante caloroso e afetivo – tanto com os personagens quanto com o espaço. A importância da presença da população da cidade foi tamanha – não só nessas cenas noturnas, mas também em algumas diurnas – que os créditos finais agradecem ao povo de Lisboa. O filme não existiria sem aquele calor humano, sem aquele cordão de pessoas a envolver e observar os casais (a exemplo de Samuel e Esperança) que dançam no meio da praça repleta de chafarizes, luminárias, imagens religiosas.

Mas o filme não se resume ao olhar direto (e aparentemente curioso em relação a tudo) impresso nessas cenas, que suscitam um certo ar de improviso. Há um sentido de encenação e de intertextualidade muito bem construído. À semelhança de algumas pérolas de Manoel de Oliveira, O Último Mergulho confunde as fronteiras entre o espaço cênico do teatro e o dispositivo cinematográfico. Se nas cenas de rua imperaram a câmera na mão e o corte liberto das regras de continuidade, na cena em que um número de dança será interpretado pela atriz de um espetáculo e depois por Esperança, a câmera realizará suntuosos e retilíneos movimentos no carrinho, em plano-seqüência, alternando-se à expressão corporal sinuosa das dançarinas. Quando é a vez de Esperança se projetar no papel da dançarina, o filme abafa a trilha sonora não só para fazer jus à mudez da personagem, mas principalmente para retornar à lógica primitiva do "cinema de atrações", e a cena se torna um espetáculo com a simplicidade e a fascinação dos filminhos de bailarinas do cinetoscópio de Edison. Ao final da dança, contudo, as dançarinas do filme de Monteiro tiram a roupa: até que ponto a "inocência" da imagem e a sua transparência pornográfica não se coadunam?

O Último Mergulho, portanto, é evidentemente um filme que fala, entre tantas outras coisas, do próprio cinema, e que, por conseguinte, faz referências a outros filmes ou cineastas. Há, por exemplo, a prostituta italiana nascida em Stromboli, que numa cena aparece amamentando seu bebê de colo e em outra, pouco depois, dança a bordo de um navio observada por diversos marinheiros, ao som de uma música rocambolesca, parecendo uma personagem de Rossellini num filme de Fellini. Já com uma companheira sua de trabalho se dá o inverso: esta outra, cujo estilo está mais para uma personagem de Fellini (ou até de Almodóvar), é apanhada numa cena de pura deambulação (Alemanha Ano Zero, Stromboli).

Se Monteiro chamou esse filme de O Último Mergulho – Esboço de Filme, é porque sabe que a vida de qualquer um é eterno rascunho mesmo. Eloi instila vida em Samuel, mas a deixa somente para o jovem, preferindo o suicídio ao final. Um vampirismo às avessas, mas sem fazer do filme uma mera fábula da sucessão de gerações. As lindas imagens de girassóis e pássaros ao final, embaladas pelos fragmentos de Hyperion (Friedrich Hölderlin) lidos por Luís Miguel Cintra, lembram que para toda a beleza do mundo existe um outro lado tão agressivo quanto verdadeiro (a crua discussão de Eloi com sua mulher reumática no início do filme e suas constantes afirmações de que o mundo está cheio de coisa errada já nos haviam atentado para isso). Eloi parece querer dizer que o mundo é uma ratoeira, mas cabe a nós pegar o queijo.

Na personagem muda, de nome Esperança, temos uma grande exposição da vontade de Monteiro de não aderir a nenhum discurso pronto, de fugir a tudo que diziam do mundo e que ele não conseguia admitir por completo. Nada de apreensão intelectual do mundo, e sim de percurso do olhar por todas as suas coisas. Assim como todas as cores misturadas fornecem o branco, é possível que os sons todos do mundo se somem no silêncio. Mas não faremos silêncio para homenagear João César Monteiro: povoaremos as ruas e, principalmente, os cinemas onde estiverem passando seus esboços de filmes.

Luiz Carlos Oliveira Jr.