O último filme de Verhoeven na Holanda sofre
de uma esquizofrenia salutar. Pois se o escritor vivido
por Jeroen Krabbé, numa interpretação
bem próxima da caricatura, é atormentado
pelas mais bizarras alucinações, somos
testemunhas de um dos mais bizarros casos de filme que
navega entre vários gêneros sem se decidir
por um. Não que o filme seja indeciso, ou que
Verhoeven tenha encontrado dificuldades para alcançar
o tom certo entre a sátira e o escárnio.
Interessa mais ao diretor brincar com a expectativa
do espectador, fazendo com que o filme ameace enveredar
para direções opostas às que de
fato ele envereda. Assim, quando após dois minutos
de tela negra com música de suspense, seguidos
de planos de uma aranha devorando um inseto em sua teia,
aparece o escritor acordando trêmulo, necessitado
que está de uma boa bebida. Não que ver
em cena um dependente alcoólico seja engraçado,
mas há uma quebra no clima de suspense que havia
se instaurado, causando estranheza imediata no espectador.
Gerard Reve (Krabbé) é um escritor alcoólatra
que se envolve com uma loira fatal, Christine, mas se
apaixona pelo amante dela. Aos poucos, ele fica sabendo
que ela foi viúva por três vezes, e começa
a acreditar que pode ser o quarto a se envolver com
ela e morrer.
Verhoeven inteligentemente cerca o personagem com sinais
de morte. Em um momento, uma ave desfalece e quase o
acerta em sua queda. Em outro, ele observa um senhor
que se afogou. Há também o caixão
na estação, com a flâmula dobrada,
dando a entender que se trata de uma pessoa chamada
Gerard. O carro funebre aparecerá mais tarde,
causando inclusive um grave acidente. Ele sofre, ainda,
com alucinações lúgubres, como
a do homem que sai do mar com um olho arrancado. O vermelho
está sempre presente como mais um elemento simbólico
(as pétalas da rosa que a mulher que ele acredita
ser Maria, mãe de Jesus, carrega; o sangue de
bois esquartejados ou de órgãos decepados;
a roupa de Christine; o forte batom que ela usa; o molho
de tomate que escorre; a sunga que Herman usa na foto,
e que voltará numa imaginação futura...).
A obsessão com tesouras também o atormenta.
Em certo momento, ele sonha com Christine cortando seu
pênis fora com uma tesoura, depois disso vemos
Christine simular um corte com as mãos por diversas
vezes, e mais adiante a vemos cortando o cabelo dele
(ela é herdeira de um luxuoso salão de
belezas). Mas se perder na história do filme
não é tão recompensador, pois seu
maior trunfo está em outros atributos.
O filme todo é construído com o objetivo
de desconcertar. Nesse sentido, podemos dizer que é
o mais bem sucedido dos filmes do diretor, pois nos
instaura no caos, privando-nos de explicações.
Ora tende para um onirismo típico de Buñuel,
com imagens religiosas e sexuais se confundindo, ora
descamba para um humor negro e incômodo, como
nas tentativas de Gerard de encontrar Herman. Essas
mudanças de tom são muito bem operadas
pelo diretor, tornando difícil a sempre desnecessária
catalogação imposta pelos cadernos culturais.
No ápice transgressivo do filme, ele entra numa
igreja, sobe no altar e começa a rezar, mas o
movimento da câmera o leva (e a nós, espectadores)
a descobrir Herman, vestido unicamente com a sunga vermelha
da foto, no lugar de Jesus, numa cruz na lateral da
igreja. Ele vai até lá e lhe beija os
pés, que têm sangue ao redor dos enormes
pregos, para depois abaixar a sunga, tendo antes passado
a mão no pênis dele. Ele mostra se deleitar
com a oportunidade. Sua imaginação é
interrompida com a chegada de uma senhora, que nos é
revelada por um sutil movimento de câmera. Essa
seqüência mostra como não devemos
desprezar a elaborada mise-en-scène de Verhoeven.
Um olhar de soslaio conduz a câmera, que conduz
o personagem e o espectador, em uma perfeita noção
de como manipular o olhar de quem vê o filme.
Mas Verhoeven, que é católico, evita as
explicações. No salão, enquanto
o cabelo de Gerard está sendo cortado, uma mulher
revela o sonho de seu marido, algo semelhante ao que
ele mesmo sonhara na noite anterior (o corte do pênis),
mas Christine corta o relato com o forte barulho do
secador. Mais um signo buñueliano, diretor que
sempre encobria as explicações com ruídos,
como o que Hitchcock utilizou em Intriga Internacional
(a turbina do avião). Somos freqüentemente
despistados por olhares misteriosos e ambientações
escuras, com um interessante jogo de sombras. Em um
momento, a sombra de um flamingo está a frente
da sombra do escritor. Seria mais um simbolismo fatídico?
Ou mais uma referência aos cineastas citados?
Hitchcock fazia simbolismos com sombras, principalmente
na fase inglesa; e Buñuel adorava aves.
Buñuel, Hitchcock...existe ainda uma outra vertente
no cinema de Verhoeven, inaugurada a partir de Spetters,
o filme anterior, que é a influência de
Cronenberg. Como o diretor canadense, Verhoeven enche
seu filme de mutilações e coisas decrépitas,
mas, ao contrário de Cronenberg, ele assume,
mesmo que depois do estranhamento causado, o lado imaginário,
fazendo uma ponte com o plano real. Vemos isso na cena
do vagão do trem, quando ele vê uma pintura
de um hotel. Em sua imaginação, ele entra
no hotel, pára diante de uma porta cujo visor
se transforma num olho, que cai levando consigo uma
gosma vermelha, ao despertar, ele vê que uma caixa
de molho de tomate havia se derramado sobre a pintura.
Esse tipo de ligação, geralmente evitada
por Cronenberg, poderia enfraquecer a atmosfera onírica
pretendida por Verhoeven, mas não o faz, pois
seu intento é justamente levar o filme aos poucos
a um outro gênero, o terror psicológico,
com uma forte sugestão de luta do bem contra
o mal. Não a toa, a última imagem é
a de um crucifixo na parede. Ecos da série A
Profecia (principalmente do segundo episódio)
são encontrados aqui - inclusive na cena em que
ele é atacado por um pastor alemão - mas
com uma maior liberdade na construção
da narrativa. Vários elementos que já
estavam presentes na popular série iniciada por
Richard Donner são encontradas aqui: o cão,
as aves, a sombra, as fotografias ou filmes como indícios
do que iria ocorrer, mas parece interessar mais a Verhoeven
ter esses elementos, sem que uma explicação
seja dada. São pistas deixadas com a clara intenção
de confundir, mais do que elucidar.
O Quarto Homem, por todas suas implicações,
falsas ou não, e por sua força imagética
incomum, é um grande filme, que se impõe
sorrateiramente, como a aranha tecendo sua teia.
Sérgio Alpendre
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