O QUARTO HOMEM
Paul Verhoeven, Die Vierde Man, Holanda, 1983

O último filme de Verhoeven na Holanda sofre de uma esquizofrenia salutar. Pois se o escritor vivido por Jeroen Krabbé, numa interpretação bem próxima da caricatura, é atormentado pelas mais bizarras alucinações, somos testemunhas de um dos mais bizarros casos de filme que navega entre vários gêneros sem se decidir por um. Não que o filme seja indeciso, ou que Verhoeven tenha encontrado dificuldades para alcançar o tom certo entre a sátira e o escárnio. Interessa mais ao diretor brincar com a expectativa do espectador, fazendo com que o filme ameace enveredar para direções opostas às que de fato ele envereda. Assim, quando após dois minutos de tela negra com música de suspense, seguidos de planos de uma aranha devorando um inseto em sua teia, aparece o escritor acordando trêmulo, necessitado que está de uma boa bebida. Não que ver em cena um dependente alcoólico seja engraçado, mas há uma quebra no clima de suspense que havia se instaurado, causando estranheza imediata no espectador.

Gerard Reve (Krabbé) é um escritor alcoólatra que se envolve com uma loira fatal, Christine, mas se apaixona pelo amante dela. Aos poucos, ele fica sabendo que ela foi viúva por três vezes, e começa a acreditar que pode ser o quarto a se envolver com ela e morrer.

Verhoeven inteligentemente cerca o personagem com sinais de morte. Em um momento, uma ave desfalece e quase o acerta em sua queda. Em outro, ele observa um senhor que se afogou. Há também o caixão na estação, com a flâmula dobrada, dando a entender que se trata de uma pessoa chamada Gerard. O carro funebre aparecerá mais tarde, causando inclusive um grave acidente. Ele sofre, ainda, com alucinações lúgubres, como a do homem que sai do mar com um olho arrancado. O vermelho está sempre presente como mais um elemento simbólico (as pétalas da rosa que a mulher que ele acredita ser Maria, mãe de Jesus, carrega; o sangue de bois esquartejados ou de órgãos decepados; a roupa de Christine; o forte batom que ela usa; o molho de tomate que escorre; a sunga que Herman usa na foto, e que voltará numa imaginação futura...). A obsessão com tesouras também o atormenta. Em certo momento, ele sonha com Christine cortando seu pênis fora com uma tesoura, depois disso vemos Christine simular um corte com as mãos por diversas vezes, e mais adiante a vemos cortando o cabelo dele (ela é herdeira de um luxuoso salão de belezas). Mas se perder na história do filme não é tão recompensador, pois seu maior trunfo está em outros atributos.

O filme todo é construído com o objetivo de desconcertar. Nesse sentido, podemos dizer que é o mais bem sucedido dos filmes do diretor, pois nos instaura no caos, privando-nos de explicações. Ora tende para um onirismo típico de Buñuel, com imagens religiosas e sexuais se confundindo, ora descamba para um humor negro e incômodo, como nas tentativas de Gerard de encontrar Herman. Essas mudanças de tom são muito bem operadas pelo diretor, tornando difícil a sempre desnecessária catalogação imposta pelos cadernos culturais. No ápice transgressivo do filme, ele entra numa igreja, sobe no altar e começa a rezar, mas o movimento da câmera o leva (e a nós, espectadores) a descobrir Herman, vestido unicamente com a sunga vermelha da foto, no lugar de Jesus, numa cruz na lateral da igreja. Ele vai até lá e lhe beija os pés, que têm sangue ao redor dos enormes pregos, para depois abaixar a sunga, tendo antes passado a mão no pênis dele. Ele mostra se deleitar com a oportunidade. Sua imaginação é interrompida com a chegada de uma senhora, que nos é revelada por um sutil movimento de câmera. Essa seqüência mostra como não devemos desprezar a elaborada mise-en-scène de Verhoeven. Um olhar de soslaio conduz a câmera, que conduz o personagem e o espectador, em uma perfeita noção de como manipular o olhar de quem vê o filme.

Mas Verhoeven, que é católico, evita as explicações. No salão, enquanto o cabelo de Gerard está sendo cortado, uma mulher revela o sonho de seu marido, algo semelhante ao que ele mesmo sonhara na noite anterior (o corte do pênis), mas Christine corta o relato com o forte barulho do secador. Mais um signo buñueliano, diretor que sempre encobria as explicações com ruídos, como o que Hitchcock utilizou em Intriga Internacional (a turbina do avião). Somos freqüentemente despistados por olhares misteriosos e ambientações escuras, com um interessante jogo de sombras. Em um momento, a sombra de um flamingo está a frente da sombra do escritor. Seria mais um simbolismo fatídico? Ou mais uma referência aos cineastas citados? Hitchcock fazia simbolismos com sombras, principalmente na fase inglesa; e Buñuel adorava aves.

Buñuel, Hitchcock...existe ainda uma outra vertente no cinema de Verhoeven, inaugurada a partir de Spetters, o filme anterior, que é a influência de Cronenberg. Como o diretor canadense, Verhoeven enche seu filme de mutilações e coisas decrépitas, mas, ao contrário de Cronenberg, ele assume, mesmo que depois do estranhamento causado, o lado imaginário, fazendo uma ponte com o plano real. Vemos isso na cena do vagão do trem, quando ele vê uma pintura de um hotel. Em sua imaginação, ele entra no hotel, pára diante de uma porta cujo visor se transforma num olho, que cai levando consigo uma gosma vermelha, ao despertar, ele vê que uma caixa de molho de tomate havia se derramado sobre a pintura. Esse tipo de ligação, geralmente evitada por Cronenberg, poderia enfraquecer a atmosfera onírica pretendida por Verhoeven, mas não o faz, pois seu intento é justamente levar o filme aos poucos a um outro gênero, o terror psicológico, com uma forte sugestão de luta do bem contra o mal. Não a toa, a última imagem é a de um crucifixo na parede. Ecos da série A Profecia (principalmente do segundo episódio) são encontrados aqui - inclusive na cena em que ele é atacado por um pastor alemão - mas com uma maior liberdade na construção da narrativa. Vários elementos que já estavam presentes na popular série iniciada por Richard Donner são encontradas aqui: o cão, as aves, a sombra, as fotografias ou filmes como indícios do que iria ocorrer, mas parece interessar mais a Verhoeven ter esses elementos, sem que uma explicação seja dada. São pistas deixadas com a clara intenção de confundir, mais do que elucidar.

O Quarto Homem, por todas suas implicações, falsas ou não, e por sua força imagética incomum, é um grande filme, que se impõe sorrateiramente, como a aranha tecendo sua teia.


Sérgio Alpendre