OS AMANTES DE KATIE TIPPEL
Paul Verhoeven, Keetje Tippel, Holanda, 1975

Existe um dilema que envolve a crítica de um filme de mais de vinte anos de idade que consiste no uso ou não das informações adquiridas muitos anos depois de seu lançamento, no caso, a opinião do diretor (com seus arrependimentos e frustrações) contida no DVD americano do filme. Seria negligente, ou no mínimo leviano, não levar em conta as intenções de Paul Verhoeven na época, pois além de tratar-se de um belo trabalho de adaptação literária, apesar de muito diferente do que o diretor pretendia, ainda encontra ecos no posterior Showgirls, com a escalada social de uma mulher, pelo apelo sexual, passando por diversas humilhações. Interessante notar que os dois filmes são agora depreciados pelo autor, o que mostra sua implicância com seus filmes onde o sexo conduz a narrativa. Louca Paixão era generoso em cenas de sexo e nudez, mas a sexualidade estava bem inserida num contexto que permitia que o filme vivesse independente dela. A narrativa não dependia das cenas de sexo. Em Showgirls nota-se que as cenas de sexo se sobrepõem à trama, enfraquecendo seu teor político. Mas o filme tem inúmeros defensores, aqui mesmo na Contracampo. Os Amantes de Katie Tippel sofre bem menos com essa sexualidade descontrolada, talvez porque seja mais bem dirigido, com uma encenação elegante, uma grande preocupação com a construção do plano.

O que atraiu Verhoeven para o projeto foi a possibilidade de fazer um grande painel sobre o surgimento do socialismo na Holanda do século XIX. Ele se lamenta de ter sido podado pelos produtores, receosos de que um painel dessa envergadura fosse aumentar muito o orçamento. O filme acabou centrando-se mais na personagem de Katie Tippel, aliás, Neel Dorf, mulher da alta-sociedade que narrou, aos 50 e poucos anos, sua ascenção social, da prostituição como único meio de sustentar sua família à condição de testemunha ocular (e de dentro) da decadência monárquica. O papel é vivido por Monique Van de Ven, que já havia trabalhado com Verhoeven no filme anterior, Louca Paixão, como a amada de Rutger Hauer, que também atua aqui, no papel de um bancário ambicioso. Mesmo assim, Verhoeven acha que, uma vez deixado o lado social como pano de fundo, deveria ter aprofundado a personagem de Katie, tornando-a menos boneca, mais humana.

A atriz exagera nas caras e bocas, forçando o aspecto infantil da personagem, mas não se pode dizer que ela compromete o filme, mesmo porque seu belo corpo aparece com generosidade, reforçando o apelo carnal que Katie Tippel desperta nos homens. Sexualidade é a palavra. Em cada fotograma, um pouco graças à soberba fotografia escura de Jan de Bont, existe uma exuberância da sexualidade da personagem, sempre inconsciente (pois ela não é criança, mas é incrivelmente infantilizada e ingênua). Mesmo quando Katie é levada, primeiro pela irmã, em seguida pela mãe, à prostituição, ela nunca usa seu corpo provocativamente. Em contrapartida, mesmo quando vestida, sua sexualidade contagia os homens, a ponto de levá-los a um incontido desejo de tocá-la. Quando finalmente chega a anunciada seqüência do estupro (há vários sinais de que o estupro era iminente), ela é filmada com crueza, de modo a não suavizar a apreensão do ocorrido pelo espectador. Começa com Katie brincando de fazer animais com as sombras de suas mãos, quando vê surgir a sombra de um pênis ereto. Ela é estuprada por seu patrão, dono de uma loja de roupas e acessórios, perde a virgindade, e seu sangue passa para o pênis, depois para o lenço (o sangue em outro lenço aparecerá numa cena carregada de simbolismo mais adiante no filme). Ao sair, ela tem um momento de alegria juvenil quando atira uma pedra na vidraça da loja, mas depois de correr para a esquina mais próxima, tem consciência de que foi violentada. Verhoeven capta muito bem a diferença entre profanação física (consumada) e profanação espiritual (não consumada, pois Katie ainda consegue ser como criança poucos momentos depois do estupro). Katie permanece inocente.

Pouco depois, ela participa de uma passeata (intenção original de Verhoeven: sublinhar o aspecto político do filme), é golpeada pelos policiais e vai para o hospital, onde é novamente apalpada por médicos, sendo enganada pelo diretor do hospital, que inventa uma tuberculose para fornecer remédios em troca de sexo. É nessa hora que surge novamente o sangue no lenço, novamente com intenções sexuais, numa cena em que um esqueleto contracena brilhantemente com o corpo nu e frágil da atriz e o médico com seu terno preto.

Curioso como Verhoeven destaca a sexualidade como algo externo à vida, dizendo que se impregnou de visões eróticas em Louca Paixão, tendo conseguido vencê-las somente com o filme posterior a Katie Tippel, o irregular Soldado de Laranja. Ele chega a lamentar a alta dose de erotismo imposto ao filme. Mas sua maior frustração é justamente o ponto alto do filme, o toque subversivo: a vampirização de Katie, profanando as memórias de Neel Dorf e colocando a protagonista como uma eterna prostituta. Verhoeven se arrepende de não ter feito do filme um longo flashback, com Katie, já senhora, recordando seus tempos de proletária depois de observar mendigos da janela de sua mansão. Difícil, porém, imaginar um final melhor que o congelamento no rosto de Katie, depois que ela suga o sangue que corre da testa de seu futuro marido e fica com os lábios ensanguentados. Desta vez, o sangue surge como elemento que a livra de uma condição de oprimida. Ela deixa de ser inocente. Ascensão social feita com sangue, como numa revolução.

No que concerne à decupagem, Katie é o filme mais conservador de Verhoeven até o momento. Longe dos cortes livres de Business is Business, e muito mais distantes dos cortes sacanas de Louca Paixão, onde ele fazia contraposições e analogias, buscando surpreender o espectador. Katie possui cortes e movimentos de câmera meramente funcionais. Em um único instante, Verhoeven faz uma analogia simplória entre a profanação de uma vagina e o corte de um pedaço de carne. Excetuando esse momento, o que predomina é o classissismo. Como se Louca Paixão houvesse encerrado momentaneamente a criatividade deflagradora da estética do diretor, tornando seu próximo projeto algo mais preso às regras do cinema pretensamente artístico. Ainda assim, um belo e errado filme clássico.


Sérgio Alpendre