Existe um dilema que envolve a crítica de um
filme de mais de vinte anos de idade que consiste no
uso ou não das informações adquiridas
muitos anos depois de seu lançamento, no caso,
a opinião do diretor (com seus arrependimentos
e frustrações) contida no DVD americano
do filme. Seria negligente, ou no mínimo leviano,
não levar em conta as intenções
de Paul Verhoeven na época, pois além
de tratar-se de um belo trabalho de adaptação
literária, apesar de muito diferente do que o
diretor pretendia, ainda encontra ecos no posterior
Showgirls, com a escalada social de uma mulher,
pelo apelo sexual, passando por diversas humilhações.
Interessante notar que os dois filmes são agora
depreciados pelo autor, o que mostra sua implicância
com seus filmes onde o sexo conduz a narrativa. Louca
Paixão era generoso em cenas de sexo e nudez,
mas a sexualidade estava bem inserida num contexto que
permitia que o filme vivesse independente dela. A narrativa
não dependia das cenas de sexo. Em Showgirls
nota-se que as cenas de sexo se sobrepõem à
trama, enfraquecendo seu teor político. Mas o
filme tem inúmeros defensores, aqui mesmo na
Contracampo. Os Amantes de Katie Tippel sofre
bem menos com essa sexualidade descontrolada, talvez
porque seja mais bem dirigido, com uma encenação
elegante, uma grande preocupação com a
construção do plano.
O que atraiu Verhoeven para o projeto foi a possibilidade
de fazer um grande painel sobre o surgimento do socialismo
na Holanda do século XIX. Ele se lamenta de ter
sido podado pelos produtores, receosos de que um painel
dessa envergadura fosse aumentar muito o orçamento.
O filme acabou centrando-se mais na personagem de Katie
Tippel, aliás, Neel Dorf, mulher da alta-sociedade
que narrou, aos 50 e poucos anos, sua ascenção
social, da prostituição como único
meio de sustentar sua família à condição
de testemunha ocular (e de dentro) da decadência
monárquica. O papel é vivido por Monique
Van de Ven, que já havia trabalhado com Verhoeven
no filme anterior, Louca Paixão, como
a amada de Rutger Hauer, que também atua aqui,
no papel de um bancário ambicioso. Mesmo assim,
Verhoeven acha que, uma vez deixado o lado social como
pano de fundo, deveria ter aprofundado a personagem
de Katie, tornando-a menos boneca, mais humana.
A atriz exagera nas caras e bocas, forçando o
aspecto infantil da personagem, mas não se pode
dizer que ela compromete o filme, mesmo porque seu belo
corpo aparece com generosidade, reforçando o
apelo carnal que Katie Tippel desperta nos homens. Sexualidade
é a palavra. Em cada fotograma, um pouco graças
à soberba fotografia escura de Jan de Bont, existe
uma exuberância da sexualidade da personagem,
sempre inconsciente (pois ela não é criança,
mas é incrivelmente infantilizada e ingênua).
Mesmo quando Katie é levada, primeiro pela irmã,
em seguida pela mãe, à prostituição,
ela nunca usa seu corpo provocativamente. Em contrapartida,
mesmo quando vestida, sua sexualidade contagia os homens,
a ponto de levá-los a um incontido desejo de
tocá-la. Quando finalmente chega a anunciada
seqüência do estupro (há vários
sinais de que o estupro era iminente), ela é
filmada com crueza, de modo a não suavizar a
apreensão do ocorrido pelo espectador. Começa
com Katie brincando de fazer animais com as sombras
de suas mãos, quando vê surgir a sombra
de um pênis ereto. Ela é estuprada por
seu patrão, dono de uma loja de roupas e acessórios,
perde a virgindade, e seu sangue passa para o pênis,
depois para o lenço (o sangue em outro lenço
aparecerá numa cena carregada de simbolismo mais
adiante no filme). Ao sair, ela tem um momento de alegria
juvenil quando atira uma pedra na vidraça da
loja, mas depois de correr para a esquina mais próxima,
tem consciência de que foi violentada. Verhoeven
capta muito bem a diferença entre profanação
física (consumada) e profanação
espiritual (não consumada, pois Katie ainda consegue
ser como criança poucos momentos depois do estupro).
Katie permanece inocente.
Pouco depois, ela participa de uma passeata (intenção
original de Verhoeven: sublinhar o aspecto político
do filme), é golpeada pelos policiais e vai para
o hospital, onde é novamente apalpada por médicos,
sendo enganada pelo diretor do hospital, que inventa
uma tuberculose para fornecer remédios em troca
de sexo. É nessa hora que surge novamente o sangue
no lenço, novamente com intenções
sexuais, numa cena em que um esqueleto contracena brilhantemente
com o corpo nu e frágil da atriz e o médico
com seu terno preto.
Curioso como Verhoeven destaca a sexualidade como algo
externo à vida, dizendo que se impregnou de visões
eróticas em Louca Paixão, tendo
conseguido vencê-las somente com o filme posterior
a Katie Tippel, o irregular Soldado de Laranja.
Ele chega a lamentar a alta dose de erotismo imposto
ao filme. Mas sua maior frustração é
justamente o ponto alto do filme, o toque subversivo:
a vampirização de Katie, profanando as
memórias de Neel Dorf e colocando a protagonista
como uma eterna prostituta. Verhoeven se arrepende de
não ter feito do filme um longo flashback, com
Katie, já senhora, recordando seus tempos de
proletária depois de observar mendigos da janela
de sua mansão. Difícil, porém,
imaginar um final melhor que o congelamento no rosto
de Katie, depois que ela suga o sangue que corre da
testa de seu futuro marido e fica com os lábios
ensanguentados. Desta vez, o sangue surge como elemento
que a livra de uma condição de oprimida.
Ela deixa de ser inocente. Ascensão social feita
com sangue, como numa revolução.
No que concerne à decupagem, Katie é o
filme mais conservador de Verhoeven até o momento.
Longe dos cortes livres de Business is Business,
e muito mais distantes dos cortes sacanas de Louca
Paixão, onde ele fazia contraposições
e analogias, buscando surpreender o espectador. Katie
possui cortes e movimentos de câmera meramente
funcionais. Em um único instante, Verhoeven faz
uma analogia simplória entre a profanação
de uma vagina e o corte de um pedaço de carne.
Excetuando esse momento, o que predomina é o
classissismo. Como se Louca Paixão houvesse
encerrado momentaneamente a criatividade deflagradora
da estética do diretor, tornando seu próximo
projeto algo mais preso às regras do cinema pretensamente
artístico. Ainda assim, um belo e errado filme
clássico.
Sérgio Alpendre
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